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17 Heidegger e a técnica

Entre a diferença ontológica e a identidade metafísica

Dr. Eladio C. P. Craia

Introdução

No ano de 1933 ‒ano de vastos e decisivos acontecimentos que ainda hoje tentamos abarcar‒, Ortega y Gasset inaugura sua Meditação sobre a Técnica com uma sentença profética e exata: “Um dos temas que nos próximos anos será debatido com maior brio é o do sentido, vantagens, danos e limites da técnica […]”.[1]

Com essas poucas linhas o filósofo espanhol nos coloca perante nosso centro. Que dizemos, hoje, quando dizemos, filosoficamente, a “Técnica”? Que sentido perseguimos ‒e que sentido é produzido‒ quando qualificamos nosso tempo como determinado pelo técnico?

Com efeito, é habitual ‒e pertinente‒ afirmar hoje que a técnica se constitui como fenômeno central de nossa época. Tal afirmação pode ser desdobrada nos âmbitos mais diversos, como, por exemplo, o senso comum, o jornalismo, a ciência, a filosofia, a arte, etc., e, como consequência desta variedade, com diferentes reflexões e análises, segundo o contexto de abordagem. Ora, desde o prisma filosófico, e visando sermos mais precisos; o que significa dizer que nossa época é técnica? A primeira resposta que a filosofia pode propor é aquela que diz que o sentido geral de nosso tempo pode ser compreendido sob os protocolos propostos pela técnica, ou seja, compreendemos tecnicamente o mundo. Majoritariamente, os homens de nosso tempo se submetem a escâneres e outros objetos técnicos para verificar o estado de sua saúde; operam sem temor ‒e sem culpa‒ através dos sistemas informáticos e do universo online, para fazerem seus investimentos e perseguirem o maior lucro possível; dividem a sexualidade em compartimentos “tecnicamente” diferenciáveis; e até mesmo os homens de fé podem assistir à liturgia religiosa (aquilo que define o mais vertical e dramático ato da fé) na televisão ou na internet. Não estamos aqui criticando ou celebrando estas vicissitudes, apenas constatamos fatos. Ora, isto implica, enquanto reflexão filosófica, uma leitura ontológica ‒o que, sob nenhuma hipótese, quer dizer metafísica. Esta análise ontológica é admissível, dado que o século XX filosófico afastou os fantasmas kantianos da metafísica, podemos falar de ontologia com certa serenidade, entendendo-a como o conjunto de conceitos que nos posicionam perante aquilo que determinamos como o real ou a realidade; dito de outro modo, o sentido que coletiva e historicamente damos ao mundo no qual somos. Entre outros domínios, a filosofia pensa ontologicamente a técnica.[2]

Em virtude deste recorte, e a partir de certas exigências histórico-analíticas do mesmo, nos centraremos na presente pesquisa na reflexão de Martin Heidegger sobre a técnica. De fato, é conhecido que no âmbito do pensamento contemporâneo entorno à questão da técnica, o filósofo alemão aparece como um autor essencial, como uma das grandes vozes que nos convoca a pensar em termos estritos “a própria técnica” a partir de seu epicentro ontológico,[3] antes de iniciar qualquer abordagem centrada em algumas das varias consequências fenomênicas ou semânticas da técnica.

Assim, no que segue, tentaremos expor certos aspectos, bem como determinadas margens, da especulação referida à técnica aberta por Martin Heidegger.

A análise da técnica

Comecemos situando a questão: Que diz a reflexão de Heidegger sobre a técnica quando analisada no seu sentido mais geral e transitado, aquele que organiza uma opinião e norteia uma escola?

Em primeira instância é necessário recordar que sua questão básica e perene ‒isto é, aquela pergunta que interroga o sentido do Ser‒ é, de algum modo, transformada na própria questão pela técnica, de modo que esta última só encontra seu sentido sobre o fundo do questionamento sobre o Ser enquanto tal. Vejamos mais de perto.

O problema da técnica não só é relevante em Heidegger pela riqueza especulativa que o filósofo atinge na análise deste problema, mas também porque constitui, em termos de determinação da obra do filósofo alemão, um dos temas constantes do seu pensamento, aparecendo nos distintos momentos de seu pensamento já catalogados pela historiografia filosófica. Por este motivo, é necessário reconhecer que as reflexões e, em geral, o relacionamento do filósofo alemão com a problemática da técnica possuem, necessariamente, diferentes matizes e etapas, segundo o período de sua filosofia.

Ora bem, aquilo que se manteve mais ou menos constante através destes diferentes períodos, é a caracterização da técnica como modo de ser epocal, e, por tanto, intrinsecamente vinculada ‒de diversos modos, segundo o momento de sua filosofia‒, com a questão do “desocultamento” (Entbergung) do Ser.[4]

Com efeito, para Heidegger existiriam diferentes modos do Ser se manifestar, segundo as características com as quais o desocultamento venha a acontecer em diferentes “épocas”; estes momentos podem ser designados como “diagramas epocais”. Entendemos por diagramas épocais aqueles períodos nos quais surge e se desdobra um determinado modo de desocultamento do Ser e certo tipo de desenvolvimento do espetáculo do mundo ôntico, isto é, o universo daquilo que se apresenta, até seu esgotamento e seu respectivo desaparecimento na espera de outro modo de desocultamento.[5] Trata-se da forma e do sentido ontológico sob os quais o mundo se manifesta em diferentes épocas; ou, dito mais radicalmente: o modo em que as coisas se apresentam com sentido para isto que nós mesmos somos. Colocada a questão desta maneira, se impõe um esclarecimento fundamental com relação ao problema do estatuto “histórico” destes momentos epocais. Este esquema heideggeriano não responde à exigência da filosofia clássica de pensar o mundo sob o prisma de um processo histórico geral e inteligível na sua essência. Pelo contrário, a forma de “historicidade” que se constitui e caracteriza através dos diferentes diagramas não opera como uma linha neutra de tempo que seria externa ao próprio diagrama, em sentido oposto, é o modo do desocultamento que abre e define a forma histórica de uma época. Não se trata da “historiografia” como sucessão de eventos encadeados e reconhecíveis, mas da historicidade como teatro das formas de manifestação do Ser.[6]

É no âmbito deste horizonte conceitual, que a técnica é definida como um “diagrama epocal do desocultamento” e tal vez, como pretendemos mostrar mais adiante, o mais decisivo. Ora, no que corresponde estritamente à esfera técnica, como pensar este diagrama epocal por ela desdobrado?

Comecemos, pois, com as palavras com as quais o próprio Heidegger abre sua conferencia do dia 18 de novembro de 1953 intitulada: A questão da técnica.

A seguir, questionaremos a técnica. O questionar constrói num caminho. Por isso é aconselhável, sobretudo, atentar para o caminho e não permanecer preso a proposições e títulos particulares. O caminho é um caminho de pensamento. Todos os caminhos de pensamento, mais ou menos perceptíveis, passam de modo incomum pela linguagem. Questionamos a técnica e pretendemos com isso preparar uma livre relação para com ela. A relação é livre se abrir nossa existência (Dasein) à essência da técnica. Caso correspondamos à essência, estaremos aptos a experimentar o técnico (das Technische) em sua delimitação (Heidegger, 1997, p. 42).

A questão com a qual é aberta esta reflexão por parte de Heidegger e tão clara quanto decisiva: qual é a essência da técnica? “A essência de algo vale, segundo antiga doutrina, pelo que algo é. Questionamos a técnica quando questionamos o que ela é” (Heidegger, 1997, p. 43).

É deste modo, e com esta drástica simplicidade, que o pensar acerca da técnica deixa de ser um problema meramente “instrumental”, para tornar-se um questionar pelo seu fundamento ontológico. A sentença heideggeriana que inaugura este deslocamento reflexivo é tão densa quanto lapidar: “a essência da técnica não é técnica”.

A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. Quando procuramos a essência da árvore, devemos estar atentos para perceber que o que domina toda a árvore enquanto árvore não é uma árvore, possível de ser encontrada entre outras árvores.

Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentamos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagamos o que é técnico, satisfizermo-nos com a técnica ou escaparmos dela (Heidegger, 1997, pp. 42- 43).

Um novo conjunto de possibilidades se abre no campo da própria filosofia da técnica. No interior da pergunta heideggeriana, não é mais possível pensar a técnica desde a própria técnica, nem com ferramentas de reflexão que partem da técnica como pressuposto. Por este mesmo motivo, é absolutamente inútil, para Heidegger, e desde o ponto de vista de um questionar radical, pensar a técnica como sendo o conjunto dos meios materiais para que, através de certo fazer, o homem consiga alcançar determinados fins.

Todos conhecem os dois enunciados que respondem à nossa questão. Um diz: técnica é um meio para fins. O outro diz: técnica é um fazer do homem. As duas determinações da técnica estão correlacionadas. Pois estabelecer fins e para isso arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano […]

A concepção corrente de técnica, segundo a qual ela é um meio e um fazer humano, pode, por isso, ser chamada de determinação instrumental e antropológica da técnica (Heidegger, 1997, p. 43).

Estamos assim no limiar do deslocamento proposto por Heidegger na sua abordagem da técnica. Para superar esta concepção corrente da técnica, segundo o pensador alemão, será necessário dar um passo atrás na reflexão e interrogar o âmbito onde esta própria concepção instrumental-antropológica se enraíza. Isto implica que se trata, agora, de questionar, num sentido geral, o modo sob o qual este ente que nós mesmos somos se constitui, e ao mesmo tempo se relaciona com as coisas e seu sentido enquanto mundo. Ora, ao falar da relação entre mundo e coisas por um lado, e o Dasein por outro, aquilo que imediatamente é colocado em pauta é a forma de verdade que se mobiliza nesta relação.

Efetivamente, a técnica moderna é uma forma nova de desocultamento do Ser, isto é, em certo sentido, um novo modo de “verdade”.

A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade (Heidegger, 1997, p. 53).

Isto é assim porque, para Heidegger, a verdade não se baseia nem no princípio de adequação nem num esquema da revelação, mas, justamente, acontece no “desocultamento ou desabrigar”. Deixar que a “coisa seja”, insiste Heidegger, isto é, permitir que o ente recorte sua verdade sobre o fundo do Ser, sob a diferença do Ser, sempre oculto. Manifestação no ocultamento do Ser sob o aparecimento do ente. Este dinâmica proposta por Heidegger do ocultamento e desocultamento entre o Ser e o ente, ou, segundo os próprios conceitos heideggerianos, entre o ôntico e o ontológico, constitui o centro da noção do pensador alemão sobre a verdade, aquilo que se deu em chamar, de modo vago e não pouco problemático: “o retorno à concepção originária grega de verdade”. Heidegger mostra a articulação entre a questão da técnica e a noção de verdade por ele postulada do seguinte modo:

Havíamos dito, contudo, que a determinação instrumental da técnica estava correta. Com certeza. A certeza afirma sempre alguma coisa que é adequada ao que está à frente. Mas, para ser correta, a afirmação não necessita de modo algum desocultar em sua essência o que está à frente. Somente onde um tal desocultamento acontece dá-se o que é verdadeiro. Por isso, o que é meramente correto ainda não é o verdadeiro. Somente o verdadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a partir de sua essência (Heidegger, 1997, p. 45).

Colocado deste modo, torna-se evidente que o questionar da verdade da técnica não admite uma abertura proveniente da própria certeza que os saberes sobre a técnica mantêm com relação a ela mesma. Assim, por exemplo, a técnica não pode ser entendida desde a própria tecnologia moderna e seus pressupostos, nem sua essência interrogada com análises baseadas em concepções epistemológicas construídas desde a ciência moderna para definir a técnica na sua relação com ela, isto é, a Técnica entendida como tecno-ciência.[7] Ora, do mesmo modo que a possibilidade de pensar a técnica não se encontra na própria técnica, esta possibilidade tampouco se encontra no simples abandono dela a partir de uma escolha volitiva que nos levaria a promover um olhar “exterior” à técnica -entre outros motivos, porque tal abandono não parece possível neste ponto histórico, dado seu estado atual de desenvolvimento. Segundo um caro exemplo heideggeriano, a superação desta forma de aporia, passa por “transcender a situação”: do mesmo modo que a dor não é realmente eliminada fugindo da situação que a origina, mas enfrentando-a até objetivá-la, isto é, até sua transformação em uma dor simplesmente observada, de forma que o sujeito estabeleça uma distância entre ele e a presença persistente da coisa, assim deve ser feito, do mesmo modo, com a técnica.[8]

De qualquer modo, esta curiosa forma de transcender um problema mediante sua observação calma, assemelhando o estado contemplativo é a estratégia de abordagem que propõe Heidegger com respeito à técnica: contemplar a técnica, experimentar tranqüilamente sua presença utilizando os sentimentos e o intelecto como barreiras protetoras frente à sua irremediável agressão. Assim, para Heidegger, o distanciamento que procura a serenidade (Gelassenheit) do pensar é o único pharmacon efetivo quando defrontados com a inexorável presença das coisas perante a consciência, neste caso específico, da vasta técnica moderna.

Enfim trata-se, com Heidegger, de pensar a essência da técnica, isto é, sua verdade, como forma epocal do desvelamento, com a serenidade que nos permite vivenciá-la não de fora, mas desde o seio de seu modo de aparecer, ou nas palavras de Heidegger na citação anterior: numa livre relação com o que nos toca, dado que: “Técnica é um modo de desabrigar. A técnica se essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o desocultamento, onde acontece a Aletheia” (Heidegger, 1997, p. 56).

A essência da técnica

Para Heidegger, o modo de ser técnico ‒a técnica contemporânea‒ comporta uma irredutível singularidade; por outro lado, e em decorrência deste traço singular, a época da técnica nos ameaça de modo total.

“O que é a técnica moderna? Também ela é um desabrigar. Somente quando deixarmos repousar o olhar sobre este traço fundamental, mostrar-se-á a nós a novidade (Neuartige) da técnica moderna”. Analisaremos a continuação e estrutura que sustenta esta afirmação (Heidegger, 1997, p. 57).

A mais decisiva característica deste modo de desvelamento é a de obrigar ao ente a se manifestar como fonte de energia passível de ser armazenada para, depois, ser libertada de um modo abstrato e indeterminado. O epifenômeno deste processo visa à transformação ou determinação das coisas na forma que mais convenha à própria técnica a través da operação do homem de acordo com seus fins, como afirmam as concepções clássicas de técnica que anteriormente mostrávamos. Ora, o que possibilita este modo de se manifestar da técnica e, justamente, o âmbito anterior do desabrigar. A técnica moderna desoculta o Ser e deixa aparecer o ente provocando-o, interpelando-o e, assim, o descaracteriza e especifica tantas vezes quanto o homem quiser, e sob o aspecto que deseje. A técnica descobre, transforma, acumula e distribui as coisas segundo fins e objetivos específicos e calculáveis.

O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poesis. O desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar (Herausfordern) que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal (Heidegger, 1997, p. 57).

Segundo esta verificação heideggeriana, a coisa deixa de ser o que ela poderia ser como possibilidade, tanto em sua singularidade quanto em seu sentido genuíno. Inexorável, a técnica mostra as entranhas da coisa, agora nomeada como “objeto”, sua intimidade tornada estrutura inteligível e numérica, a coisa como simples parte da matéria, fragmento anônimo e quantificável do mundo natural. A técnica já não cria coisas únicas e ao mesmo tempo indeterminadas pela multiplicidade de seus eventuais usos, pelo contrário, produz desde a operação daquilo que Heidegger chama de “subsistência” (Bestand), um constante depósito de objetos sempre disponíveis, sempre prontos para serem manipulado e descartado; o subsistente.

O que assim é invocado tem sua própria posição (stand). Nomeamos essa posição de subsistência (Bestand). A palavra significa aqui algo bem mais essencial do que somente “previsão”. A palavra “subsistência” eleva-se agora à categoria de um título. Ela significa nada menos do que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desabrigar desafiante se essencializa (Heidegger, 1997, p. 61).

Para Heidegger, uma situação tal nunca tinha acontecido antes na história, dado que, em outros períodos epocais, cada matéria, cada coisa, podia manter sua especificidade ao entrar em uma relação, ainda que de serviço, com o homem, um serviço limitado e que não oblitera a abertura ao mundo do qual faz parte. Assim, o vento continuava a falar entre as pás do moinho; e na estátua de mármore e na construção de granito, a rocha continuava a se manter, como ela mesma, e a partir dela mesma, para citar figuras caras a Heidegger.

Contrariamente, com a técnica moderna tudo é transformado em depósito ou disponibilidade, posto para o consumo e a utilidade segundo fim.

O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do desafio. […] O pôr que desafia as energias naturais é um extrair (Fördern) em duplo sentido. É um extrair na medida em que explora e destaca. Este extrair, contudo, permanece previamente disposto a exigir outra coisa, isto é, impelir adiante para o máximo proveito, a partir do mínimo de despesas. O carvão extraído da reserva mineral não é posto para que esteja, apenas em geral e em qualquer lugar à mão. Ele é armazenado, isto é, posto para o calor que está encomendado para gerar vapor, cuja pressão impele a engranagem por meio da qual a fábrica permanece operando.

A central hidroelétrica está posta no rio Reno. Ela coloca (stell) o Reno em função da pressão de suas águas fazendo com que, deste modo, girem as, turbinas […]. A central hidroelétrica não esta construída no rio Reno como a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que está construído na central elétrica (Heidegger, 1997, pp. 58-60).

Em última instância, trata-se de uma determinada forma de desocultar o ser: o desvelamento como total “disponibilidade” (Gestell) ou “plasticidade”; o Ser como utilidade e o ente como mero útil. Mas a disponibilidade ou a utilidade não são, elas mesmas, nada de técnico na sua essência, pelo contrário, elas mesmas operam a modo de condição de possibilidade, ou, para sermos mais específicos, como sendo a própria essência da técnica. Assim, é a “atitude tecnológica” perante o mundo o que opera como precondição ou marco “transcendental” da compreensão, dentro da qual o real é desocultado ou manifestado modernamente como mundo técnico.

Por outro lado, qualquer modo de diferenciação autêntica na esfera do ôntico é abortado desde uma homogeneização operada no modo de desocultamento ontológico técnico. Desta sorte, para Heidegger, uma das características fundamentais da época técnica é a uniformização de qualquer singularidade, tudo se torna matéria de troca e de equivalências, “cálculo”. Porque tudo é homogêneo, tudo pode ser trocado e funcionalmente substituído, mas qualquer intercambio é sempre precedido por um cálculo; a técnica calcula, e onde o cálculo impera, o pensar é suspenso. Assim, a operação de um constante calcular é o modo de banir do espírito de um povo o espaço para o autêntico pensar.

Surge então o interrogante maior; como o homem chegou a este estado lamentável para ele e paro o pensar que lhe outorga autenticidade? Poderíamos ter escolhido, isto é, tínhamos alternativa, ou estávamos, desde o princípio, condenados a este “destino”? Esta é, justamente, a categoria que está em jogo no centro da questão: Geschick, canonicamente traduzida como destino.

A essência da técnica moderna repousa na armação. Esta pertence ao destino do desabrigar. Os enunciados dizem outra coisa do que diz o discurso muitas vezes constante, de que a técnica é o destino de nossa época, onde destino designa algo que não pode ser desviado de um transcurso inalterável (Heidegger, 1997, p. 55).

A técnica é um destino, há uma instância que poderíamos chamar com o neologismo destinal, no desocultamento, mas para Heidegger ‒e isto é o profundamente novo‒, o destino não é uma fatalidade uma necessidade sem solução. Trata-se de uma forma destinal que comporta no seu seio a possibilidade de toda liberdade verdadeira, no sentido do desabrigar. Quanto mais o ente que nós mesmos somos sabe e consegue escutar e fazer parte da verdade do desocultar, mais livre e autêntico se torna. A liberdade não é um ato volitivo, resultado de uma vontade independente, mas uma co-participação do homem na clareira do Ser entendida como iluminação a partir do desocultamento ontológico.

A essência da liberdade, originariamente, não está ordenada segundo a vontade ou apenas segundo a causalidade do querer humano.

A liberdade domina o que é livre no sentido do que é focalizado, isto é, do que se descobre. A liberdade está num parentesco mais próximo e mais íntimo com o acontecimento do desabrigar, isto é, da verdade. Todo desabrigar pertence a um abrigar e ocultar. Mas o que está oculto e sempre se oculta é o que liberta, isto é o mistério. Todo desabrigar surge do que é livre, vai para o que é livre e leva para o que é livre (Heidegger, 1997, p. 57).

Deste modo, o homem não pode escolher os caminhos do desocultar – que, por outro lado, são vários-, só pode reconhecer e “escolher” participar no desocultamento, e, neste participar, reconhecer o oculto, aquilo que se mantém em reserva. A escolha do homem é vinculada a sua capacidade de escutar o Ser e nesta escuta se libertar, e não na pretensiosa possibilidade de escolher os destinos do mundo.

Mas se pensamos a essência da técnica, então experimentaremos a armação como um destino do desabrigar. Assim, já nos mantemos na liberdade do destino que de modo algum nos aprisiona numa coação apática, fazendo com que perpetuemos cegamente a técnica ou, o que permanece a mesma coisa, nos insurjamos desamparadamente contra ela e a amaldiçoemos como obra do diabo. Ao contrário: se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora (Heidegger, 1997, p. 58).

A consequência desta perspectiva é vital para o pensar heideggeriano, dado que implica o abandono da noção de “sujeito” moldada pela modernidade. Com efeito, não se trata de um sujeito volitivo entendido como causa movens originária e de um mundo assumido como resultado, como efeito desta forma de vontade subjetiva.

Assim, levando em conta este deslocamento em relação ao sujeito, somos obrigados a dar um passo a mais. Pensar a técnica de modo radical visando a desvendar seu estatuto ontológico implica reconduzir o olhar até um ponto além, ou aquém, daquele “limite natural” da Modernidade chamado de Sujeito, e inclusive de suas formas “deveis”, os modos de subjetivação. Em um sentido mais genérico, quer dizer que qualquer forma de antropologização deve ser considerada de ordem derivada; isto é, podemos pensar inclusive no advento de formas singulares de subjetivação, segundo certas formulações contemporâneas, mas estas não formam a instância ontológica central para começar a pensar a técnica. Com efeito, como demonstra Heidegger, a questão da técnica não é tributária de uma forma “homem” ou, mais pontualmente, “Sujeito” que lhe seja anterior, pelo contrário, adquire seu estatuto próprio no horizonte da interrogação do Ser. Ora, esta perspectiva eminentemente ontológica carrega implicações decisivas em aspetos relativos ao que poderíamos chamar de destino histórico de Ocidente[9]. Uma delas, talvez a mais escandalosa para alguns setores do pensar, é o fato da impossibilidade de organizar um corpus ético ou moral em relação à técnica. Com efeito, entendida como desocultamento destinal que expõe o ente sob o modo da interpelação e o cálculo, independente de qualquer ato de volição individual ou coletiva, a técnica não comporta variáveis morais, dado que toda esfera moral ou ética implica um sujeito como agente ‒seja este passivo ou ativo‒ da atividade e do comportamento. Não é viável predicar do mundo técnico um conjunto, ainda que reduzido, de valorações éticas ou morais porque falta o alicerce fundamental onde ancorar a rede de atividades derivadas destes valores: falta o sujeito da moral e do agir. Ora bem, qualquer cartografia que vise expor as linhas centrais da abordagem da técnica promovidas pelos mais variados agentes e saberes, mostrará que estas se articulam, em geral, a partir de um campo conceitual que pressupõe uma antropologia geral, e, por esse motivo, subsidiário da operação de uma antropologia filosófica. Parece claro que, de algum modo, e em algum momento, o homem deve estar presente, como agente que mobiliza ou cria a técnica, como responsável moral, ou como destinatário de suas vantagens ou tragédias. Nenhuma destas formas sobrevive em Heidegger.

Verificamos neste breve percurso pela questão da técnica em Martim Heidegger, que o horizonte para o qual o pensador alemão conduz a reflexão se constitui num ponto sem retorno, um limite. A radicalidade do pensamento heideggeriano leva a interrogação até suas últimas consequências pensáveis em termos ontológicos. E, no entanto, continua a ser um limite; a questão heideggeriana que interroga a técnica possui, ela mesma, sua própria margem e sua própria exterioridade. No que segue, percorreremos um destes limites da reflexão heideggeriana.

O perigo da técnica e um limite possível de Heidegger

É habitualmente repetido ‒desde que Heidegger o anunciou pela primeira vez de modo lapidar‒ que algum acréscimo significativo deve ser articulado no postulado básico que indica que a técnica é um modo de desocultamento ontológico, um diagrama epocal determinante de mundo. Este acréscimo declara que a época da técnica não seria um modo qualquer ou um diagrama a mais, senão um horizonte ontológico singular e decisivo, detentor de certos predicados que o fariam único e, quiçá, final, se constituindo, então, num perigo essencial para homem.

Uma vez levado a estas possibilidades, o homem está, a partir do destino, colocado em perigo. O destino do desabrigamento é, enquanto tal, em todos os seus modos, um perigo, e, por isso, necessariamente um perigo.[10]

O destino do desabrigar não é em si qualquer perigo, mas é o perigo (Heidegger, 1997, pp. 59, 61).

Tratar-se-ia do lugar e o momento onde o pensamento não possui já espaço; ou o modo onde o acabamento do horizonte de sentido deste mundo poderia ser levado à sua concretização. A técnica comporta o poder de acabar com o pensar e com o Mundo como mundo de sentido para este ente que nós mesmos somos. Isto porque, enquanto modo de desocultamento ontológico, a técnica tornar-se-ia a determinante de certo “sentido do Mundo”; a técnica “mundifica”, diz Heidegger, mas mundifica “de modo total”.

A armação, porém, não põe apenas em perigo o homem em sua relação consigo mesmo e com tudo o que é. Enquanto destino, ela aponta para o desabrigar do tipo do requerer. Onde este desabrigar impera, toda possibilidade diferente de desabrigar é afastada; sobretudo, a armação oculta aquele desabrigar que no sentido da poesis deixa surgir-à-frente no aparecer aquilo que se apresenta. Em comparação com isso, o pôr que desafia impulsiona na relação oposta para aquilo que é. Onde impera a armação, todo desabrigar é marcado pela cobrança e segurança da subsistência (Heidegger, 1997, p. 63).

A técnica implicaria, então, o “máximo perigo”, dado que possui o “poder” de acabar com o pensar e com o mundo como Mundo do filosofar fundamental, aquele que, eventualmente, poderia se abrir à questão do Ser. A técnica interpela, exige ao ente que se “apresente”, que se coloque segundo o modo da utilidade e do cálculo, isto é, segundo a perspectiva da impossibilidade do desocultar originário. A técnica, enquanto “destinal” é, ao mesmo tempo, o modo “mais perigoso” do desvelamento, posto que exige e condena ao ente na sua totalidade a recortar-se sobre um determinado modo de apresentação e, por tanto, um modo de ser que inibe qualquer acesso à clareira do Ser.

Tão logo o que estiver descoberto não mais interessar ao homem como objeto, mas exclusivamente como subsistência, e o homem no seio da falta de objeto apenas for aquele que requer a subsistência –o homem caminhará na margem mais externa do precipício, a saber, caminhará para o lugar onde ele mesmo deverá apenas ser mais tomado como subsistência. Entretanto, justamente este homem ameaçado se arroga como a figura do dominador da terra (Heidegger, 1997, p. 63).

Duas perigosas leituras poderiam ser reivindicadas seguindo esta interpretação.

Uma primeira leitura poderia indicar que Heidegger estaria operando a partir de um pressuposto implícito e arriscado: aquele que afirma a “possibilidade de pensar a totalização do Ser” e a homogeneidade de seu desocultamento. Com efeito, o vigor heideggeriano na exposição dos perigos da técnica pareceria indicar que além do espaço por ela mesmo aberto, nada de nobre ou de fundamental, em relação ao homem, poderá subsistir; isto é, com a expressão “domínio total e global da técnica”, Heidegger estaria indicando um modo de desocultamento que, por fim, haveria homogeneizado todo o existente sob uma única rubrica ontológica. A técnica, então, seria assumida como o primeiro e único diagrama epocal de desocultamento ontológico a conquistar a eliminação da pluralidade e da diferença. Caso assim fosse, a hipótese do fim da filosofia e do pensar, efetivamente, se teria efetivado; nada poderia ser feito para escapar desta ruinosa situação derivada da proeminência inusitada e brutal de um diagrama árido e impositivo. A técnica seria, de qualquer sorte, um verdadeiro e derradeiro destino, não já a morada do Ser, mas o sarcófago do pensar. O mundo do Dasein teria perdido a possibilidade de aceder à clareira, (lichtung) fundamental; assim, o domínio global da técnica deveria ser lido, melhor, como metáfora da trágica clausura do pensar.

A armação impede o aparecer e imperar da verdade. O destino, que no requerer manda (schickt), é, assim, o extremo perigo. A técnica não é o que há de perigoso. Não existe uma técnica demoníaca, pelo contrário, existe o mistério da sua essência. A essência da técnica, enquanto um destino do desabrigar, é o perigo. Agora, quem sabe, a mudança de significado da palavra “armação” torna-se um pouco mais familiar para nós, quando a pensamos no sentido do destino e do perigo.

A ameaça dos homens não vem primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica cujo efeito pode causar a morte. A autêntica ameaça já atacou o homem em sua essência. O domínio da armação ameaça com a possibilidade de que a entrada num desabrigar mais originário possa estar impedida para o homem, como também o homem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdade mais originária (Heidegger, 1997, p. 65).

Ora bem, duas questões levantadas pelo próprio Heidegger nos permitem, com certa tranqüilidade, aliviar esta perspectiva finalista e, ao mesmo tempo, instaurar certa tensão na reflexão; aquilo que aqui definimos como limite. Ambas as questões ás quais apontamos são colocadas sob o signo geral da letra de Hölderlin, citada pelo próprio Heidegger, a já famosa: “Mas, onde há perigo, cresce também a salvação” (trecho do hino Patmos, segunda versão).

A primeira é mais clara e quase histórica; com efeito, não podemos esquecer que, para Heidegger, os modos do desocultamento são plurais e variados, e que se “sucedem”, como já antecipamos, sem relação causal. Não havendo uma relação causa-efeito não é possível postular um caminho ou uma via central que conduza os destinos do desocultamento até um ponto determinado ou até uma conclusão que simplesmente oblitera. Os modos epocais do desocultamento ontológico não respondem a uma lógica histórica baseada, por sua vez, em uma lógica teleológica dinamizada em um modelo causal. Assim, a dinâmica epocal é pensada fora de qualquer processo teleológico que procuraria seu ponto final, seja este majestoso ou patético. Portanto, a época da técnica não deve ser caracterizada como porto de chegada nem como forma de acabamento ou completude de certo processo. Podemos fundamentar melhor isto recordando o acima indicado, isto é, que o modo destinal não é, para Heidegger, uma simples necessidade ou obrigatoriedade histórica baseada na preeminência do presente como leitor do passado. Neste sentido, esclarece Jaques Taminiaux: “Por outras palavras, graças a uma reapropriação transformada não apenas das noções aristotélicas de poiesis e poinon como também da noção aristotélica de Theoria. É em função do tempo, insiste a introdução ao curso sobre O Sofista […]” (Taminiaux, 1995, p. 163). E, citando ao próprio Heidegger nos Cursos de Marburgo:

[…] O Ser é compreendido a partir do presente, ingenuamente a partir do fenômeno do tempo no qual, todavia, o presente e apenas um modo. Questão: como é que o presente tem esse privilégio? Não tem o passado e o futuro o mesmo direito? Não é preciso compreender o Ser a partir do conjunto da temporalidade? (Taminiaux, 1995, p. 163).

Neste sentido, a variedade de modos epocais ‒bem como sua não articulação teleológica‒ se constituem, então, como tópicos heideggerianos nevrálgicos para escapar do pressuposto da técnica como totalizante.[11] A aporia que nos parece subsistir neste recorte, que analisaremos mais abaixo se organiza em torno do problema da existência de uma história identitária do Ser em Heidegger.

Com relação à segunda questão que nos permitiria escapar de uma eventual leitura finalista de Heidegger, sem dúvida a mais importante para nossa perspectiva de trabalho, a mesma passa pela afirmação de que tanto os modos épocais do desocultamento, quanto a historia do esquecimento do Ser, não são homogêneos, pelo contrario, eles carregassem fendas e dobras. Neste sentido, é pensar, sem trair exageradamente a Heidegger, que nunca houve homogeneização do Ser em seus modos de desocultamento. Por tal motivo, tampouco o desabrigar técnico, isto é, o “domínio” da técnica contemporânea, comporta uma abrangência “planetária ou totalizante” em termos ontológicos.

Se a essência da técnica, a armação, é o estremo perigo e se a palvra de Hölderlin diz ao mesmo tempo algo de verdadeiro, então o domínio da armação não pode se esgotar em apenas obstruir todo brilhar de cada desabrigar e todo aparecer de verdade. Então, a essência da técnica deve antes justamente abrigar em si o crescimento daquilo que salva.

Assim, a essencialização da técnica abriga em si o que menos poderíamos supor, o possível emergir da salvação (Heidegger, 1997, p. 82).

Há ‒ou poderia haver‒ mundo, no sentido de abertura mundificante, fora de certo modo proeminente de desocultamento, bem como certa interioridade diferenciada. Portanto, seria possivel dizer, com mais precisão, que quando Heidegger fala de modos de desocultamento do Ser em termos gerais, e de modo técnico em particular, não esta pressupondo a absoluta e total presença deste modo no mundo. Não se trata de uma camada ontológica homogênea e completa que deixaria aos entes aparecerem sob uma perspectiva unificada. Trata-se, na realidade, de uma preponderância ou proeminência de um modo de aparecimento das coisas sob a luz do desocultar-se do Ser, mas não de uma tipologia geral e universal. Os modos epocais sempre comportaram fissuras e diferenças que não são da mesma natureza do desocultamento preponderante.

Tudo isto nos coloca perante um problema que deve ser resolvido desde outra perspectiva, dado que, como consequência destas máscaras de oxigênio que Heidegger nos coloca, se cria uma tensão entre o máximo perigo anunciado e a não menos anunciada possibilidade da salvação. A questão é que ainda devemos pensar em termos de salvação. “‘Salvar’, porem, diz mais. ‘Salvar’ é: recolher na essência para assim primeiramente trazer a essência a seu autêntico aparecer” (Heidegger, 1997, p. 82). Perigo e salvação andam ombro com ombro no modo de desocultar técnico. Como isto é possível sem um plano de fundo que possibilite esta co-participação?

Sabemos que não existe na reflexão heideggeriana uma história teleológica baseada em relações causais, isto é, uma historiografia. No entanto, uma forma de historicidade é delineada com passos firmes por Heidegger, alguma coisa de historiografia parece subsistir no espírito do grande professor alemão; referimos-nos àquela que se cifre na expressão “história do esquecimento do Ser”, da qual a época da técnica seria o último e mais radical estágio. É bem conhecido que para Heidegger a história da filosofia pós-socrática se confunde com a história da metafísica, e esta, por sua vez, com a história do esquecimento do Ser. Ora, como Heidegger chega a esta constatação especulativa? Por outro lado, quais são os pressupostos que trabalham nesta verificação heideggeriana?

A questão central é aquela que gira em torno da “decisão” de Heidegger de traçar uma história que procure o idêntico no horizonte da diferença, e não vice-versa. Com efeito, expor a história do esquecimento do Ser implica procurar, na vastidão do pensar, aquilo que há de idêntico, que se impõe como mesmidade; procurar na sutileza da vida e da filosofia, aquilo que se repete como norma ou padrão. Indicamos mais arriba que o próprio Heidegger nos permitia pensar na não homogeneidade dos modos de desocultamento, que os diagramas epocais comportam fendas e complexidades intrínsecas. Apesar desta possibilidade especulativa, Heidegger prefere elaborar a história do comum, daquilo que insiste e se repete como idêntico, ou seja, do esquecimento do Ser, em lugar de desenhar o mapa dos lugares onde o pensar permitiu o surgimento da diferença, do excêntrico com relação ao modo geral do esquecimento. Heidegger nos expõe como, historicamente, é possível pensar, e mostrar, que o Ser foi esquecido, mas não nos apresenta os momentos ou as circunstâncias onde este esquecimento generalizado foi ludibriado pelo diferente, por alguma forma de clinámem. O pensador alemão insiste em marcar o que de idêntico acontece na história do pensar, mas com esse gesto deixa escapar os momentos que poderiam ser utilizados como o mais íntimo motor da reflexão filosófica. Parece como si na história identitária elaborada por Heidegger, a fenda que permite abrir o pensar é subestimada. O pensador da diferença mais radical, a diferença ontológica, parece “esquecer” a diferença quando ela irrompe no horizonte do pensamento; mas, o próprio “salto atrás” que Heidegger propõe como modo de abrir o espaço para o pensamento, não é já uma das expressões da diferença? Acreditamos que sim. Por isto insistimos na sua importância, e na falta de reivindicação ontológica por parte de Heidegger.

Assim, não há em Heidegger teleologia, nem unicidade nas formas de desocultamento; mas, por outro lado, há uma tentativa rigorosa de expor uma linhagem baseada na identidade, e não uma carta de navegação pensada a partir da diferença.

Este limite merece ser abordado, verificado e, eventualmente, pensado.

Considerações finais

Com consequência da reflexão heideggeriana sobra a técnica, torna-se imperioso reconhecer que a mesma não se resume a seu corpus fenomenológico, nem a seu aparecimento ôntico nos diversos dispositivos e apetrechos manufaturados; por outro lado, suas forças não se esgotam em um “esgotamento” generalizado do pensar.

Assim, coloquemos mais uma questão: que sucederia se a técnica nada acabasse, nem nada impossibilitasse, mas, pelo contrário, permitisse a emergência fática e dinâmica de um modo de ser que, em lugar de representar o máximo perigo, nos exigisse pensar desde outro horizonte sua própria chave ontológica?

Acreditamos, justamente, que esta é a perspectiva mais pertinente para pensar a questão da técnica, isto é, não observar aquilo que ela clausura, mas aquilo que ela abre. Nada se fecha necessariamente, pelo contrário, a técnica também “produz”.

Assim, sob este paradigma, a própria Técnica poderia criar a “condição de possibilidade” para a salvação do “pensar fundamental” sob outro signo e sob outros modos de desocultamento, diríamos, continuando com a terminologia heideggeriana. Na própria Técnica se engendraria o modo de escapar da Técnica como fechamento.

A salvação não cresce do perigo, cresce “onde há perigo”; cresce quando, no seio do atroz, se abre um espaço. Este espaço foi nomeado de vários modos: o salto atrás, a reserva, o incontornável como inacessível, a fenda, a dobra ontológica; trata-se de alguns dos vastos nomes da Diferença.

Enfim, tal vez seja preciso verificar com mais pausa e mais cuidado de aquele que é permitido pelas margens deste trabalho, quais são as implicações de uma eventual regência de uma forma de identidade no seio da ontologia fundamental e quais poderiam ser as consequências para o pensamento da técnica desta pegada identitária.

Por essa via poderíamos extrair as maiores e mais férteis consequências daquilo que o próprio Heidegger manifestou explicitamente quando postulou que a Técnica poderia engendrar sua própria superação, ou até a salvação do pensar. Nas afirmações sobre a capacidade criadora do modo técnico, e não só sobre sua capacidade destruidora, Heidegger deixa entrever, implicitamente, esta possibilidade, dado que, na verdade, é a história da Metafísica a que está em jogo. Assim, a Técnica seria para o horizonte metafísico, seu ponto mais desenvolvido, bem como seu pomposo final. Deste modo, devemos lembrar que: “[…] poeticamente habita o homem sobre esta terra”. E, por esse motivo, nos diz o filósofo, citando o poeta e não mais à filosofia: “Mas, onde há perigo, cresce, também, a salvação” (Heidegger, 1997, p. 91).

Referências bibliográficas

Brüseke, F. J. (2001). A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Editora da UFSC.

Derrida, J. (1989). Del Espíritu Heidegger y la pregunta. Valencia, Tradução: Manuel Arranz: Pré-Textos.

Heidegger, M. (1997). “A questão da técnica”. En Cadernos de Tradução n° 2. Tradução: Marco Aurélio Werle. São Paulo. DF/USP.

Heidegger, M. (1997). “La cosa”. En Conferencias y artículos. Tradução: Eustaquio Barjau. Barcelona: Ediciones Del Serbal.

Mitcham, C. (1989). Qué es la filosofía de la tecnología? Tradução: César Cuello Nieto. Barcelona: Ed. Anthropos.

Ortega y Gasset, J. (1991). Meditação sobre a técnica. Tradução: José Francisco P. de Almeida Oliveira. Rio de Janeiro: Instituto Liberal.


  1. Ortega y Gasset, J. Meditação sobre a técnica. Rio de Janeiro 1991, Instituto Liberal.
  2. É evidente que, por outro lado, a técnica deflagra profundas modificações políticas e éticas no horizonte de nossa contemporaneidade. São conhecidos e amplamente debatidos os problemas decorrentes da “necessidade” de estabelecer limites pautados em análises éticas para a pesquisa, criação e uso de dispositivos e procedimentos técnicos, em particular no que se refere à relação dos artifícios técnicos com a corporeidade biológica por um lado, e com a possibilidade de pensar autonomamente, por outro. Do mesmo modo, no plano do estritamente político, a técnica nos propõe desafios conceituais; questionamentos sobre a propriedade do conhecimento e da produção técnica, sobre sua relação com as regulações emanadas do Estado, sobre sua produção concreta de poder e de controle sobre o coletivo, entre outras questões urgentes, são mobilizadas pela presença hipertrofiada do técnico na nossa vida. Neste sentido, a filosofia pensa ética e politicamente a técnica. Deixamos, por questões de foco e de espaço, estas esferas de análise para outra reflexão.
  3. É verdade que, de várias formas, a preocupação já pairava no clima espiritual da época na qual Heidegger deflagra sua análise, especialmente na Alemanha de Weimar, e naquela outra Alemanha que a sobreviveu, aquela dos eventos sem retorno. Para uma abordagem mais detalhada, ver Brüseke, 2001, pp. 10 ss.
  4. Seguimos aqui a tradução proposta pelo Professor Benedito Nunes em seus vários trabalhos sobre Heidegger para o neologismo Entbergung criado por Heidegger. Com relação à mesma problemática de tradução, em circunstâncias específicas, o professor Marco Aurélio Werle utiliza a expressão dês-abrigar ou desabrigar, junto com desocultar, em particular para traduzir Entbergen.
  5. A relação entre os diferentes diagramas epocais não deixa de ser uma questão maior no pensamento de Heidegger. Não sendo este nosso tema principal, nos limitemos a ressaltar, por enquanto, que, sob hipótese alguma esta relação deve ser pensada como uma evolução ou como uma relação causal simples. Voltaremos brevemente a este ponto mais adiante.
  6. Segundo diversos comentadores e tradutores, existiria todo um complexo jogo expressivo e semântico elaborado por Heidegger acerca desta questão. Assim, o filósofo mobiliza os diferentes sentidos e etimologias das expressões alemãs historisch; geschichtlich; geschichte e geschick. Ver nota nº 9 in Heidegger, 1997, p. 69.
  7. É justamente isto que sucede quando a tecnologia ‒isto é, a aliança entre técnica e ciência‒ se erige em paradigma de toda ação, resultando, portanto, mais um modo do dogmatismo objetivado que não admite outra leitura que não seja sua própria, e que se torna, além do mais, incapaz, de reconhecer-se a si mesmo como dogma.
  8. Um dos mais destacados representantes da filosofia da técnica, Carl Mitcham (1989, pp. 70 ss.), entende que esta estratégia geral heideggeriana consistiria, em certo sentido, em defender o Eu da presença impertinente de uma realidade, transformando-a em objeto de contemplação, isto é, neutralizando sua ação causal mediante sua transcendentalização (presenciar a presença).
  9. Neste sentido, mais uma vez, é possível afirmar que sua reflexão se encontra em alguns pontos com a de Ortega.
  10. Itálico no original, negrito nosso.
  11. E, no entanto, nos resta ainda o acaso, caso Heidegger nos permita este modo de expressão; com efeito, dito todo o anterior, ainda poderíamos pensar que, não por determinação de um processo causal, mas por puro acaso, chegamos a um fim. De qualquer modo, a técnica, em virtude de seu modo totalizante de desabrigar sempre seria um fim, nosso fim enquanto filósofos, enquanto tradição, o como historia da metafísica, mas um fim reconhecível de modo singular sobre outros desaparecimentos epocais. Deixamos esta questão de lado neste ensaio; sua análise nos remitiria a outros textos de Heidegger que não encontram seu lugar no presente recorte.


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