Notas de campo etnogeográfico digital,
no lugar de fé cigana
Carliane Sandes Alves Gomes
Introdução
24 de maio de 2021.
Ansiosa.
Me arrumo e vou.
No caminho, penso…. imagino … já estou!
No trajeto, para e me questiono: como estará o lugar?
Chego.
Vejo cores;
– mesas enfeitas de cetim-
são cores vibrantes.
Ouço som;
– Santa Sara, minha vida tu conduz –
O mantra ecoa por uma caixinha de som.
Sinto cheiros;
– velas, frutas e incensos-
Perfume de gruta.
Percebo movimentos;
– selfies com a santa, rezas para a santa.
Imagem do sagrado.
Paro em frente a Sara.
Me encontro
Me emociono
Com ela.
Quantas saudades!
Agora sei …
Estou em casa.
Pego e ligo o meu celular.
Já são 16 horas.
Conecto a transmissão.
Pela tela, vejo a Miriam.
Miro a Santa.
Vai começar a prece,
Aos pés da Sara, todos em posição,
Agora com os telefones nas mãos vai ter reza então.
Com o fone ouço a oração
Pelo corpo sinto a manifestação.
Miriam fala de lá,
A gente responde daqui.
Olho no aparelho,
Mas com os pés no chão.
Fim da live.
Mas da festa, não.
O ano é 2021 e a humanidade ainda enfrenta consequências e desdobramentos relacionados à pandemia da Covid 19. Incertezas e ansiedades assolam nossa sociedade, (re)criando modos de (com)vivências. As dinâmicas e sociabilidades de outrora tornam-se uma incógnita em Tempos de Pandemia (HAESBAERT, 2020). Em decorrência desse novo panorama de habitar o espaço, viver a vida, e significar o mundo e o cotidiano (HEIDEGGER, 1954; DARDEL, 2011), os atos de celebrar ou de comemorar, mudaram! Diante das novas medidas de segurança sanitária, a festa oficial, denominada Corrente Pela Paz, realizada anualmente no dia 24 de maio em devoção a Santa Sara Kali, teve em sua edição de 2021 ofertada por meio de diferentes plataformas digitais.
Mesmo diante de novas maneiras de ser e estar no mundo que se festeja, maneiras oferecidas e oportunizadas pela organização oficial do evento, muito do que se imagina e se deseja vivenciar encontra as memórias afetivas daquilo que já foi vivido no lugar festivo (SANDES, 2017). Contudo, a edição anual da festa em devoção à Santa Sara apresentou, no ano de 2021, dinâmicas espaciais da festa vivida e experienciada de modo híbrido pelos devotos de Sara. Nesse caso, refiro-me aos que optaram por estar presentes, junto à gruta, para assistir, no lugar de fé (SANDES, 2017), a live denominada: Ritual e Benção de Santa Sara Kali. Enquanto participante e pesquisadora, encaminhei-me para o referido lugar para, uma vez reunida com integrantes de sua organização, assistir e analisar ações e sensações no espaço-tempo dedicado à transmissão do ritual religioso.
Para comemorar o dia de Santa Sara Kali e sua fé, devotos ciganos e não ciganos contaram neste ano com um sistema de celebração de modo híbrido. A adoção desse recurso permitiu estar presente, fisicamente, no lugar sagrado (ROSENDAHL, 2002) no Parque Garota de Ipanema. E, simultaneamente, assistir os rituais e práticas religiosas por uma live realizada pela líder carismática, a cigana Mirian Stanescon, em diversas plataformas digitais. Essas novas formas de festejar iluminam novas possibilidades, conferindo novos relevos para outros modos de ser e estar festejando na atualidade para os participantes envolvidos com este evento geográfico festivo.
O evento realizado presencialmente, na gruta de Santa Sara Kali, reuniu um pequeno grupo de indivíduos, que COM-partilharam as experiências de se estar no lugar sagrado. A ida do devoto ao locus de sua fé possibilita uma vivência religiosa e comunitária que marca, no tempo e no espaço, aspectos e elementos materiais e imateriais relacionados com os sentimentos de união com o divino, com o sagrado e com o mistério. Partindo das ações e das dinâmicas socioespaciais encontradas no campo, este artigo propõe iluminar o devido questionamento: qual é a importância do Lugar de fé para a vivência e experiência das práticas religiosas festivas?
Em paralelo, para se vivenciar o sagrado, é necessário estabelecer outros tipos de conexões. A ida do ser religioso ao lócus sagrado abriu-se a novos caminhos de modo que estes se desdobrassem para que os participantes pudessem se fazer presentes no lugar de seus desejos e intenções. A adoção de plataformas digitais tornou-se, nesse contexto, uma nova via para se vivenciar o sagrado, isto é, um novo caminho a ser trilhado para os indivíduos imbuídos do desejo, transformado em ação, de ir ao encontro do que desejam ver, ouvir, sentir e receber. Na intenção de interpretar essa nova relação, o estudo em tela examina novos modos e desafios encontrados por sujeitos para se inter(ligar) com o sagrado. Para isso, questiono: Como é possível o imaginário geográfico ser evocado para se criar sentidos de lugar?
Mediante novas formas e maneiras de se celebrar e de se festejar, este artigo utiliza a etnogeografia como metodologia de campo – no ciberespaço e – no espaço geográfico. Os resultados alcançados apontam para um sentido de lugar de fé que emerge para os participantes, ainda que em quantitativo limitado, quando se voltam para encontros mediados e possibilitados pela virtualidade com objetivos de celebrar e comemorar esta simbólica data para o grupo sob investigação.
Na praça ! Lugar festivo (re)visitado
Sempre ao meu lado ela está
com seus mistérios, sua luz.
Santa Sara, Santa Sara,
Minha vida tu conduz.
Somos filhos do vento, das estrelas, do luar.
Tua voz, meus sentimentos.
Tua força em meu cantar.
Te pedimos pela figa,
pelo brilho dos cristais.
Estrela de cinco pontas,
meu caminho, sigo em paz.
Escureça como a noite o olhar dos inimigos
A ti peço todo dia que abençoe minha tsara
Santa Sara, me acompanhe, ilumine o meu cantar,
e palavras de carinho
quero a todos ofertar.
E me afasta do orgulho, da vaidade, ambição.
Sei que herdarei o mundo, dando a ti meu coração.
Santa Sara, me acompanhe, ilumine meu pensar,
e palavras de carinho
quero a todos ofertar.
O evento geográfico festivo (SILVA, 2013) pode ser interpretado como horizonte de oportunidade para se viver algo extraordinário. Desse modo, oportuniza-se o rompimento das dinâmicas vividas no fluxo ordinário do tempo e do espaço na vida cotidiana. A festa religiosa convida os fiéis a experimentar sentimentos complexos, os quais são sentidos de maneira singular por cada participante. Não obstante, a festividade é vivida na efervescência da coletividade (DURKHEIM, 1978) que se reúne no lugar especialmente – e espacialmente – qualificado em que ela acontece. A festa cigana em devoção à Santa de pele escura pode ser considerada um exemplar deste acontecimento experiencial vivido no lugar. E que adquire especial significado para os envolvidos com o seu acontecer festivo. Nesse sentido, a festa oferece aos devotos, através do “ver e sentir do sagrado” (ROSENDAHL, 2012), diferentes maneiras de experienciar o Lugar de Fé (SANDES, 2017).
Assumindo-se a experiência como sendo individual e subjetiva, ela requer o envolvimento do sujeito com o ambiente e com as dinâmicas em que ela se manifesta para acontecer. Em se tratando de indivíduos religiosos, ela é vivenciada no espaço geográfico como modo de ser-e-estar no mundo para o sujeito e para o grupo ao qual ele se sente partícipe. Assumir a perspectiva experiencial do lugar festivo (FERREIRA, 2003) requer notar que o corpo-devoto sente o lugar de fé por meio dos sentidos. E, por conseguinte, move-se por ações em relação ao que foi sentido, apresentando-se como elo para a vivência com o sagrado. Estes, por sua vez, podem ser percebidos por diversas sensações, tais como: a sensório-motora, a tátil, a visual, a auditiva, olfativa e, até mesmo, referente ao paladar (TUAN, 2013). Essas sensações admitem a possibilidade de conferir aos sujeitos a potência de (re)significar suas relações com os lugares.
Para interpretar como essas sensações podem ser vividas e experienciadas ao longo da festa cigana pelos demais participantes subverto, intencionalmente, o pensamento de Rosendahl (2014) onde o ato de celebrar antecede o de comemorar. Os festejos do grupo cultural dos ciganos Kalderash afirmam – enquanto disputam os sentidos da – cultura cigana. E os eventos geográficos festivos que organizam revelam e manifestam múltiplas potências sensoriais para os que se sujeitam a vivê-los enquanto fato festivo da vida no Parque Garota de Ipanema.
Os portões gradeados se abrem para receber ciganos e não ciganos devotos de Sara. Uma lembrança, um cheiro e uma música são estímulos capazes de levar o indivíduo à (re)visitar sua memória, (re)conectando-o com lugares de seus afetos (HALBWACHS, 1990). Essas sensações, muitas vezes, estão impregnadas de simbolismos e significados construídos durante a interação do indivíduo com o meio a partir das experiências e vivências no lugar. A canção que inaugura essa seção do presente artigo é um dos exemplos possíveis. A referida melodia é presença frequente na gruta de Santa Sara. Ela marca, no tempo e no espaço, a duração da celebração desta santidade. Seu cântico constitui-se em rito. A música, ao ser entoada, evoca na memória de seus fiéis a história da santa, auxiliando na composição da identidade do grupo vinculado ao lugar, na medida em que “o tempo é vivido como memória, e por isso que memória e identidade adensam o lugar. A memória é a experiência vivida que o significa, definindo-o enquanto tal” (MARANDOLA, 2012, p. 229).
A música é um dos elementos que participam da vivência do devoto no lugar sagrado. Com a criação de um santuário destinado à Santa Sara Kali, este fixo passa a contribuir para que outras emoções e sentimentos possam ser atrelados a este lugar. O ser religioso pode vivenciar, em grupo, a sua fé e devoção durante o vigésimo quarto dia de cada mês. E é ali que são realizados cultos e práticas em devoção a esta santidade.
O evento geográfico festivo religioso destinado a Santa Sara Kali, para além de um ato devocional, possibilita aos participantes, através de elementos sensoriais como música cigana, a dança tradicional, calor da queima de velas, cheiro intenso de incenso, cores vibrantes de vestes coloridas e o inconfundível aroma de sua culinária, uma ambiência espacial (AMPHOUX, 2004) capaz de conduzir os indivíduos a vivências e experiências memoráveis com o lugar. Desse enlace entre o sujeito com o espaço qualificado pela experiência, Tuan (2013, p. 11) sugere que “a memória e a intuição são capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante fluxo da experiência”, pois a festa rompe no tempo e no espaço o fluxo ordinário da vida cotidiana.
O balé-do-lugar (SEAMON, 2013). praticado pelos indivíduos religiosos-festivos indica a abertura de caminhos extraordinários que conduzem os sujeitos imbuídos de fé a se permitirem vivenciar ações profanas e atos devocionais. O espaço-tempo festivo emerge como campo de possibilidades para múltiplas vivências, cada qual sendo significada – e disputada – em seus sentidos pelo conjunto dos participantes envolvidos com o festejar. Nesse contexto, a perspectiva experiencial do lugar festivo é vivida individualmente por cada participante. Entretanto, é fundamental identificar, entender e considerar a festa como elemento têmporo-espacial de reunião de corpos e de sujeitos dispostos e disponíveis para a COM-vivência e o congraçamento. Em se tratando de uma festa religiosa, os elementos ativados e mobilizados para, entre outras coisas, (re)construir o lugar de memória de um povo que se notabiliza pelo nomadismo e pelos movimentos, alcança significativa potência no momento oportuno para tal feito.
Na live: lugar festivo através do imaginário geográfico
No já mencionado dia 24 de maio de 2021, simbólica data, a cigana Mirian Stanescon realizou o evento “ao vivo” denominado Ritual e Benção de Santa Sara Kali. Inicio o texto apresentando uma etnogeografia[1] da live, enquanto encontrava-me vivenciando as práticas religiosas presente no Lugar de fé cigana. A escolha por essa metodologia objetiva e investe na descrição e interpretação do evento transmitido por meio online e presencial. A etnogeografia foi empreendida para nos auxiliar na interpretação desse acontecimento. Assim, por esse caminho de investigação, me direcionei para adotar e assumir total atenção a tudo que ocorria na transmissão, isto é, imagens e sons que eram apresentados, assim como as reações dos demais espectadores através das mensagens instantâneas que eram escritas e publicadas. Complementarmente, mantive-me atenta às minhas próprias sensações e reações em relação ao que assistia no Parque Garota de Ipanema. Por intermédio desse expediente pude acessar alguns dos sentimentos evocados, (re)criados, (re)vividos e publicizados pelo conjunto dos participantes durante e logo após a transmissão, tomando comentários e interações por emojis disparados pela audiência como mapa de significados” (JACKSON, 1989) que se tornaram fragmentos para interpretar o fenômeno em curso.
Para os leitores deste artigo, recomenda-se a visualização da live. Inicialmente pensei em disponibilizar a captura de instantes de sua apresentação em formato de imagens. Entretanto, acredito que assistir as cenas, no contexto (ainda que assíncrono) da transmissão, confere ao espectador recursos mais abrangentes e plurais de acesso ao conteúdo, assim como de interpretação, daquilo que é apresentado. Ou seja, um conjunto de possibilidades (aqui entendido como rico justamente por sua diversidade) que a necessária seleção das imagens para o escopo deste trabalho não seria capaz de oferecer. O artigo, nesse sentido, é apresentado como um instrumento para identificação de alguns dos fatos mais relevantes. E pode ser entendido como um conjunto de interpretações de elementos e narrativas multiterritoriais e lugarizadas da cigana Mirian Stanescon, sua família e de participantes das festividades presenciais (e agora online) em homenagem a Santa Sara Kali no Parque Garota de Ipanema e que, de certo modo, estão envolvidos pelas ações ocorridas no decorrer das últimas duas décadas nesse simbólico lugar. De modo algum, portanto, desejo enunciar verdades absolutas ou interpretações fechadas e limitantes de um fenômeno que se potencializa em função da sua polissemia e das múltiplas possibilidades de recepção e significação por parte da audiência.
A metodologia adotada coaduna-se com modos atuais de empreender pesquisas no campo cibernético. Disponho-me a registrar o que senti e vi – muitas vezes enquanto COM-partilhei – e escrever sobre as experiências vividas assim que julguei-me capaz de processar as minhas próprias afecções, registrando-as como textos. Esses escritos foram sendo elaborados como “descrição minuciosa e intimista, portanto densa, de existencialidade, que alguns pesquisadores despojados das amarras objetivistas constroem ao longo da elaboração de um estudo” (MACEDO, 2010, p. 195). Assim sendo, investi na interpretação de meus próprios sentimentos, afetos e sensações, agindo em compromisso, pessoal e acadêmico, com a identificação e interpretação das reações dos demais espectadores.
Pela live foi possível reunir e promover diversas dinâmicas e interações no espaço cibernético (CAPUTO, 2018). E, ainda, relembrar dinâmicas e relações socioespaciais vividas em anos anteriores no espaço-tempo festivo, recorrentemente citadas pela cigana. E, ainda, aquelas que estavam sendo experienciadas no lugar festivo. Investir na articulação de ações desenvolvidas no passado e que, por ação consciente de Mirian, participavam ativamente do presente de sua live, constitui-se em parcela fundamental deste trabalho investigativo. Seu exame é possível na medida em que o considero como constituinte do mundo vivido daqueles que ali se reúnem para celebrar e comemorar. É este mundo, construído e significado incessantemente por todos que dele fazem parte, e com o qual interagem, que me disponibilizo a conhecer para interpretá-lo. E assim o faço, pois “o mundo que nós estudamos é moldado pela ação dos homens e se encontra marcado por seus saberes, seus desejos e suas aspirações” (CLAVAL, 1999, p. 70).
Para isto, não basta descrever a live. Certamente me interessei pela materialidade presente na transmissão e revelada pela tela de cristal líquido à minha frente, bem como pelo suporte físico necessário para que a live aconteça. Não obstante, ocupei-me de investigar aspectos imateriais pelos quais percebo sentimentos e sensações que vivenciei e senti, seja nos outros ou, ainda, em mim. A geografia cultural se debruça sobre as dimensões material e imaterial articuladas durante as profundas e complexas maneiras dos seres humanos se relacionarem entre si e com/no espaço. Sobre isso, Claval (1999) afirma que
o peso que as técnicas têm na organização do espaço é muito explorado. Já o papel das utopias que guiam a ação ainda é inexpressivo. Entretanto as utopias definem as estruturas que os homens sonham e traduzem suas preferências por um ou outro tipo de relação social em um outro ambiente. (CLAVAL, 1999, p. 71)
O evento Ritual e Benção de Santa Sara Kali, conforme foi sendo desenrolado, ofereceu a oportunidade de me reunir com outras pessoas para conhecer suas ideias. A investigação acerca dessas ideias, contextualizadas com o espaço no qual são colocadas em prática, me permitiu acessar suas utopias e, por conseguinte, as escolhas que os indivíduos e grupos realizam para moldar o espaço geográfico de acordo com seus propósitos objetivos e subjetivos. Procuro identificar e examinar as organizações do espaço rememorado com os quais me confrontei. E, assim como o autor
(…) considerar três grandes questões: Como o meio é percebido por aqueles que o habitam? Graças a que se tem domínio sobre ele? Como concebem a ordem social, as regras e normas às quais devem se conformar? (CLAVAL, 1999, p. 71).
A metodologia, considerada em seus limites e potências, me possibilitou viver a experiência de estar em (trabalho de) campo. E me oportunizou refletir sobre a importância da realização de atividades culturais, especialmente as que envolvem ativismo político no contexto de práticas religiosas, em uma data específica, especialmente significativa para os integrantes de um determinado grupo cultural. Esta simbólica data (MELLO, 2010) passou a ser entendida e investigada como mapa de significados [2] por intermédio do qual me dispus a conhecer e examinar as atuações políticas e religiosas da cigana Mirian Stanescon, sua família e de integrantes do grupo cultural que a segue como líder diante dos novos e antigos desafios que compartilham.
Para examinar a importância de realizar o evento neste exato dia é necessário reconhecer que as limitações de deslocamentos corpóreos pelo espaço geográfico impediram a reunião presencial de todos os indivíduos na Praça Garota de Ipanema. A permanência da pandemia inviabilizou a reunião de familiares, amigos, conhecidos, curiosos e devotos de Sara nas imediações do seu lugar sagrado (SANDES, 2017), lugar onde ocorre a tradicional Cruzada Nacional Pela Paz Mundial[3]. O PROJETO DE LEI Nº 4329/2018 foi acrescido por uma EMENTA para incluir, no anexo da consolidação de datas comemorativas do Estado do Rio de Janeiro, o dia 24 de Maio. Com participação direta de Mirian Stanescon em negociações referentes a essa legislação, a data se tornou, oficialmente, o Dia Estadual de Santa Sara Kali e do Povo Cigano.
Com o impedimento dos deslocamentos pelo espaço geográfico outras estratégias precisaram ser pensadas e executadas como modos de manter ativas engrenagens e ações políticas dos ciganos Kalderash. A interrupção dos movimentos não permitiu a reunião de cada participante no lugar festivo. Ainda assim, se nos deixamos levar pelas imaginações geográficas (NOVO, 2019) anunciadas pela promotora do evento e pelas possibilidades de integração e articulação propiciadas pelas redes sociais, podemos considerar convergências no lugar imaginado e vivido, não-presencialmente, como acontecimento possibilitado por encontros cibernéticos pós-modernos (OLIVEIRA, 2014).
A cigana Mirian, sua família e os demais envolvidos com a organização da transmissão online podem ser entendidos como agentes políticos atuando, por intermédio do poder de difusão e conexão oportunizado pelas redes sociais, para exibir seu poder e controle perante o seu grupo, assim como para o conjunto dos demais interessados ou envolvidos com os feitos e vivências desses indivíduos. A transmissão de um evento previamente organizado para ser acessado, sincronamente, por sujeitos interessados em participar do ato festivo, comemorativo e político, constitui-se como fato da cultura sendo, mais uma vez, evocado e disputado entre os diferentes indivíduos e grupos envolvidos com a negociação de seus sentidos e significados. E, como tal, participa da construção/confirmação da cigana Mirian como principal agente religiosa e política para seu grupo, reverberando sua importância para um conjunto ainda maior de espectadores e curiosos.
Identificar o repertório de ações acima indicado, de maneira a contextualizá-lo na transcorrência de dinâmicas e fluxos já ativos e em desdobramentos espaço-temporais, nos oferece a necessidade de entendê-los enquanto multiterritorialidades (HASBAERT, 2004; 2007). E, desse modo, identificar as pretensões de disputar/manter o controle, físico e simbólico, de uma determinada parcela do espaço geográfico. Sobretudo por nos encontrarmos em acordo com a ideia sobre
(…) a existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos no sentido de experimentar vários territórios [e/ou territorialidades] ao mesmo tempo e de, a partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma novidade, pelo simples fato de que, se o processo de territorialização parte do nível individual ou de pequenos grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma “multiterritorialidade” (Apud Haesbaert, 2004a:344) Haesbaert, 2007: 34, 35).
Neste caso, as ações apontam para o Parque Garota de Ipanema, onde anualmente são comemoradas as referidas datas, como sendo território e lugar para a família Stanescon e demais integrantes do seu grupo. Lugar onde a família Stanescon renova, a cada aparição de seus membros, a fé e o senso de pertencimento de seus seguidores assim como suas territorialidades e ascendência política e religiosa sobre eles.
A transmissão do Ritual e Benção de Santa Sara Kali oportuniza a vivência e, eventualmente, o entendimento, de complexos estratagemas pelos quais determinados sujeitos elaboram e executam ações capazes de envolver os demais em tramas sócioespacializadas. Tramas que vão sendo vividas e narradas de acordo com interesses, valores e ideologias inteligíveis ao grupo. E, como tal, demonstram-se irremediavelmente vinculados ao espaço geográfico escolhido e vivido como Lugar de Fé e como território de atuação política para esta singular família cigana.
O compêndio de ações, vividas, significadas e (re)encenadas através das redes sociais, resgata aquelas anteriormente realizadas e testemunhadas, presencialmente, neste lugar específico (Parque Garota de Ipanema). E sugerem o reconhecimento e a requalificação espacial de determinadas parcelas do espaço geográfico pela experiência, online, dos indivíduos a ele interligados. O evento live, portanto, conecta ações pretéritas dos indivíduos e grupos em determinado lugar com escolhas e atos que se realizam no presente, de acordo com múltiplos e plurais desejos para o futuro que estão sendo disputados. Apresentando-se, concomitantemente, como ato político, religioso e festivo, a live revela-se, nesse contexto, como fato cultural (BONNEMAISON, 2012). E assim é interpretado como
face oculta da realidade: ele é ao mesmo tempo herança e projeto e, nos dois casos, confrontação com uma realidade histórica que, às vezes, o esconde (especialmente quando os problemas de sobrevivência têm primazia sobre todos os outros) e, outras, o revela (BONNEMAISON, 2012: 280).
Confrontando os desafios cotidianos do seu grupo cultural, no momento entrelaçados aos desafios oportunizados pela pandemia, a transmissão via redes sociais de Mirian se apresenta como um meio de se (re)viver, através do illo tempore (ELIADE, 2010), a memória do seu povo. A live anunciada e realizada como evento religioso, desdobra-se em significativo ato político, especialmente quando percebida e interpretada no conjunto de atuações destes sujeitos e suas territorialidades e multiterritorialidades nos domínios da política e da religião (SANDES, 2017; NOVO, 2019; ROSENDAHL, 2018; HASBAERT, 2007).
O dia e horário, cuidadosamente escolhidos para a transmissão, se coadunam com estratégias amplamente utilizadas e conhecidas por esses sujeitos. Segundo Sandes (2017) a vivência do tempo sagrado, oportunizado e potencializado pela festa, enlaça os integrantes dessa cultura de modo a lhes permitir reavivar laços de pertencimento, permitindo-os desempenhar novas ações no presente adequadas aos seus objetivos. E, pelas potencialidades oferecidas pela dinâmica festiva, criam-se oportunidades para (re)uni-los na defesa e promoção de lutas coletivas por um futuro anunciado e desejado.
A cigana Mirian é quem assume a responsabilidade por anunciar esse futuro. Assim como por revelar caminhos e meios para se alcançar esse destino comum. Complementarmente, os sentidos e significados de lugar para os indivíduos do grupo são envolvidos pelas histórias que a cigana desfia enquanto elabora a tessitura emocional do Parque Garota de Ipanema e a padroeira do seu povo. O sentido de lugar é constantemente evocado e (re)vivido por intermédio de memórias e lembranças vocalizadas por Mirian. Esse ato, pensado e executado com vistas a robustecer a importância da apresentação da cigana, delineia sua função religiosa e evidencia sua centralidade política para o grupo. Desse modo, consideramos a permanência da referida data simbólica como poderosa estratégia engendrada e executada para favorecer, entre os sujeitos culturais envolvidos na ação, conexões têmporo-espaciais suficientemente capazes de articular enredamentos entre significativas datas cívicas e religiosas para integrantes do grupo em questão (MELLO, 2010), objetivando ações efetivas no presente para a perseguição de seus objetivos.
A transmissão do evento permite a (re)criação das narrativas do grupo em torno de pertencimentos e valores os quais, por um lado, lhes permitem reavivar a (ideia de) cultura cigana, e, por outro lado, a vivência pela fé e pela memória de suas identidades e práticas ciganas. Tanto a (ideia de) cultura cigana que vai sendo acionada como as identidades ciganas que vão sendo vividas no decorrer da transmissão online se manifestam, através do recurso dos comentários no chat, para o conjunto de espectadores dispersos no espaço e reunidos não-presencialmente na temporalidade do acontecer festivo da transmissão. Sendo assim, a confirmação e/ou recriação de significados para o grupo admite possibilidades múltiplas e variadas, ocorrendo nas intercorrências e interescalaridades individual e/ou coletiva.
As palavras e imagens que remetem ao Parque Garota de Ipanema e à gruta de Santa Sara Kali descortinam a narrativa sobre um específico passado, o qual é moldado e apresentado como trajetória do grupo no espaço e no tempo e, com tal, é (re)vivido no presente de então. Ao adotar esse expediente, o passado é apresentado como campo de possibilidades requerido para gestar e organizar ideias e narrativas sobre o presente. Quando Mirian, durante sua apresentação, evoca o passado, selecionando passagens e pincelando histórias que favorecem a si mesma, e ao seu grupo, esse passado está sendo reconstruído de modo a exprimir uma narrativa, no presente, capaz de forjar ou fortalecer identidades em múltiplas escalas e possibilidades, tais como: dos indivíduos com a sua fé e/ou luta política, do grupo cultural com a preservação dos seus valores e projetos, das classes sociais com as lutas emergentes por maior reconhecimento e legitimidade por parte do poder estatal, de grupos religiosos subalternizados por aqueles hegemônicos e, ainda, reforça as identidades espaciais dos espectadores com a Praça Garota de Ipanema e com o Lugar de Fé para o grupo.
A partir do repertório de possibilidades acima exposto é importante destacar que Mirian e sua família são apresentados como elementos centrais das dinâmicas passadas, dos desafios presentes e como sendo fundamentais para o futuro que se descortina. Entendo que a live constitui-se, para além do que já expusemos até aqui, como vetor de transmissão dos feitos da família Stanescon e como instrumento de difusão de determinadas narrativas políticas e religiosas de uma líder para o conjunto de seus seguidores. Nesse sentido, a escolha pela simbólica data opera, também, na dimensão de manutenção do poder de Mirian e sua linhagem sobre o grupo e, portanto, sobre o território do seu grupo em determinados períodos de tempo (eventos festivos na Praça Garota de Ipanema) e sua contribuição nas complexas interações que possibilitam a gruta de Santa Sara Kali ser reconhecida, vivida e adorada como Lugar de Fé para indivíduos do seu grupo.
Considerações finais
O ato de festejar mudou, mas a fé continua a mesma. Mediante aos novos desafios em decorrência e da consequência de enfrentar o avanço causado pela Pandemia do Covid 19, a humanidade se viu diante das novas maneiras de ser e estar no mundo para celebrar e comemorar a simbólica data. A edição anual da festa em devoção à Santa Sara apresentou, no ano de 2021, dinâmicas espaciais da festa vivida e experienciada de modo híbrido pelos devotos de Sara. A organização oficial do evento, ofereceu e oportunizou caminhos outros para que se imagina e se deseja vivenciar encontra as memórias afetivas daquilo que já foi vivido no lugar festivo.
Para celebrar o dia de Santa Sara Kali e sua fé, devotos ciganos e não ciganos contaram neste ano com um sistema de celebração de modo híbrido. A adoção desse recurso permitiu estar presente, fisicamente, no lugar sagrado, no Parque Garota de Ipanema. E, simultaneamente, assistir os rituais e práticas religiosas por uma live realizada pela líder carismática, a cigana Mirian Stanescon, em diversas plataformas digitais. Essas novas formas de festejar foi possível revelar novas possibilidades, conferindo novos relevos para outros modos de ser e estar festejando na atualidade para os participantes envolvidos com este evento geográfico festivo.
Como foi possível examinar, que o evento realizado presencialmente, na gruta de Santa Sara Kali, reuniu um pequeno grupo de indivíduos, que COM-partilharam as experiências de se estar no lugar sagrado. A ida do devoto ao locus de sua fé possibilitou uma vivência religiosa e comunitária que marcou, no tempo e no espaço, aspectos e elementos materiais e imateriais relacionados com os sentimentos de união com o divino, com o sagrado e com o mistério. Desse modo, as ações e as dinâmicas socioespaciais encontradas no campo, permitiu a interpretação geográfica da importância do Lugar de fé para a vivência e experiência das práticas religiosas festivas, do indivíduo religioso na comunhão entre o sagrado e espaço geográfico.
Nesta edição, notou-se que para se vivenciar o sagrado, foi possível estabelecer outros tipos de conexões. A ida do ser religioso ao lócus sagrado abriu-se a novos caminhos de modo que estes se desdobraram para que os participantes pudessem se fazer presentes no lugar de seus desejos e intenções. Por meio da adoção de plataformas digitais verificou-se, nesse contexto, uma nova via para se vivenciar o sagrado, isto é, um novo caminho a ser trilhado para os indivíduos imbuídos do desejo, transformado em ação, de ir ao encontro do que desejam ver, ouvir, sentir e receber. A intenção desse artigo foi interpretar essa nova relação, examinando novos modos e desafios encontrados por sujeitos para se inter(ligar) com o sagrado. Ao refletir como imaginário geográfico era evocado para se criar sentidos de lugar, a live oportunizou o religare entre devotos e o seu lugar de fé cigana.
Sendo assim, diante novas formas e maneiras de se comemorar e de se festejar, este artigo utilizou da etnogeografia como metodologia de campo – no ciberespaço e – no espaço geográfico. Os resultados alcançados apontam para um sentido de lugar de fé que emerge para os participantes, ainda que em quantitativo limitado, quando se voltam para encontros mediados e possibilitados pela virtualidade com objetivos de celebrar e vivenciar esta simbólica data para o grupo sob investigação. A festa segue se (re)inventando. Mas a fé segue igual.
Notas de campo!
Bibliografia
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