Marco Antônio Verardi Fialho
Resumo
O objeto de discussão deste artigo refere-se à questão da solidão. A solidão pode ser identificada com sentimentos agradáveis, relacionada, em parte, a momentos de reflexão e contemplação. Entretanto, neste artigo, o nosso objetivo está no estudo dos elementos que concorrem para o sentimento de solidão, este identificado à angústia, tristeza e medo. Partimos da observação e análise da literatura regional e do modo de vida das pessoas das localidades rurais do município de Canguçu – região sul do Rio Grande do Sul – Brasil. Observamos que as pessoas estão sob a influência de elementos do ambiente físico, social, cultural, repercutindo na visão de mundo. Esta maneira subjetiva de ver e entender o mundo, especialmente as relações humanas e os papéis das pessoas e o seu próprio na sociedade, pode levar a momentos de solidão que serão encarados como castigo ou recompensa. Observamos, também, que as mulheres falam com maior “naturalidade”, em comparação aos homens, sobre o sentimento de solidão. Para essas, a solidão está dentro de casa, local que deveria inspirar segurança. A solidão ausenta-se do pensamento quando as mulheres se encontram no trabalho, produzindo sentimentos de segurança e valorização social. O estudo também apontou que, além da falta de perspectiva, a solidão tem relativa responsabilidade como um dos motivos para o êxodo rural.
Palavras chave
Solidão; Sociabilidade; Rio Grande do Sul.
I. Introdução
Neste artigo empenhamo-nos em apresentar e discutir algumas questões fruto de observações relacionadas ao modo de vida de parte da sociedade rural do município de Canguçu/RS – Rio Grande do Sul – Brasil. Observações realizadas no decorrer do processo de elaboração da tese de doutorado intitulada “Rincões de Pobreza e Desenvolvimento: interpretações sobre comportamento coletivo”, defendida em 17 de agosto de 2005 no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e sob orientação do Professor Roberto José Moreira. Esta tese analisou o processo de desenvolvimento das localidades rurais de Rincão dos Marques e Rincão dos Maia, atentando para aspectos comportamentais da coletividade.
O objeto de discussão deste artigo refere-se à questão da solidão, sensação ou situação de quem vive afastado ou isolado. A palavra solidão inspira, num primeiro momento, sentimentos negativos ou ruins, relacionados, em boa parte, a percepções de angústia e tristeza. Entretanto, salientamos que a solidão também pode ser identificada com sentimentos agradáveis, principalmente quando estamos inclinados à reflexão (por exemplo: sobre questões pessoais) e contemplação (por exemplo: observar atentamente, analisar, meditar, imaginar). Este artigo, como objetivo, propõe-se a estudar os elementos que, em certa medida, concorrem para o sentimento de solidão, observando e analisando o modo de vida das pessoas das localidades estudadas e a literatura regional.
A solidão no meio rural, por vezes passa desapercebida, principalmente pelas características do contexto social. A sociedade rural, de modo geral, é marcada por regras e normas de conduta rígida, em que expressar sentimentos pode ser interpretado como sinal de fraqueza. Nesse sentido, podemos salientar que o sentimento de solidão vivenciado por homens e mulheres do meio rural toma forma distinta quando atentamos para a questão de gênero.
Para melhor conhecer a questão proposta neste artigo, o estudo compreendeu dois momentos: a pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo com entrevistas abertas e observações sobre as pessoas e suas relações com o meio ambiente e com as instituições. A maior parte do trabalho de campo foi realizado ao longo do período entre os anos de 2001 e 2005, com incursões para simples observação e outras (boa parte) de maior aproximação como, por exemplo, entrevistas e momentos de convivência com as pessoas do Rincão dos Marques e Rincão dos Maia.
II. Rápida caracterização da região de estudo
Localizando o leitor; Canguçu situa-se no Planalto sul-riograndense (aproximadamente 50 km da cidade de Pelotas e 300 km de Porto Alegre), uma das regiões com maior incidência de pobreza rural do Rio Grande do Sul (apresentando indicadores econômicos e sociais abaixo da média estadual). Como característica, a maior parte da população do município vive no meio rural em pequenas propriedades cultivando, principalmente, milho, feijão, pêssego e, nos últimos anos (em expansão), fumo. A população predominante é de descendentes de portugueses miscigenados com o espanhol, o índio e o negro, os que se autodenominam brasileiros (identificados por outros grupos étnicos de pelo-duro), mas também encontramos descendentes de imigrantes alemães e de italianos, entre outras etnias de menor representatividade.
A população canguçuense tem na sua raiz a herança genética e cultural dos primeiros habitantes rio-grandenses, sua história é marcada por acontecimentos ligados às disputas pelo território entre portugueses e espanhóis. Inicialmente Canguçu era região de índios, de passagem de militares e comerciantes de gado que seguiam das cidades de Rio Grande ou Pelotas para Rio Pardo e Santa Maria e vice-versa. Abrigou estâncias de criação de gado (sesmarias) e foi nos seus campos e coxilhas que também se formou o tipo social gaúcho. Das antigas estâncias de criação de gado pouco sobrou, boa parte foi desmembrada para comercialização, herança ou doação, transformando-se, com o passar dos anos, em pequenas propriedades rurais familiares.
III. O meio ambiente e a solidão: aporte histórico
Quando se reporta à região sul do Rio Grande do Sul, também conhecida como região da Campanha, Pampa Gaúcho ou Metade Sul, logo vem à mente a imagem dos verdes campos infindáveis ocupados pelas estâncias de criação de gado. Segundo historiadores, no período colonial, a região da Campanha estava entregue ao acaso, terra de ninguém, em que a única companhia era a solidão.
Para apresentar a região do pampa gaúcho, recorre-se a dois escritores que descrevem esta região de prismas diferentes. Roche (1969, p. 38), com base em autores regionais e talvez na sua própria percepção, apresenta detalhadamente as características geográficas da região da Campanha, numa narrativa solene e melancólica:
Venhamos da Lagoa dos Patos ou do Vale do Jacuí, elevamo-nos lentamente nos granitos da Serra do Sudeste. Extensas faixas que se prolongam entre os vales que as penetram profundamente, longos declives suaves, cujas leves curvas se recortam regularmente, depois se soldam em linhas horizontais, eis as coxilhas da terra gaúcha.
Em quase todos os relatos ou descrições sobre a região sul do Estado do Rio Grande do Sul, observa-se o uso de palavras que exprimem, em algum grau, algo monótono, enfadonho, cansativo, por exemplo, palavras ou expressões utilizadas por Roche como: extensas, prolongam, profundamente, regularmente, longos declives suaves, leves curvas, linhas horizontais. Parece que a região tem certa capacidade de envolver as pessoas, poder de criar ou despertar o sentimento de solidão, de melancolia e quem sabe de tristeza.
José de Alencar, apesar de não ter conhecido a região, descreve na obra “O Gaúcho” (romance classificado como ruralista) a paisagem bucólica, explorando os sentidos que espiam a vida rural no extremo-sul do Brasil do século XIX. O pampa gaúcho, segundo José de Alencar (s.d., p. 14-15):
Como são melancólicas e solenes, ao pino do sol, as vastas Campinas que cingem as margens do Uruguai e seus afluentes! A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram as flutuações das vagas nesse verde oceano. Mais profunda parece aqui a solidão, e mais pavorosa, do que na imensidade dos mares (…).
Raro corta o espaço, cheio de luz, um pássaro erradio, demandando a sombra, longe na restinga de mato que borda as orlas de algum arroio. A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vai retouçando alegremente babujar a grama do próximo banhado (…).
O viandante perdido na imensa planície, fica mais que isolado, fica opresso. Em torno dele faz-se o vácuo: súbita paralisia invade o espaço, que pesa sobre o homem como lívida mortalha.
Lavor de jaspe, embutido na lâmina azul do céu, é a nuvem. O chão semelha a vasta lápida musgosa de extenso pavimento. Por toda a parte a imutabilidade. Nem um bafo para que essa natureza palpite; nem um rumor que simule o balbuciar do deserto.
Pasmosa inanição da vida no seio de um alúvio de luz!
(…) A savana permanece como foi ontem, como há de ser amanhã, até o dia em que o verme homem corroer essa crosta secular do deserto.
Observa-se no texto de José de Alencar que o pampa rio-grandense desperta a sensação de solidão (profunda) e o sentido do eterno (imutabilidade), parece que a dimensão tempo não faz sentido. Região esquecida, disposta na imensidão do nada, a vida do ser humano parece perder o sentido e, quando isso acontece, o pavor, o medo e outros sentimentos desagradáveis invadem o pensamento, e os reflexos do instinto de sobrevivência passam a responder lentamente.
A grande maioria dos autores (pesquisadores da região sul do Rio Grande do Sul) utiliza a palavra solidão para caracterizar a Campanha gaúcha. Percepção dos de fora, sentimento que desperta nos que não habitam a região. Mas o relato de campo de um senhor chamou a atenção quando perguntávamos se havia registro de suicídios no meio rural de Canguçu. Após confirmar a frequência, uma de suas hipóteses chamou a atenção: a explicação para alguns atentados contra a própria vida originava-se nos ventos que sopravam na Campanha. O que leva a supor que esses ventos, dependendo do grau de claridade solar (dias ensolarados ou nublados – sabe-se que o sol influencia o humor das pessoas), poderiam influenciar o estado de espírito das pessoas, acentuando a sensação de solidão, proporcionando, consequentemente, a elevação do estado depressivo até resultar no ato final – o suicídio. Resgatando Carneiro Leão, Roche (1969, p. 38-39) destaca a percepção do autor sobre o pampa rio-grandense e sobre o vento característico da região: “Um pouco de melancolia paira sobre essas terras uniformes onde, não podendo nem brincar nem cantar nas árvores, o próprio vento anda sempre triste, quando não furioso como o Minuano.”[1]
A solidão e a imutabilidade podem ter repercussão no estado de espírito das pessoas, esvaindo o entusiasmo e a autoestima, levando a crer que, para quebrar esse círculo, seria necessário esforço sobre-humano, além das suas capacidades. Principalmente quando se reporta à população rural. No campo, o tempo segue as leis da natureza, o ser humano perde, relativamente, a capacidade de controle, submetido e dominado, segue submisso e entregue ao tempo de espera, principalmente quando se lida com atividades que estão subjugadas ao tempo da natureza (tempo de plantar, germinar, crescer, frutificar e colher – no reino vegetal, caso análogo ao reino animal).[2]
Acreditamos, assim como Moreira (2005), que a região (na relação de coexistência natural com o ecossistema local) tem participação na formação psicológica do indivíduo, capaz de influenciar ou forjar o caráter identificador de certo grupo (ou segmento) social, assim como outros elementos constitutivos da identidade regional (relações de codeterminação com a sociedade abrangente).
IV. Sociabilidade da família rural: passado e presente
No passado, há 50 anos ou mais, as visitas entre amigos e parentes eram pouco frequentes, resumiam-se a dois ou três encontros ao ano. Convívio de um ou dois dias em que as famílias desfrutavam de momentos agradáveis. As visitas eram longas (o pessoal ia para pouso), já que as casas eram distantes umas das outras. Com os anos, a estrutura fundiária mudou, aproximando as casas e proporcionando contatos mais frequentes, porém efêmeros. Antigamente o trabalho, os meios de transporte, os meios de comunicação e a estrutura fundiária restringiam as famílias à propriedade. As extensas jornadas de trabalho e a distância geográfica entre cada núcleo familiar impossibilitavam maior aproximação entre vizinhos. A família era relativamente autossuficiente, produzia a maior parte do que consumia, adquirindo os meios de subsistência através de trocas com a natureza, pouco dependia da sociedade. Marx (1968), ao discutir a luta de classes, destaca como fatores do agravamento do isolamento das famílias camponesas a má condição do sistema de comunicações, o modo de produção e a condição de pobreza. O senhor Miguel (59 anos), agricultor, salienta o isolamento das famílias: “(…) era bem isolado, cada um ficava trabalhando, lá num dia de chuva ou de noite iam fazer uma visita. O que passeava mais era o dono da casa, a mulher quase ficava mais cuidando das crianças!” O relato do senhor Miguel é revelador, mostrando as restrições à sociabilidade que eram impostas à mulher.
Os acontecimentos sociais resumiam-se a bailes (bailantas), serenatas e carreiras de cavalos. Os bailes ou bailantas eram parecidos com os atuais, contavam com um pequeno grupo para tocar e cantar músicas regionais.
As serenatas começavam no dia seis de janeiro (dia de Reis Magos), período que tinham pouco serviço na propriedade, e durante o ano eram realizadas duas ou três dessas reuniões. Algumas famílias reuniam-se e saíam pelas estradas, no final da tarde ou início da noite, cantando músicas acompanhadas de violão, gaita (acordeão/sanfona) e pandeiro. Escolhiam a casa de um parente ou amigo para chegar de surpresa, logo depois as mulheres começavam os preparativos da comilança, o que a família anfitriã tinha para oferecer; eram canjas (sopas), galinhadas (galinha com arroz) e pães. A bebida consumida era o café, alguns destacam a presença de bebidas alcoólicas (aguardente), mas em pouca quantidade (sagrado e profano).[3] As serenatas começavam ao anoitecer e só encerravam ao amanhecer, com pequenos intervalos para o descanso dos músicos e para aguar o chão (de terra) para não deixar a poeira levantar. Hoje as serenatas não fazem mais parte dos acontecimentos sociais da localidade, perdendo formas de sociabilidade, de cultura e religiosidade, restringindo gradativamente os ambientes de convívio social.
Outro acontecimento social eram as carreiras de cavalos, um ou dois dias que envolvia parte da sociedade local; segundo relatos, toda a família participava delas, mulheres, crianças, mas eram os homens que predominavam. Eles tinham prazer em lidar com os animais, em apostar e contar vantagens entre os amigos, resgatando heranças passadas dos tempos que o cavalo era o único bem e companheiro do gaúcho solitário dos campos, dos tempos das façanhas e do comportamento tido como belicoso. As famílias, para passar o dia à espera das corridas de cancha reta, realizavam agradáveis piqueniques. Esses acontecimentos sociais também eram um momento (raro) de valorização da mulher, já que ela apresentava seus dotes culinários à sociedade local. Hoje as carreiras de cavalos na região estão em extinção, deram lugar aos rodeios campeiros (tradição recriada) com tiro de laço, paleteada, gineteada, atividades que eram características do gaúcho, voltando às raízes das criações de gado no período colonial.
Com o rápido esvaziamento na década de 1980, principalmente com a saída dos jovens, as localidades perderam parte da vitalidade, as reuniões sociais foram se reduzindo como, por exemplo, os jogos de futebol. O senhor Humberto (40 anos), agricultor, deixa claro o que há de lazer: “Aqui tem pouca coisa para se divertir, um rodeio de vez em quando. Futebol quase não tem, jogo de bocha também não tem. Divertimento não tem, é pouco!”
Outra alternativa para ampliar os canais de sociabilidade estaria na religião, mas essa é uma questão problemática. O problema da religião está evidente na declaração, em tom firme e altivo, do senhor Inácio (71 anos): “O povo daqui do Rincão não dá muita bola para religião, nunca deu! Nem na época que eu era criança.” O senhor Plínio (67 anos), que ajudou na construção da igreja, demonstrando tristeza e frustração, complementa: “Acho que o povo, (…) o povo mesmo que não gosta de religião. Não sei por quê? Não quer perder um tempo.” A participação nas reuniões (uma missa por mês) reflete as afirmações acima, os encontros na igreja são compartilhados por poucas pessoas, que ocupam duas ou três fileiras de bancos. Na discussão de Goulart (1985, p. 13), a religiosidade do gaúcho está sob influência da geografia, na qual a motivação e a ação intencional da subjetividade humana são atribuídas à realidade objetiva: “A religião é outro exemplo esclarecedor: a natureza da terra, sem comunicações, insulada, propendia para a diminuição do sentimento religioso ou para a criação de uma religião espontânea, simples, naturista, mero animismo pastoril.” A religiosidade do gaúcho, no isolamento dos campos, pode tomar formas distintas da prática costumeira (católica), criando relações com outras divindades do imaginário.
V. A solidão: de mulheres e homens
Com o passar dos anos uma série de fatores que contribuíam para o estreitamento dos laços de amizade entre as famílias foram paulatinamente extintos. Entretanto, historicamente a sociedade rural apresenta maior restrição à sociabilidade feminina, levando em consideração que ela tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem, como, por exemplo, locais em que a presença da mulher não é bem vista ou aceita. O depoimento da senhora Rosa (funcionária pública municipal e residente numa das localidades estudadas) revela limitações de espaços de sociabilidade: “Falta lugar para ir, pra si divertir, pra conversar, principalmente pras mulheres. (…) Aí tem um pouco de solidão na localidade, falta espaço pra a gente se conversar, se ver. (…) As pessoas aqui são solitárias, mas triste eu não sei.”
As regras de conduta (expressão do costume/cultura local) e as mudanças no modo de vida restringiram o ambiente social de parte das mulheres rurais, levando-as à quase reclusão doméstica, um afastamento voluntário (para não dizer imposto) do convívio social. Esse afastamento produz, tanto em mulheres como em homens, efeitos diversos no comportamento, por vezes prejudiciais ao bem-estar e nem sempre perceptíveis aos olhos alheios. A dificuldade de percepção está na forma como a própria pessoa vê suas angústias e seus medos, já que em muitos casos ela procura, quando está em relação com outras pessoas, dissimular estes sentimentos com comportamentos alegres e joviais. Arriscamos afirmar que essa alegria e espontaneidade que nas pessoas aflora quando estão desfrutando do convívio social são frutos da solidão. Um mecanismo de defesa, do qual se utiliza toda vez que está em convívio social. Nossa suposição, referente a este comportamento social, encontra apoio nas palavras de Holanda (1995, p. 147) que desenvolve seu argumento sobre o homem cordial na ideia de que a solidão é algo inerente a sua situação de ser humano – na perspectiva de homo clausus:[4]
No homem cordial, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro.
Esse isolamento, esse cativeiro, é algo insuportável e, para o próprio indivíduo, parece perceptível aos outros; recorremos a Elias (1999, p. 129), apesar de suas críticas à concepção do homo clausus, para clarear essa questão:
Somos levados a acreditar que o nosso eu existe de certo modo dentro de nós; e que há uma barreira invisível separando aquilo que está dentro daquilo que está fora – o chamado mundo exterior. Aqueles que tomam consciência de si próprios deste modo – como uma espécie de caixa fechada, como um homo clausus – pensam que isto é imediatamente evidente.
Se o nosso mundo interior pode ser visto pelos outros, e se ele não é o que gostaríamos que os vissem em nós, tratamos de camuflá-lo, optando por atitudes dissimuladas, expressando algo que não somos, como uma atitude de defesa. Aí poderia estar o cerne da explicação sobre o comportamento dissuadido das pessoas solitárias. Conforme Holanda (1995, p. 147):
Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no homem cordial: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas emoções. (…) Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social.
Os parágrafos anteriores vêm corroborar com a percepção de alguns entrevistados que, ao relatar casos de suicídio ou de solidão, destacaram que as pessoas estavam aparentemente normais; por exemplo, o relato do senhor Francisco (agricultor): “(…) Aqui nesta zona tinha uma família que só sobrou um. Tudo se matou! Um enforcado, uma com um fio, outra com veneno. (…) Não se sabe dizer. Não se nota nada, estava conversando normal.” Com percepção próxima à do senhor Francisco podemos destacar também a fala do senhor Manuel (extensionista rural):
Na medida que aparecem pessoas novas na comunidade, eles mostram, assim, até uma certa cordialidade, mas na medida que essas pessoas saem da comunidade eles (…) novamente (…) caindo na realidade deles, aí que eles sentem uma solidão em relação ao ambiente deles. O ambiente é muito vasto, poucas pessoas residindo, pouco se encontram para conversar. Eu acho que é isso daí! Então que essas pessoas do Rincão encontram uma pessoa para conversar, então eles têm todo um período, assim, de solidão para descarrega, para desabafa.
A cordialidade, a hospitalidade e a alegria parecem contrastar com a região, com o isolamento, com a solidão. Nesse sentido procuramos embasar nossa posição, em certa medida, na psicologia (mais precisamente na psicologia social/coletiva/dos povos),[5] construindo a argumentação, sobre o comportamento alegre e jovial, na negação das características autorreconhecidas como depreciativas – diríamos: desprezo pela própria essência – identificada, em certa medida, em Holanda (1995).
O meio rural de Canguçu, assim como boa parte do rural brasileiro, passou por um processo acentuado de esvaziamento (êxodo rural), principalmente na década de 1980. A rápida redução da população fez acentuar o sentimento de solidão das pessoas que permaneceram no campo; tal sentimento pode ser percebido em algumas entrevistas pelo certo tom de nostalgia, como, por exemplo, na fala da senhora Margarida (agricultora):
Um tempo atrás era bem mais povoado. Como era bom aquele tempo! A gente ia num passo na casa do outro ou dava um grito e o vizinho já respondia do outro lado. Mas hoje não, hoje as casas são bem distante. (…) Muitas pessoas se sentiam sozinhas porque os parentes foram embora para a cidade, aí iam se sentindo abandonados e aí também foram embora pra cidade.
O depoimento da senhora Margarida apresenta uma outra causa (ou justificativa) para o crescente êxodo rural das últimas décadas, a solidão ou quem sabe a saudade pelos que foram buscar novas perspectivas em outros rincões (rurais e urbanos). Geralmente a questão do êxodo rural, na percepção dos estudiosos do tema, está relacionada às dificuldades de reprodução social e econômica das famílias (fatores relacionados à produção, renda e ocupação), esquecendo de questões subjetivas que talvez tenham igual importância para entendermos o processo de esvaziamento do campo. Os que permaneceram no campo expressam saudades dos que foram para a cidade e desejo de seguir o mesmo caminho, mas com o tempo estas inquietações são atenuadas, como podemos ver no relato da senhora Margarida:
Depois que meus pais foram para Pelotas e eu fiquei com meu marido naquela casa lá no fundo e não tinha mais ninguém em roda da casa, (…) aí eu me sentia bem ruim, bem triste. Então pensava em ir embora também. Mas o tempo foi passando e eu fui entendendo melhor como era a vida né, aí eu não penso mais. (…) Cada um pensa de um jeito, mas eu não gosto de ficar afastada, sozinha. Aí a gente se sente ruim, aquele vazio, aquela tristeza. Quando tem gente mais próxima, a gente se sente mais alegre, mais feliz (…) e a vida parece que aí passa mais rápida né. Quando a gente ta sozinha aí é diferente, parece que o relógio não anda, para, e aí vem a solidão.
Em todas as entrevistas realizadas com mulheres, observamos que os momentos de solidão se localizavam no interior da própria casa, local identificado por elas de medo e angústia. As senhoras Dália e Margarida (agricultoras) relatam que a solidão, acompanhada de sentimentos ruins, é percebida sempre quando estão sozinhas em suas casas; por isso, para consumir as aflições buscam no trabalho na lavoura a fuga e o alívio. Conforme a senhora Dália:
Quando fico solita (sozinha) é brabo. Se tá em casa solita e não tem com quem conversar, não se interte, aí tem que sair pras lavouras capiná. (…) Se está aborrecida dentro de casa, sai pra lavoura trabalha (…) e a gente fica tão bem, nem pensa nada ruim.
A exposição da senhora Margarida segue a mesma linha:
Pior coisa é o medo de ficar dentro de casa sozinha, qualquer uma batida é uma assombração. Vinha aquele medo, aí saia pra rua, nem ficava dentro de casa. (…) tinha medo de almas penadas, de pessoas que iam aparecer depois de morrer. (…) Quando eu tava na lavoura era diferente, aí a gente até esquecia aquele medo. Era porque a gente tava trabalhando, aí ocupava a mente e não ficava pensando, porque ficava concentrada no serviço né.
Como podemos observar, há dois locais que expressam sentimentos opostos: a casa e a lavoura. Na casa a mulher rural sente angústia, sentimentos relacionados à carência afetiva, de valorização e de redução de horizontes (de objetivos/sentidos de vida como também de espaço físico), levando-a ao sofrimento e ao tormento – representação de ameaça psíquica. O que as mulheres entrevistadas relatam diz respeito a um medo sem objeto determinado, um sentimento impreciso e indeterminado. Podemos interpretar esses sentimentos como expressões de carência afetiva e valor humano, principalmente quando a mulher sente-se sem importância social, ou seja, sem função social. Consequência da falta de expressão dos outros (homens, mulheres, poder público, etc.), os que estão em inter-relação com a mulher, sobre a importância do papel da mulher na reprodução social e econômica da família e da sociedade de modo geral. Sem o reconhecimento, especialmente o autorreconhecimento (da própria mulher), do seu valor perante os outros (família e sociedade), a autoestima da mulher rural, como de qualquer ser humano, pode ser profundamente abalada, proporcionando questionamentos sobre sua importância. Entretanto é na lavoura que ela recupera sua importância social, sente-se útil e produtiva, a mente liberta-se dos questionamentos sobre sua relevância como ator social. O seu trabalho na lavoura resulta em alimentos para o consumo da família, produção para comercialização e, consequentemente, renda, expressões materiais da sua importância, possibilitando autorreconhecimento do seu papel social tanto para a reprodução da própria família como perante a sociedade. Caso não tenha consciência da importância do trabalho doméstico (cozinhar, lavar, passar – administração da casa) para a reprodução da família, poderá identificá-lo como algo sem grande valor, visto que este trabalho, grosso modo, não resulta em bens materiais, palpáveis, impedindo sua valoração. A comparação entre casa e lavoura e sua função desempenhada em cada uma destas pode sugerir, respectivamente, angústias e alegrias.
O estado de espírito do ser humano está relacionado às condições climáticas, especialmente a intensidade solar. As carências afetivas aumentam com a proximidade da noite ou em dias de menor intensidade solar (nublados e chuvosos), a fragilidade, a saudade, o desespero são mais frequentes ou mais intensos. São nos dias nublados ou ao entardecer (menor intensidade solar) que as mulheres relatam momentos de solidão relacionados com sentimentos de angústia. A senhora Margarida apresenta a diferenciação de sentimentos entre dias ensolarados e chuvosos:
Quando tem um dia bonito de sol aí a gente fica feliz, aí tem aquela calmaria (referindo-se à ausência de sentimentos de angústias – tormentos psicológicos). Pois a gente não tem muito que se preocupar com ladrão, porque aqui a vida é tranquila. Mas quando é um dia chuvoso a gente sente solidão, a gente se sente sozinha (…) sente um tristeza (…) o tempo não passa.
Não foram muitas as mulheres que estavam dispostas a falar sobre a questão da solidão, principalmente quando estavam na presença de seus respectivos companheiros. Admitir tal sentimento nem sempre é fácil para uma pessoa, especialmente na presença de alguém desconhecido. Salientamos que a solidão (identificada com sentimentos de angústia) diz respeito a uma parcela da população (rural e urbana), mas pela vivência que desfrutamos no trabalho de campo, junto às localidades do meio rural de Canguçu, podemos destacar que ela aflige uma fração significativa da população rural. Entretanto, talvez a solidão para os homens seja menos intensa (maior liberdade de sociabilidade e o caráter de macho não permite admitir tal sentimento) como podemos observar na fala do senhor Pedro (agricultor):
Solidão não sente né. Quem gosta de trabalha, ele passa intertido a semana inteira. Quando é domingo ele gosta de passear, ou jogar um bocha, ou jogar o futebolzinho dele. Se ele gosta de prosear, ele vai na casa do vizinho e passa proseando. Então não tem disso não, não dá tempo pra isso (solidão). É só trabalho.
VI. Considerações finais
A solidão não pode ser vista exclusivamente como uma sensação ou situação que inspire sentimentos negativos, já que pode representar momento de reflexão, contemplação e prazer. Entretanto, fatores ambientais e culturais podem contribuir negativamente para a solidão, produzindo sensações dolorosas e de difícil convívio. Sensações nem sempre perceptíveis, já que as pessoas, muitas vezes, procuram inibir expressões ou comportamentos que as identifiquem com a solidão.
Os relatos apresentados neste trabalho, num primeiro momento, mostram pessoas que enfrentam certa dificuldade em conviver com a sensação de solidão. Esses relatos são principalmente de mulheres que apresentam sensação de solidão quando estão no interior de suas casas, geralmente sozinhas. A casa deveria inspirar segurança, aconchego, familiaridade, mas, por motivos ainda pouco conhecidos por nós, ela se transforma em lugar de tormento psicológico em determinados momentos de solidão. A tranquilidade e a paz de espírito são encontradas no trabalho, em atividades produtivas; ocupação no qual a mulher rural encontra, relativamente, a segurança e a valorização social (autorreconhecimento do seu papel na sociedade).
Nos contatos que realizamos com a população masculina das sociedades rurais estudadas a questão da solidão praticamente não figurou nos relatos, salvo quando provocados sobre o assunto, mas logo tratavam de expressar certo desdém. Parece que aos homens é mais difícil falar de questões interiores que lhes incomodam, pode significar sinal de fraqueza. Também aos homens os meios de sociabilidade são mais amplos, proporcionando um leque maior de possibilidades de convívio social quando comparado ao restrito universo social das mulheres rurais.
Para compreendermos, de forma mais abrangente, a questão da solidão nas sociedades rurais do município de Canguçu (Rincão dos Marques e Rincão dos Maia) foi importante recorrer a diversas dimensões que estão em jogo: temporal, espacial e social. Neste artigo aprofundamos umas e negligenciamos outras, mas uma questão, aos nossos olhos, ficou mais clara: a solidão é, em boa parte, produto da sociedade. Para entender o que condiciona determinadas pessoas ao afastamento do convívio social, precisamos conhecer a sociedade a que pertencem, e para executar as ações necessárias para tentar encontrar soluções para esse fenômeno precisamos de ações que envolvam tanto o público-alvo como a sociedade abrangente.
Bibliografia
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Elias, N. Introdução à Sociologia. Lisboa/Portugal: Editora Edições 70, 1999.
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Holanda, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Marx, K. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Editora Escriba, 1968.
Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Editora Cosac e Naify, 2003.
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Roche, J. A. Colonização Alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969, v. 1 e 2.
- Minuano é o vento frio e seco que sopra de sudoeste no período do inverno na região sul do Rio Grande do Sul.↵
- Discussão salutar sobre a questão do tempo, no caso do tempo biológico no crescimento das plantas e gestação dos animais, foi realizada por Goodman, Sorj e Wilkinson na obra “Da Lavoura às Biotecnologias: agricultura e indústria no sistema internacional” (1990).↵
- Observamos que o alcoolismo é um problema reconhecido nas localidades, e que parece ser malvisto por parte da sociedade local, talvez seja o motivo de os entrevistados negarem ou ocultarem a presença ou salientar como baixo o consumo da bebida alcoólica nas serenatas. Cabe salientar que o consumo de álcool, em certa medida, está relacionado à falta de perspectiva e ao afastamento social.↵
- Ver Elias (1999, p. 130). A imagem do homo clausus é considerada, por Elias, problemática. Segundo o autor, essa imagem dá “(…) poder e convicção à ideia de que a sociedade existe para além dos indivíduos ou que os indivíduos existem para além da sociedade (…)”, pressupondo a separação entre os dois, o que Elias não compactua, para ele, grosso modo, indivíduo e sociedade estão intimamente ligados, portanto inseparáveis.↵
- Mauss (2003, p. 322), ao referir-se às representações coletivas (ideias, motivações, práticas ou comportamentos sociais), salienta que este capítulo das ciências sociais pode ser chamado de psicologia coletiva ou, simplesmente, de sociologia.↵