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Correspondências entre Cultura e Ordenamento Jurídico

Crítica ao padrão heteronormativo e o reconhecimento de direitos de grupos LGBT no Brasil

Carolline Leal Ribas y Astreia Soares

Resumo

A diversidade sexual tem ganhado visibilidade no cenário latino-americano (são exemplos os casos da Argentina, Uruguai e Brasil) no qual grupos LGBT buscam reconhecimento e respeito no âmbito sociocultural e amparo no âmbito legal. No contexto das sociedades contemporâneas que se tornam cada vez mais multiculturais, este trabalho analisa a relação entre as esferas cultural e jurídica no Brasil, com relação a uma reivindicação central dos movimentos LGBT que é o reconhecimento das uniões homoafetivas e do status de entidade familiar para os casais homossexuais. Discute o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a favor da constitucionalidade da união estável para casais do mesmo sexo (decorrente da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132), caso que pode ser analisado como uma potica de Estado pela promoção do direito à igualdade, à diversidade e direito das minorias. Neste caso, o espectro tradicional de governo da maioria foi obrigado a ceder espaço e a reconhecer o dever de proteção do Estado aos interesses de um grupo histórica e culturalmente excluído. A declaração do então presidente do STF de que a pretensão de inconstitucionalidade da união homoafetiva se configura em situação de descompasso em que o direito não foi capaz de acompanhar as profundas mudanças sociais, nos remete a uma interpretação relativa da corrente clássica que defende que o Poder Judiciário deve ser imune à opinião pública, porque seria um poder despolitizado e imparcial. Este trabalho visa mostrar, portanto, correspondências entre as manifestações por direitos de grupos LGBT e a postura do ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que este ordenamento preze pelo direito positivista, não desconsiderou as fortes mudanças culturais que questionam a validade do binarismo de gênero e o padrão heteronormativo. Lembrando os altos índices de crime por homofobia no Brasil, é relevante debater o descompasso entre os fenômenos em curso na sociedade e as respostas advindas das esferas legislativa e judiciária, em um Estado constitucionalmente declarado multiétnico e pluricultural.

PalavrasChave

Diversidade sexual; LGBT; União homoafetiva.

Introdução

Este trabalho se volta para a análise de uma possível correlação entre mudanças culturais que presenciamos no cenário brasileiro e transformações na esfera jurídica que nos parecem seguir em direção bastante similar. Esta proposta de análise está inserida em uma perspectiva que propõe que o Direito seja visto não apenas em sua perspectiva legal, mas, também, como objeto do campo cultural, ultrapassando limites do positivismo jurídico. Para tanto, parte-se da seguinte questão: em que medida as decisões jurisprudenciais nos países em questão podem encontrar correspondência com discursos da sociedade civil organizada, expressos nos debates públicos?

Observa-se no Brasil, e na doutrina internacional que são escassos os pesquisadores que se voltam para uma abordagem interdisciplinar dos fenômenos jurídicos pela perspectiva dos estudos socioculturais. Tal procedimento leva a uma provável lacuna tanto nos estudos jurídicos, quanto nos estudos culturais no que tange a abordagens do Direito como instância cultural. Com o intuito de aprofundarmos nessa questão, escolheu-se examinar a justiça por sua vertente sociocultural, especificamente no que tange o reconhecimento dos direitos dos LGBTs, os quais reivindicam no ambiente público o reconhecimento de suas especificidades, bem como a proteção de seus direitos.

O objetivo geral da pesquisa que originou esta pesquisa consistiu em explorar o direito das minorias sob o paradigma do Estado Democrático de Direito e apresentar o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar no Brasil, como modo de se demonstrar uma possível crítica aos padrões heteroafetivos e uma equiparação entre manifestações públicas e decisões judiciais no cenário da redemocratização do país pós Constituição de 1988.

Para tanto, optou-se pela análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a favor da constitucionalidade da união estável para casais do mesmo sexo, a partir da jurisprudência proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Essas jurisprudências demonstraram uma possível correlação entre o discurso da sociedade civil e o Poder Judiciário, em prol da proteção de interesses de grupos historicamente excluídos em um contexto de pluralidade e diversidade cultural.

A análise permitiu-nos, finalmente, apresentarmos nossas conclusões que apontam para o entendimento de que, embora o direito brasileiro seja predominantemente formal positivista, na contemporaneidade o positivismo pode ser visto sob uma égide tridimensional, que conjuga a norma aos fatos e aos valores culturais. Desse modo, a mudança de valores culturais de uma sociedade pode repercutir no terreno jurídico a fim de que a justiça, por meio de uma interpretação pautada nos princípios constitucionais, possa reconhecer novos direitos e efetivá-los no caso concreto.

Desenvolvimento

Na contemporaneidade, a globalização propiciou uma crescente possibilidade de interconexão mundial entre populações de diferentes regiões que estiveram distantes geográfica e culturalmente e podem se aproximar por meio de novas tecnologias de comunicação. Tal fato decorreu, principalmente, das facilidades tecnológicas para que se aumentassem as possibilidades de intercâmbio entre as culturas, mas também da ampliação de transações econômicas e da mobilidade humana. Estes fenômenos, dentre outros, possibilitaram maior contato entre as sociedades contemporâneas, tanto de forma conflituosa quanto integradora e influências mútuas nos campos sociais e políticos em escala mundial. Tal processo justifica o surgimento de um cenário multicultural e híbrido que leva à necessidade de se perceber e saber relacionar com sociedades diversificadas e heterogêneas que caracterizam o cruzamento de culturas e a interação massiva entre comunidades. Segundo a Unesco no seu Relatório sobre diversidade cultural e diálogo intercultural (Unesco, 2009, p. 08), os processos de globalização possibilitam intercâmbios culturais, bem como encontros e importações de culturas, aproximando as diversas fontes de identidade e tradições.

Constata-se que a proliferação de sociedades multiculturais decorre do próprio processo de globalização, bem como dos novos movimentos migratórios a partir da Segunda Guerra Mundial e, a seguir, da Guerra Fria, uma vez que esses acontecimentos acirraram o cruzamento entre diversas culturas. A existência de diversidade cultural pode insinuar práticas discriminatórias ou de não reconhecimento, remetendo à ideia de uma “proliferação subalterna da diferença” (Hall, 2003, p. 60). Aqueles que se enquadram nos padrões estabelecidos por uma comunidade, em relação à etnia, religião, situação financeira, orientação sexual, por exemplo, são bem aceitos; opondo-se às pessoas que não obedecem a essa hegemonia, excluídas, portanto, dos preceitos de intercâmbio social.

Por conseguinte, nasce um sentimento de intolerância em relação àqueles que não seguem os padrões comumente aceitos na coletividade. Não são incomuns lutas e manifestações em torno de conflitos ligados ao racismo, migrações, embates religiosos e à segregação, que se estabelecem em busca do reconhecimento de direitos dos grupos tradicionalmente excluídos.

Tendo em vista que o Direito trabalha com leis genéricas, abstratas e obrigatórias, a questão de práticas e ações políticas multiculturalistas deve ser analisada sob o ponto de vista jurídico, uma vez que se tornam cada vez mais relevantes as discussões no domínio do Estado acerca do direito à diferença.

Acontece que, na medida em que se vive em uma sociedade pluralista e organizada em torno de um Estado Moderno, a regra da maioria não pode ser a única admitida pelo ordenamento jurídico. Com efeito, a democracia abre espaço para o diferente, motivo pelo qual se considera possível a existência de um pluralismo jurídico, tendo em vista a diversidade social e cultural que marca as sociedades contemporâneas.

Diante dessa situação, surgem desafios para o campo jurídico, tendo em vista que o Direito, ao definir normas positivadas, pode acabar não englobando e não respeitando as diferenças culturais, o que ofende princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana. Assim, a forma pela qual o Poder Judiciário vem enfrentando esses desafios será analisada de uma forma melhor se for compreendida a conexão direito e cultura.

Os primeiros movimentos que ganharam visibilidade no Brasil a favor da união de pessoas do mesmo sexo ocorreram nas décadas de 1970 e 1980. Repare-se que os homossexuais passaram a assumir publicamente suas relações, enfrentando possíveis situações de vergonha e desprezo. Apesar da existência de movimentos descentralizados desde metade do século XX, apenas com o fim da ditadura e com a redemocratização houve preocupação efetiva por parte dos cidadãos e do Poder Público na concretização dos direitos fundamentais aos grupos LGTB. A partir da década de 1990, houve maior organização e popularização de movimentos sociais em prol de direitos LGBT, o que se expandiu ainda mais, com a criação de Organizações Não Governamentais (ONGs) que tinham como intuito o fortalecimento desses segmentos, bem como reivindicação pela igualdade de direitos. Trata-se de um processo de luta e nele há aspectos de violência e de desrespeitos aos direitos fundamentais, assim como ganhos e conquistas.

Para ilustrar, pode-se citar a ONG Grupo de Pais de Homossexuais, fundada para acolher pais que desconfiam ter ou têm filhos homossexuais (Grupo de Pais de Homossexuais, s.d.), o Grupo Gay da Bahia (s.d.), a Federação LGBT do Distrito Federal (Parou Tudo, 2008) e a Parada do Orgulho LGBT (s.d.), todas com intuito de proteger direitos LGBT, bem como a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABLGT, s.d.), tida como maior entidade em defesa dos direitos LGBT da América Latina.

Além de movimentos sociais em prol da união homoafetiva, houve também por parte da sociedade maior reconhecimento do Estado como multicultural. Se há maior reconhecimento das fronteiras interculturais dentro das nações, é razoável pensar que isto abre espaço para o reconhecimento dos grupos LGBTs. Ademais, a influência dos meios de comunicação, o prestígio do direito ao anonimato, o aumento da urbanização e o surgimento de novas profissões contribuíram para o reconhecimento desses grupos na vida coletiva.

No Brasil, em um julgado inovador e ousado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1998, em acórdão proferido em sede de recurso especial entendeu que, embora o Direito não seja responsável por nenhuma questão que envolva em sua óptica uma relação de sentimentos, não se pode desprezar os efeitos jurídicos que relações jurídicas podem produzir, seja no campo de direitos, seja no campo de deveres. Nesse sentido, não obstante o legislador não tenha tratado especificamente de direitos que envolvam uma relação homoafetiva, os julgadores não podem desconhecer a realidade social de duas pessoas que estejam ligadas por um vínculo afetivo (Brasil. Superior Tribunal de Justiça, 1998).

Em 2011, a Corte Suprema finalmente enfrentou a questão nos julgados de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277[1] e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132[2], em que os ministros atenderam aos anseios sociais para adotar posicionamento adepto ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Com efeito, a união homoafetiva abandonou status de mera sociedade de fato e passou a ser reconhecida como entidade familiar.

À época do julgamento, vários grupos lograram interesse em participar e acompanhar o feito como animus curiae, os chamados Amigos da Corte. Tal posição permite com que membros da sociedade civil organizada levem ao Supremo vozes dispersas da sociedade que devem ser ouvidas uma vez que o julgamento do caso concreto pode lhes afetar de forma positiva ou negativa, já que eram destinatárias da decisão a ser proferida. Quanto maior a participação formal de diferentes grupos e setores da comunidade, maior o debate constitucional. Com efeito, houve várias partes interessadas, cada qual argumentando seu lado cultural, político ou jurídico, de modo a pleitear pelo reconhecimento ou não das uniões homoafetivas como entidade familiar. A quantidade relativamente alta de interessados no julgamento da questão pode se justificar pelo fato de a união de pessoas do mesmo sexo envolver crenças religiosas, filosóficas e culturais, que acabam variando conforme o contexto social e temporal para atender às demandas das comunidades.

No Brasil, a Carta Magna de 1988, em seu art. 226, consagrou entidade familiar em seu sentido plural, de modo a incorporar modificações ocorridas em decorrências dos costumes da sociedade moderna, influenciada por fatores sociais, econômicos e políticos. Assim sendo, o caput desse artigo atribui à família um significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou homoafetivos. O § 3º do art. 226, todavia, trouxe a dualidade da relação homem e mulher, o que, posteriormente fora elencado também no Código Civil de 2002, em seu art. 1723.

Acontece que, por meio de uma técnica denominada de interpretação conforme a Constituição, o STF entendeu por excluir qualquer significado que possa ser dado ao texto normativo que impeça a cognição da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Veja-se:

Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. (Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2011a).

Nesse diapasão, o julgamento aduz que a terminologia entidade familiar elencada no texto constitucional não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. A entidade familiar deve compreender qualquer família que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensividade, consonante interpretação extensiva que a própria Constituição admite desde que seja constituída com base no afeto e com o intuito de preservação e promoção da dignidade de seus membros.

Em seu voto, o ministro Ayres Britto (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 2011b, p. 2.076-2.109) aduziu que a orientação sexual está ligada ao processo de individualização, referindo-se, assim, aos princípios de liberdade e igualdade, preceitos esses estampados desde as disposições expressas no preâmbulo da Constituição. Pode-se dizer que do mesmo modo que uma pessoa heterossexual somente encontra sua felicidade se estiver em uma relação com um parceiro de sexo oposto, a pessoa que tem desejo sexual por uma pessoa de mesmo sexo só poderá se realizar ou ser feliz numa relação homossexual.

Já o ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 2011b, p. 2.174-2.178) exalou o princípio da dignidade da pessoa humana, principal corolário para se tratar dessa questão. Reconhece que se trata de uma situação em que há um claro “descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do Direito”:

Visivelmente nos confrontamos aqui com uma situação em que o Direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais, não apenas entre nós brasileiros, mas em escala global.[…] Falo da progressiva abertura da sociedade, não sem dificuldade, em reconhecer, respeitar e aceitar os indivíduos que possuem orientação sexual homoafetiva e decidem viver publicamente as relações com seus companheiros ou companheiras. Relações estas que em nada diferem das relações afetivas heterossexuais, a não ser pelo fato de serem compostas por pessoas do mesmo sexo. Essa realidade social é incontestável. Essas uniões sempre existiram e existirão. O que varia e tem variado é o olhar que cada sociedade lança sobre elas em cada momento da evolução civilizatória e em cada parte do mundo. (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 2011b).

O ministro retoma a ideia de que, historicamente, relações homoafetivas sempre existiram. Contudo, até poucos anos atrás, não havia grande manifestação pela visibilidade desses grupos que, muitas vezes por medo do preconceito e de violência, se ocultavam para não serem banidos de sua comunidade. O silêncio da Carta Magna, entretanto, não significa que, na atualidade, as uniões homossexuais devem continuar sendo consideradas invisíveis perante a sociedade. Aplicando o mesmo entendimento que já havia sido prolatado em votos anteriores, entendeu que, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser reconhecido valor jurídico às relações entre pessoas de mesmo sexo, não podendo ser tratadas com mero desrespeito simplesmente pelo fato de o Legislador não lhe ter reservado normas próprias para reconhecer seus direitos.

Por sua vez, o ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, trouxe uma crítica acerca da interpretação que deve ser dada ao artigo 1.723 do Código Civil à luz dos princípios e preceitos constitucionais (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 2011b, p. 2.259-2.273). Segundo o ministro, não se ignora o fato de o Direito sofrer grandes influências do campo da moral e, até mesmo, da religião, tanto é que os costumes podem alterar o ordenamento jurídico na medida em que o Direito passe a reconhecer que um fato mereça ou não mereça mais amparo normativo. Embora tal correlação direito-moral seja perceptível, não se pode admitir que o campo jurídico se baseie somente em convicções morais.

A afirmação peremptória de que o discurso jurídico não pode, sob nenhuma condição, incorporar razões morais para justificar proibições, permissões ou formatar instituições mostra-se equivocada, caso contrário a própria referência constitucional ao princípio da moralidade, presente no artigo 37, cabeça, da Carta Federal, haveria de ser tachada de ilegítima. Essa constatação, porém, não afasta outra: é incorreta a prevalência, em todas as esferas, de razões morais ou religiosas.

[…] O reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis representa a superação dos costumes e convenções sociais que, por muito tempo, embalaram o Direito Civil, notadamente o direito de família. A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio tuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. (Brasil. Supremo Tribunal Federal, 2011b).

Não obstante os diferentes fundamentos, por unanimidade, o Supremo reconheceu a constitucionalidade da união homoafetiva como entidade familiar, merecendo essa relação amparo jurídico tendo em vista os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da segurança jurídica, bem como da busca pela felicidade. A família, como uma instituição cultural, é uma construção da sociedade, admitindo a extensão de seu conceito na ciência jurídica uma vez que o Direito não pode se limitar às normas positivas desconsiderando os aspectos fáticos nos quais aquela norma está inserida.

As diversas interpretações produzidas pelos julgadores refletem a impossibilidade de se haver uma decisão absolutamente neutra, já que toda decisão já traz em si certa carga ideológica, mesmo porque os magistrados são dotados de sentimentos e valores pessoais. Esse fato, no entanto, não reduz os julgados a meros relatos subjetivos (pessoais), já que vão para a esfera pública dotados de caráter jurídico e de legitimidade, sendo esta confirmada após a oitiva de atores da sociedade civil organizada.

Desse modo, nota-se que as impressões colhidas de grupos sociais e do Poder Judiciário parecem caminhar em direção bastante similar. Os problemas encontrados na sociedade brasileira se reproduzem no plano do Direito, materializados, especialmente, nas decisões proferidas pela Corte Suprema, e as respostas dadas pelo Judiciário devem se voltar para a solução de conflitos, promovendo a paz e a harmonia social.

Conclusão

Entendemos que as ciências jurídicas podem ser vistas como disciplinas dependentes e correlacionadas às demais ciências sociais e humanas. Embora o ordenamento jurídico preze pelo positivismo, ao atribuir valor à norma escrita, não se pode desconsiderar os valores e fatos existentes em uma sociedade, uma vez que o Direito existe justamente para assegurar que haja harmonia e bem-estar social. Isso porque não se tratam de campos completamente distintos. A área do Direito preza pela integralidade das normas, regulando situações sociais que possam vir a ser objeto de conflitos, por meio de direitos e deveres que são coercitivamente impostos à sociedade. A área da cultura reflete frequentes mudanças de valores e paradigmas sociais, incluindo formas de pensar, hábitos, estilos de vida, dentre outros.

Neste artigo deu-se maior destaque ao caso de reconhecimento das minorias homoafetivas como entidade familiar no caso brasileiro, em que se colocou em pauta, principalmente, o fato de o Judiciário estar atuando como um órgão politizado, vindo a substituir o papel dos legisladores. Tal discussão decorre do fato de o Judiciário pretender ser, teoricamente, um órgão apolítico, devendo, por lei, adotar posturas imparciais e destituídas de qualquer caráter subjetivo.

Os membros do Congresso Nacional são eleitos pelos votos dos cidadãos, por meio de votação direta, individual e secreta. Os deputados representam o povo e os senadores os estados. Os primeiros devem representar a opinião da população, dar voz às suas palavras, de modo que sejam propostas leis que realmente condizem com os preceitos emanados pela população. Por outro lado, magistrados são servidores aprovados em concurso público de provas e títulos, ou seja, com base em critérios meritórios e não eletivos. Necessitam, por consequência, atuar segundo os princípios da imparcialidade e livre convicção, não podendo ser aplicado nenhum critério subjetivo adstrito às provas dos autos.

No entanto, constata-se que, na contemporaneidade, há uma possível correlação entre os debates públicos e os julgamentos, o que demonstra que o Poder Judiciário tem legitimidade para decidir a favor do clamor social, desde que busque seu próprio convencimento pautado pela estabilização do Estado Democrático de Direito. Em consonância com os relatos dos ministros expostos nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, o Judiciário reconheceu que não se pode ignorar as alterações nas concepções sociais, uma vez que, assim como a sociedade evolui, cabe ao Direito acompanhar as mudanças sociais, zelando pela efetividade dos princípios constitucionais que embasam a dignidade da pessoa humana.

O julgamento das ações constitucionais representou grande inovação no ordenamento jurídico, uma vez que produziu reflexos de ordem jurídica, social, cultural e política a curto e médio prazo. Nos campos social e cultural, o julgamento representou um marco histórico em que foram ouvidos esses grupos minoritários a favor de direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis. Nota-se que tal fato implica, igualmente, formulação de novas práticas culturais, tendo em vista que a população abandona o caráter de uma cultura inerte, passando a atuar de forma ativa e influente.

Desse modo, percebe-se a importância que os movimentos sociais e a participação da sociedade no que tange à promoção dos direitos de minorias, como forma de se incentivar na luta pela concretização dos princípios da igualdade e liberdade. Espera-se que os Poderes de Estado e a sociedade compreendam a relevância em se articular o direito com as demandas sociais, mesmo que tal fato não implique alteração das normas constitucionais.

Bibliografia

Brasil. Constituição (1988). Constituição da República do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

Brasil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Senado,2002.

Brasil. Supremo Tribunal Federal. ADI 4277. Relator Ministro Ayres Britto, j. 05/05/2011, Drio de Justiça, Brasília, DF, 05 mai. 2011 a. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 20 out. 2017.

Brasil. Supremo Tribunal Federal. ADPF 132. Relator Ministro Ayres Britto, j. 05/05/2011, Drio de Justiça, Brasília, DF, 05 mai. 2011 b. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 20 out. 2017

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Brasil. Grupo Gay da Bahia. Salvador/BA. Disponível em: <http://grupogaydabahia.com.br/>. Acesso em: 03 nov. 2017

Brasil. Federação LGBT do DF e Entorno. Brasília/DF. Disponível em: <http://www.paroutudo.com/materias/redacao/081231.php>. Acesso em: 03 nov. 2017

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Brasil. ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Curitiba/PR. Disponível em: <http://pndh3.com.br/geral/abglt-associacao-brasileira-de-lesbicas-gays-bissexuais-travestis-e-transexuais/>. Acesso em: 03 nov. 2017

Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Relatório mundial da UNESCO: investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural. Brasília, DF: UNESCO Brasil, 2009. Disponível em: <http://portal.ifrn.edu.br/campus/canguaretama/observatorio-da-diversidade/documentos-sobre-a-diversidade/investir-na-diversidade-cultural-e-no- dialogo-intercultural>. Acesso em: 27 out. 2017.


  1. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.277 foi proposta em 2009 pela Procuradoria Geral da República visando ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, preenchido os mesmos requisitos indispensáveis para estabelecer a união estável entre homem e mulher.
  2. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°132 foi proposta no ano de 2008 pelo Estado do Rio de Janeiro buscando tratamento igualitário entre casais heterossexuais e homossexuais no que se referia ao art. 1.723 do Código Civil e ao Estatuto dos Servidores Civis do Estado.


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