O cinema de Glauber Rocha se inspira
no pensamento de Frantz Fanon
Humberto Alves Silva Junior
Resumo
O presente artigo analisa a influência do pensamento anticolonialista e antirracista de Frantz Fanon sobre a obra cinematográfica de Glauber Rocha, a qual não se resume aos filmes, mas também às reflexões do cineasta a respeito da estética e dos problemas sociais advindos de uma “situação colonial”, expressão utilizada por Fanon em seus livros, como Os Condenados da Terra (1961) e adotada por Glauber em seus artigos sobre cinema político. Além disso o cineasta representou essa “situação” no cinema, através de alguns filmes, como Terra em Transe (1967), no qual é refigurado a pressão dos interesses econômicos externos sobre a América Latina.
Nesse sentido, o neocolonialismo, apresentava características próximas da colonização, uma dominação externa ampla, expressa por uma opressão militar, econômica ou cultural (ou todas elas juntas). No caso da América Latina, os países continuaram de algum modo dependentes em relação aos países ricos e sua pobreza crônica perpetuou-se mesmo depois da conquista da autonomia política.
Outro aspecto importante da influência de Fanon no cinema de Glauber foi a Estética da Fome ou Estética da Violência (1965), manifesto escrito pelo cineasta com o intuito de apresentar suas ideias sobre o tipo de cinema que deveria ser realizado na América Latina, a partir de produções de baixo custo e que abordassem os problemas sociais dos países latino-americanos, e que tinha como principal inspiração o pensamento de Fanon. Não por acaso, a nova arte, inscrita como libertação da consciência estava no horizonte das concepções de Fanon e nas de Glauber. A produção artística era, para ambos, instrumento de combate à intervenção externa e espaço de discussão política.
Nesse manifesto, Glauber problematiza a necessidade da violência como meio de libertar os indivíduos e os países da trama neocolonial, como fez Fanon em suas teorias. Glauber também se apropria da perspectiva de Fanon sobre o racismo. A questão racial e a colonização são problemas interdependentes, esse duplo aspecto é observado na obra de Glauber, tanto em sua teoria estética, quanto na realização de seus filmes.
Glauber representou a situação do negro no cinema, principalmente a religiosidade de origem africana, no qual aborda as questões do transe. De maneira semelhante Fanon estudou os fenômenos de possessão como sintomas de distúrbios psiquiátricos fomentado pelo processo de colonização.
A leitura de Glauber sobre a obra de Fanon é enriquecedora para a compreensão da realidade social dos países latino-americanos, pois recoloca as questões de domínio dos países ricos e a situação do negro inserido na dinâmica do desenvolvimento capitalista, atuando como um ator social marginalizado nas ex-colônias da América Latina ou da África.
Palavras chave
Colonialismo; racismo; Cinema Novo.
Introdução
A obra fílmica e escrita de Glauber Rocha implica em uma teoria estético/social e uma atuação política que extrapola os limites do cinema e pretendia transformar e intervir na realidade, proposta relacionada ao princípio do Cinema Novo, movimento liderado por Glauber. Dentre as diversas influências de seu cinema, o pensamento social de Frantz Fanon foi uma das mais importantes, o principal manifesto de Glauber, Estética da Fome ou Estética da Violência é uma referência evidente à teoria de Fanon, que previa a violência como meio de se contrapor ao domínio colonial, como no caso da luta pela independência da Argélia do jugo francês.
Frantz Fanon, psiquiatra, pesquisou os efeitos psicológicos da submissão das populações dos países pobres aos governos coloniais. De origem martinicana, Fanon apesar de ter sido soldado do exército da França na Segunda Guerra mundial, tornou-se militante de esquerda e teórico sobre a situação dos países colonizados e das questões raciais. Posteriormente participou ativamente da independência da Argélia contra o domínio colonial francês, e elaborou uma teoria sobre o processo da colonização, fundamentada no marxismo. Fanon adota a violência como um dos instrumentos principais no combate ao colonialismo e ao racismo, não apenas como forma de resistência física à intervenção do colonizador, mas sobretudo pelo seu significado simbólico de uma revolta associada à identidade negra e do colonizado.
O trabalho de Fanon teve repercussão nas ciências sociais em um primeiro momento, no período no qual foram escritos os textos teóricos (1951/1961) e que inspiraram as lutas de libertação nacional de alguns países africanos. Por outro lado, Glauber se fundamenta na obra de Fanon para compreender os problemas sociais da América Latina, como fazem atualmente alguns especialistas das teorias pós-coloniais e decoloniais (Luciana Balestrini, Gayatri Spivak, Homi Bhabha e Walter Mignolo para citar alguns exemplos). Fanon, ao lado de Aime Césaire e Albert Memmi são considerados para os pesquisadores dessas tendências teóricas como referências clássicas.
No Brasil, no entanto a recepção das obras de Fanon foi morna, como atesta um artigo do pesquisador Antônio Sérgio Alfredo Guimarães. Segundo o sociólogo havia no Brasil poucos estudos sobre a obra de Fanon durante as décadas de 1960 e 1970, somente em 1968 é que a obra de Fanon passa a ser abordada por cientistas sociais brasileiros e incorporada às reflexões sobre a problemática racial e colonial (Guimarães, 2008).
Glauber analisava o pensamento social de Fanon antes mesmo de sua obra ser sedimentada entre cientistas sociais brasileiros. Através de seus escritos e filmes, o cineasta demonstrava a importância do pensador social martinicano. Em um artigo de 1962 no Diário de Notícias, O Eclipse – espaço funeral, e depois com algumas modificações publicado no livro O Século do Cinema de 1983, o cineasta aborda as ideias de Fanon através do prefácio escrito por Jean-Paul Sartre e reflete sobre os aspectos estéticos do Cinema Novo que começam a se desenhar exatamente naquele período. A perspectiva política de Fanon, a qual problematiza a violência como uma reação ao ataque do opressor, o colonizador ou o capitalista, seduz Glauber:
Nós somos os filhos inquietos do novo mundo – nossa linguagem agora é do ódio e da violência – mas somos também herdeiros de um mundo que nos espanta e humilha. (…) (Rocha, Diário de Notícias, 03/09/1962).
O trecho acima demonstra traços fanonianos, como a busca do “mundo novo”, uma meta revolucionária compartilhada pelo ideário terceiro-mundista e a presença da violência contra o colonizador que, em última instância, era contra a metrópole, por isso sobretudo anticapitalista.
Tanto a dimensão política, quanto a crítica social, do Cinema Novo se expressou principalmente através do manifesto elaborado por Glauber, um cinema que se inseria em um espaço de debate sobre os problemas sociais dos países pobres e nesse sentido, juntamente com outros filmes recuperavam as discussões teóricas sobre a fome, sobre as causas do subdesenvolvimento, sobre os colonialismos.
Contudo, o dado essencial que define o cinema independente na América Latina e o distingue do novo cinema europeu são as péssimas condições de vida da população latino-americana, o subdesenvolvimento. O novo cinema latino-americano concede “lugar a uma sensibilidade fundamentada na simplicidade, na qual as desigualdades e os defeitos de imagem seriam vistos como consequência natural da pintura original das relações sociais” (Figueiroa,2004, p.155). O subdesenvolvimento e a violência são assim incorporados à identidade desse cinema, que representa a dependência econômica e as condições sociais das populações latino-americanas, através de uma percepção comum nas análises sobre a América Latina no período, principalmente a partir da oposição nós/eles, subdesenvolvido/desenvolvido, ocupado/ocupante, muito utilizada nos discursos de perfil anticolonialista.
A situação colonial dava forma ao cinema dos países latino-americanos, o crítico e pesquisador de cinema Paulo Emílio Sales Gomes no livro Cinema: trajetória no subdesenvolvimento coloca o problema da dependência como fator vital para entender a identidade de um cinema de um país ainda colonizado. Segundo Paulo Emílio Sales Gomes, a dominação imperialista foi grande no Brasil devido à semelhança cultural com as nações desenvolvidas ocidentais, tínhamos sempre a imagem do ocupante, segundo os termos de Sales Gomes (Gomes, 2016. p.190). Na relação entre ocupante e ocupado, o cinema do Brasil fica em um impasse, não se realiza como filme estadunidense, europeu, nem mesmo como filme plenamente brasileiro, em virtude da tendência colonialista de copiar. Essa relação de dependência no cinema somente foi enfrentada, segundo Paulo Emílio Sales Gomes, com o Cinema Novo, que passou a expor a realidade social do subdesenvolvido, do ocupado (países subdesenvolvidos).
Marco teórico/marco conceitual
Glauber encarnou o espírito do Cinema Novo descrito anteriormente e na sua reação ao ocupante definido por Paulo Emílio, o cineasta colocou a teoria de Fanon como uma das matrizes de sua proposta cinematográfica, a análise ferina de Fanon sobre o colonialismo é base do principal manifesto do Cinema Novo (Estética da Fome), para analisar o “novo colonialismo”, concepção elaborada por parte principalmente de setores da esquerda.
Na sociologia isso ocorreu através da teoria do neocolonialismo e do subdesenvolvimento e alguns pesquisadores brasileiros analisaram esses problemas, como Florestan Fernandes. Para o sociólogo, os países pobres não seriam capazes de gerar um desenvolvimento integrado, pois sua condição heterônoma, híbrida, impedia de utilizar da melhor maneira o aumento da produtividade. E isso ocorreu ainda no período da colonização e no subsequente período de transição para uma economia primeiro “independente”, depois industrial. Ao abordar a dependência, Florestan Fernandes elabora o conceito de “neocolonialismo” do mesmo modo utilizado por Glauber; para o sociólogo o neocolonialismo hodierno apresentava características próximas do sistema básico de colonização. Uma dominação externa ampla e com atuações indiretas seria o perfil do novo colonialismo. Segundo Fernandes, os países latino-americanos seriam produtos da expansão da “civilização ocidental”, e sua dependência perpetuou-se mesmo depois da conquista da autonomia política com administrações legalmente constituídas. As consequências sociais desse modelo geram, segundo Florestan Fernandes: 1) Concentração de renda, 2) Coexistência de estruturas “modernas e arcaicas” e 3) Exclusão social de grande parcela da população.
Em 1965, como afirmado anteriormente, a inspiração em Fanon se consolida no manifesto Estética da Fome, Glauber levanta o problema dos “colonialismos”. Assim como fazia Florestan Fernandes no mesmo período ao analisar a dependência brasileira, percebeu que ela baseava-se no domínio das grandes empresas corporativas as quais eram apontadas com as principais responsáveis pelo neocolonialismo. É este problema social de dependência entre países que serve de esteio para a explanação sobre a realidade neocolonial do ponto de vista do diretor.
O primeiro parágrafo do manifesto coloca de imediato o conflito da América Latina com a Europa em um tom provocativo e de denúncia, Glauber analisa o referido conflito entre a cultura latino-americana e a “cultura civilizada”. O cineasta em seus escritos e nos filmes deixa entrever que a política desenvolvimentista aplicada por governos como o de Juscelino Kubitschek (1956-1961), ao impulsionar a industrialização realizam de fato o projeto de um capitalismo subdesenvolvido. Desta forma Glauber também adere às análises sociológicas da realidade brasileira que partem desse princípio dualista, composta pelo arcaico e pelo moderno (Oliveira, 2006), explicitado anteriormente através da teoria de Florestan Fernandes.
Ao mesmo tempo, para Glauber, os países colonizadores ou ex-colonizadores e seus governantes pouco se preocuparam com a realidade social desses países, a não ser para praticar caridade ou para ser objeto exótico de curiosidade, como afirma no manifesto Estética da Fome[1]:
Assim enquanto a América Latina lamenta as suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal de seu interesse. Nem o latino comunica a sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. (Rocha, 2004, p.63).
Glauber enfoca as diferenças das percepções existentes entres os europeus, leia-se países ocidentais ricos, e os latino-americanos sobre a miséria existente, mas além disso Glauber destaca também que essa distinção ocorre em parte pela indiferença europeia e estadunidense diante dessa situação, pois não a compreendem. Para Glauber haveria na postura dos intelectuais desses países a “nostalgia do primitivismo”. No mesmo manifesto traça as particularidades desse domínio cultural e econômico dos países ricos.
A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. (Rocha, 2004, p.64)
Como se observa nessa passagem, Glauber considera que os países latino-americanos passavam pelo crivo de um sistema que possuía traços de dependência, apontava nisso uma relação colonial em um novo momento. Entretanto, o discurso de oposição colonizado/colonizador não deve perder de vista a problemática das classes sociais, não se trata de induzir a uma discussão sobre conflito entre povos, o que acarretaria um deslocamento da posição da perspectiva de classe, tornando essa última secundarizada.
Na perspectiva marxista, os conflitos entre países têm como fundo interesses econômicos que envolvem as classes dominantes dos países colonizados e dos países desenvolvidos, bem como a presença das classes dominadas nos países coloniais.
No livro Pele Negra, Máscaras Brancas (publicado em 1952), Fanon aponta que não se trata de um conflito entre povos, que a base do colonialismo são os mecanismos econômicos e ideológicos do capital. O racismo é visto como uma opressão relacionada à esfera do econômico, para Fanon portanto, influenciado pelas ideias de Hegel e Marx, a libertação do negro faria parte de um projeto de libertação universal que, em última instância, ocorreria posteriormente a uma revolução socialista. Fanon não dissociava a questão racial do econômico, portanto reafirmava a tese central de Marx em colocar a economia na base da sociedade, o seu pensamento convergia à situação de classe e o problema racial. Segundo Fanon há um fato fundante dos problemas sociais que é o econômico. O racismo estaria entrelaçado com a esfera econômica, por conseguinte a luta antirracial não estaria dissociada da luta de classes.
Por esse viés observa-se que a teoria de Fanon constata que a liberdade humana necessariamente passaria pelo fim das classes, e o fim de uma sociedade racista dependeria da superação da sociedade de classe. Fanon também reafirma que não defende a superioridade de nenhuma etnia e aponta a solidariedade como princípio importante da relação entre os homens.
O cineasta Glauber Rocha explicita sua inspiração em Frantz Fanon no manifesto Estética da Fome ao relacionar os termos “do Cinema Novo” e “da violência”. Esta última expressão começa o primeiro capítulo do livro de Fanon, Os Condenados da Terra de 1961. Glauber faz uma analogia ao termo fanoniano “da violência”:
(…) Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitivo (é) revolucionário, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. (Rocha, 2004, p.66).
Nesse trecho do manifesto Glauber se refere diretamente à reação dos argelinos, a violência é colocada como forma de autodefesa, pois somente é reconhecido pelo outro (colonizador) a partir de uma atitude extrema, o ato de matar, somente deste modo o ser colonizado emerge e tem sua identidade afirmada.
Em Fanon o aspecto da exploração que sobressai é o tema da violência física e sobretudo psíquica que sustentam a condição colonial. Para Glauber parte dessa violência é a própria fome, ao reagir à violência do ocupante, existe uma reação de ódio, segundo Fanon; mas de um ódio específico para Glauber, como afirma na Estética da Fome:
De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como diríamos não está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que essa violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e transformação. (Rocha, 2004, p. 66)
Sartre inspirado por Fanon analisa a violência a partir da afirmação de uma postura considerada humanista, por isso uma violência que parte do amor, como também concebia Glauber. Do mesmo modo, o cineasta concorda com Fanon e Sartre sobre o tema da violência e aplica o mesmo método dialético ao pensar o papel do cineasta/intelectual, fala também nesse momento do novo homem, como também do novo artista, o que se deduz uma inspiração em Fanon:
O artista se rebela contra a sua própria estrutura e cresce por isto – cresce para destruir-se; cresce para eliminar o ser que contempla este homem que ainda, segundo Sartre, no mesmo prefácio citado, deve ceder lugar ao novo que surge. (Rocha, Diário de Notícias, 03/09/1962).
Percebe-se a afinidade do pensamento de Glauber com a proposta de Fanon e Sartre, o estabelecimento de novos valores, os valores do colonizado. Esses valores para Fanon seriam encontrados nas manifestações populares, assim como Glauber procura encontrá-las na cultura popular brasileira e latino-americana, uma percepção comum do pensamento terceiro-mundista.
A violência não era algo impensável, recusada, pois ela de fato já existia no cotidiano dos países colonizados, e a reação significa uma forma de recompor a integridade do homem, uma concepção compartilhada por Guevara, Fanon e Sartre. Por isso Glauber fala de um ódio que nasce do amor, do mesmo modo que Sartre afirma não existir no ato violento revolucionário uma atitude instintiva, nem mesmo ressentimento, mas uma contraviolência.
Por conta de sua opção por uma proposta que se fundamentasse em uma política de guerrilha, há em Glauber uma preocupação constante com a violência e suas repercussões. Glauber problematiza a questão da violência, algo doloroso ao extremo, mas que parece imprescindível em sua perspectiva artístico-política, ele ressalva que essa violência provavelmente inevitável, tinha como origem o amor pela coletividade, pelos que sofriam a truculência física e simbólica dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo o cineasta aponta que a violência é muito mais visível nos países latino-americanos do que na Europa, o grau de risco é significativamente maior. A violência era compreendida como decorrente de fatores sociais e enraizado nas sociedades que convivem com a miséria e a fome.
O que pretendia com uma estética violenta era apontar para o seu horror. Glauber nega a violência como espetáculo, e por isso defende em toda a sua carreira de cineasta, a necessidade de abordar a violência no cinema, mas de um modo que não satisfizesse o desejo sadomasoquista do público de sentir prazer com a violência representada, como afirma em 1967:
Quand la violence est montrée de façon descriptive, elle plaît au public, parce qu’elle stimule ses instincts sado–masochiste; mas ce que je voulais montrer, c’était l’idée de la violence, et même parfois une certaine frustration de la violence (…) (Rocha, Positif, jan/1968)[2]
A violência é algo palpitante nos filmes de Glauber, isso porque o cineasta percebe a sua presença constante na história brasileira, latino-americana, e de todos os países pobres. Nesse sentido, a violência e a fome, servem como pontos de reflexão e ação, são linhas mestras da cinematografia glauberiana e por isso seus filmes buscavam uma representação agressiva, uma estética que correspondesse a esta realidade violenta.
Análise e discussão de dados
Apesar de possuir um discurso sobre o negro em seus escritos e textos, não parece que a noção do cineasta Glauber Rocha sobre a questão racial se inspire na obra de Fanon, no entanto, ambos abordavam os fenômenos de possessão das religiões de matriz africana, relacionados ao processo de colonização. Fanon ao tratar da questão da “histeria”, considerava que o transe provinha do colonialismo e produzia “estados neuróticos” que tinham repercussões nos corpos, apresentando-se através de espasmos, arrebatamentos e gritos de desespero. A análise de Glauber assemelha-se à de Fanon:
Dans le monde colonial, l’affectivité du colonisé est maintenue à fleur de peau comme une plaie vive qui fuit l’agent caustique. Et le psychisme se rétracte, s’oblitère, se décharge dans des démonstrations musculaires qui ont fait dire à des hommes très savants que le colonisé est un hystérique. (Fanon, 2011, p.467)[3]
Fanon se refere a possessão especialmente como forma de manifestação de histeria:
Sur un autre versant, nous verrons l’affectivité du colonisé s’épuiser en danses plus ou moins extatiques. C’est pourquoi une étude du monde colonial doit obligatoirement s’attacher à la compréhension du phénomène da la danse e de la possession. La relaxation du colonisé, c’est précisément cette orgie musculaire au cours de laquelle l’agressivité la plus aiguë, la violence la plus immédiate se trouvent canalisées, transformées, escamotées. Le cercle de la danse est un cercle permissif. Il protège et autorise. À heures fixes, à dates fixes, hommes et femmes se retrouvent en un lieu donné et, sous l’œil grave de la tribu, se lancent dans une pantomime d’allures désordonnée mais en réalité très systématisée où, par de voies multiples, dénégations de la tête, courbure de la colonne, rejet en arrière de tout le corps, se déchiffre à livre ouvert l’effort grandiose d’une collectivité pour s’exorciser, s’affranchir, se dire. Tout est permis… dans le cercle. (Fanon, 2011, p.467)[4]
Nas análises e críticas de Fanon, não se percebe em muitos momentos a preocupação em especificar o país ou comunidade a qual ele se refere quando se trata do continente africano, o que pode levar a generalizações que tornam imprecisas suas explanações sobre processos considerados psicopatológicos de origem social, como no caso da colonização na África.
Fanon defende que se reoriente essa violência e descargas emocionais que explodem nos rituais e possessão para a luta política, não através da repressão aos membros de determinado grupo religioso ou místico, mas para as próprias condições sociais existentes que proporcionariam a mudança de atitude.
Glauber Rocha parece concordar com Fanon a respeito da epifania no mundo colonizado, e também está de acordo com a ideia deste último sobre a repressão e o modo como essa se manifesta como uma válvula de escape no comportamento extático das pessoas que participam de rituais de transe, por isso a necessidade de canalizar as energias do esforço que apresentam nas possessões para a luta de libertação. Fanon, no fundo via a religiosidade como algo negativo e queria substituí-la por uma suposta “energia revolucionária”. Ao contrário Glauber não pretendia através dessa reversão, negar as religiões ou seitas que seriam a prova da existência do colonizador, o cineasta tem uma percepção mais complexa, principalmente em seus filmes sua posição aparece dilacerada entre registrar e negar os rituais religiosos, uma posição contraditória que o acompanha do primeiro ao último longa-metragem, no qual o dilaceramento deseja superar o estado de coisas, as condições sociais existentes.
Fanon não concede maiores explicações sobre o destino dessas associações, o que lhe interessava, sobretudo era organizar politicamente essas pessoas e criar focos de liderança inseridos nos partidos. Para Glauber a religião e o misticismo, ao contrário, seriam fundamentais na elaboração da nova sociedade e seriam também referenciais identitárias, pois a religiosidade popular em especial, poderia ser o canal de contato com as raízes coletivas de um país colonizado, dando assim uma resposta autêntica e nacionalista contra o colonizador.
Em um outro manifesto, Estética do Sonho de 1971, Glauber persiste em abordar as consequências da pobreza, concepção semelhante à de Fanon:
A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística. (apud Pierre,1996, p.136).
As condições sociais como produtora de graves doenças psicológicas, ou seja, as condições de pobreza, eram um problema social que induzia a patologias psicológicas que, em última instância, estavam relacionadas ao colonialismo na visão de Fanon e, por influência deste, no neocolonialismo na visão de Glauber. Grosso modo, na concepção do cineasta o pobre não consegue entender sua situação e se depara com dois caminhos: a submissão à lógica do explorador ou a irracionalidade, expressa em atos religiosos. Em Glauber Rocha a irracionalidade está vinculada, não somente à religião, mas também à cultura popular e a um suposto inconsciente coletivo.
Por isso a tônica do cineasta neste período foi a de que esse irracionalismo era uma forma de escapar da razão que estava relacionada com a opressão europeia, colonizadora, um ponto de vista até certo ponto unilateral como vimos, mas que permite a Glauber continuar suas propostas de aprofundamento da realidade e das origens dessa realidade tricontinental, não apenas em uma dimensão histórica e sociológica, mas também religiosa enquanto desveladora de realidades inconscientes, as neuroses da colonização e por isso capazes de apontar soluções para os problemas sociais do Terceiro Mundo.
O cineasta considerava que o misticismo era tratado como um problema negativo para a sociologia. Uma década antes Glauber já cobrava essa postura da Antropologia ao tratar o Candomblé como um costume negro apenas em seus aspectos exóticos, como afirmava então:
Estes candomblés, embora possuam um valor estimável, adormecem uma raça de fantásticas possibilidades. Uma raça que poderá se emancipar de vez no Brasil paralelamente à independência africana. Vivemos aqui com a Nigéria na ponta do nariz e são os próprios nigerianos visitantes que deploram o fetichismo pernicioso. Apaixonado que sou pelos costumes populares, não aceito, contudo, que o povo negro sacrifique uma perspectiva em função de uma alegoria mística. (…)
O negro é fantástico no seu ritmo de andar, de falar e amar. Mas é detestável até mesmo esta antropologia de salão que qualifica o negro de excepcional porque é ‘negro’. Aí está o racismo! Os negros de Barravento no roteiro que eu refiz são homens vítimas da condição de ‘negro’, mas são sobretudo homens; tanto os belos quanto os maus assim o são ‘porque’ homens e não ‘raça’. (Rocha, 1997, p.126).
Não se sabe ao certo a quais antropólogos Glauber se refere, era uma crítica generalizada, no fundo reconhecia a Antropologia como fonte de conhecimento, mas considerava que os estudos sobre essas tradições não eram associadas com o problema social, haja vista que essas religiões eram composta em sua maioria por negros pobres. De modo correlato Fanon desconfiava também de uma certa interpretação da etnologia interessada nos costumes mas “desinteressada pelas condições objetivas”, isso significava para Fanon a falta de uma análise mais totalizante da situação colonial.
Como se percebe Fanon apesar de não ser sociólogo de formação elaborou uma teoria social sobre o “ser colonizado e a situação colonial” e suas implicações psicológicas e sociais, observando os comportamentos que se estabeleceram com a chegada do europeu na África. E Glauber, mesmo concordando em linhas gerais com este autor, analisava a possessão e outras manifestações religiosas de modo distinto desse, pois as via como sinais de uma saída autêntica para os problemas sociais. O transe era também compreendido como sinônimo de estados de perturbação espiritual, atordoamentos, como são atordoados os personagens de Glauber.
Glauber se propunha, portanto, compreender as contradições sociais através das manifestações religiosas e também a partir delas encontrar soluções políticas para o Terceiro Mundo. Fanon, através de suas pesquisas, como a psiquiatra, observou os fenômenos sociais como indutores de problemas psicopatológicos. Para ele algumas manifestações religiosas de possessão são produto da colonização e servem também, consequentemente, de fonte para analisar uma dada realidade social, no caso distúrbios mentais como indicativo do problema da colonização. Diferentemente de Fanon, o cineasta acreditava que era possível também mergulhar no sobrenatural, no irracional da religião, no transe e no inconsciente, como forma de superar a pobreza, através das origens míticas de um determinado povo, possibilidade como dissemos não aventada por Fanon. Por ouro lado Glauber modifica o sentido original de inconsciente coletivo, para Carl Jung o termo se referia às “(…) camadas mais profundas do inconsciente (que) dever-se-iam ter estruturado simultânea e inextricavelmente com experiências sociais primárias comuns a todos os homens (…)” (Silveira, 1981, p.106); Glauber Rocha pretendia procurar um inconsciente coletivo brasileiro.
Fanon pensou a produção de uma nova cultura, como as expressões artísticas, no interior das lutas de libertação, dedicando um espaço específico em Condenados da Terra para a discussão da produção das culturas nacionais a serviço da independência, da crítica à ideologia e mais importante, compreendendo-a como inscrita na consciência do povo. Nesse sentido, reconhece a importância da cultura para um país, como forma de afirmação de si, mas não despreza as influências externas, a renovação artística advinda de modelos diferentes, como não descarta as influências recíprocas entre as culturas nacionais.
La culture nationale, c’est la somme de toutes ces appréciations, la résultante des tensions internes et externes à la société globale et aux différentes couches de cette société. (Fanon, 2011, p. 619)[5]
A cultura popular e nacional, nesta análise de Fanon seria o retrato de um determinado momento histórico, alimentada pela possível criatividade espontânea de sua população e que não fosse refratária às influências externas. Glauber também estava vigorosamente influenciado pela ideia de uma cultura popular como matriz do espírito nacional. O nacionalismo e a identidade a ela associada também era uma concepção típica do período, o cineasta como outros artistas e teóricos sociais da América Latina e da África buscavam esse novo ser pós-colonial, como o novo homem, na cultura popular, a despeito da multiplicidade de significações do termo, o seu uso indicava um espaço da desalienação e de afirmação da identidade e da autonomia.
A noção de nacionalidade vista como identidade foi fundamental para Fanon abordar a situação colonial da África e a questão dos grupos étnicos, visto por ele como uma barreira para se constituir a unidade nacional ou ainda as unidades nacionais. Manifestamente, a situação colonial na América Latina neste aspecto era diferente comparando-se ao continente africano; nos países latino-americanos a independência política formal estava consolidada na segunda metade do século XX, enquanto na África as lutas de libertação nacional ocorreram, na maioria dos países, exatamente no pós-guerra. Na América Latina as instituições como o Estado estavam estabelecidas, mesmo durante os regimes ditatoriais. Entretanto, evidentemente havia elementos da realidade que aproximavam os dois continentes, como a pobreza, a fome e a submissão econômica e política aos países ricos da Europa e aos Estados Unidos, o que por sua vez consequentemente acarreta a submissão cultural.
Nesse sentido não apenas a religião, mas a compreensão da identidade negra em sua totalidade, como cultura (costumes, culinária, vestimentas, cultura popular) que se consolida como resistência ao colonialismo e às novas formas de exploração do capital. Fanon e Glauber como vimos pensam os elementos da tradição negra para compreender a realidade social e o papel que ela pode exercer nas lutas de emancipação.
Conclusões
O pensamento de Fanon repercutiu na estética e nas análises políticas de Glauber Rocha, a discussão sobre o “ser colonizado” pautou grande parte dos escritos, o neocolonialismo acompanhou as reflexões do cineasta e ajudou-o a pensar a estética terceiro-mundista na qual Glauber frequentemente convergia problemas sociais, econômicos, políticos e artísticos. Por outro lado, a questão racial aparece na obra dos dois de modo indissociável ao colonialismo. Apesar de não haver aparentemente uma influência direta do pensamento de Fanon a respeito da questão racial sobre a obra escrita e fílmica de Glauber Rocha, as duas abordagens compartilham posicionamentos semelhantes em relação a condição do negro em sociedade coloniais e pós-coloniais.
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Rocha, Glauber. Roteiros do Terceyro Mundo. Orlando Senna (org.). Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985.
Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac&Naify, 2004.
Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. Ivana Bentes (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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Rocha, Glauber. “Entrevista”. Image et Son, n. 236,1970.
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Sartre, Jean-Paul. Prefacie. In: Fanon, Frantz. Oeuvres. Paris: La Découverte, 2011.
Silveira, Nise. Imagens do Insconsciente. Rio. Alhambra, 1981.
- Este é principal documento que sintetiza as metas de um cinema latino-americano, com as quais constrói as linhas de seu próprio cinema, tanto aquele realizado antes do manifesto como os demais nos anos subsequentes, em especial Terra em Transe, filme que realizaria no ano seguinte, cujo problema central abordado é a situação social da América Latina.↵
- Quando a violência é mostrada de forma descritiva, ela agrada ao público, porque estimula seus instintos sadomasoquistas; mas o que eu queria mostrar era a ideia de violência, e às vezes uma certa frustração da violência (…). ↵
- No mundo colonial, a afetividade do colonizado é mantida à flor da pele como uma ferida viva que foge do agente corrosivo. O psiquismo se retrata, se oblitera, se descarrega nas demonstrações musculares que fazem com que os sábios digam que o colonizado é um histérico. ↵
- Por outro lado, nós veremos a afetividade do colonizado se esgotar nas danças mais ou menos extáticas. Um estudo do mundo colonial deve obrigatoriamente estar associado à compreensão do fenômeno da dança e da possessão. A descontração do colonizado, é exatamente esta orgia muscular ao curso da qual a agressividade mais aguda, a violência mais imediata, se encontram canalizadas, transformadas, escamoteadas. O círculo da dança é um círculo permissivo. Ele protege e autoriza. Em horas fixas, em datas fixas, homens e mulheres se encontram em um dado lugar e, sob o olhar severo da tribo, se lançam em uma pantomima de ritmo desordenado, mas na realidade muito sistematizada onde, por vias múltiplas, negações da cabeça, curvatura da coluna, jogando para trás todo o corpo, se decifra o livro aberto do esforço grandioso de uma coletividade para se exorcizar, se libertar, se dizer. Tudo é permitido… no círculo.↵
- A cultura nacional, é a soma de todas estas apreciações, resultante das tensões internas e externas da sociedade global e em diferentes camadas desta sociedade. ↵