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O processo de anistia no Brasil

Em busca das (im)possibilidades de justiça entre a memória e o esquecimento

Filipe Barreiros Barbosa Alves Pinto

Resumo

Em 1979, no Brasil, João Baptista Figueiredo assume a presidência do país com a incumbência de flexibilizar a política do regime ditatorial. Neste contexto, surgia o movimento pela anistia aos presos políticos, que mobilizou grande parcela da população. Em agosto de 1979 é sancionada a Lei da Anistia. Apesar de ter representado algum avanço no caminho para a democracia, a Lei da Anistia foi incompleta, pois dificultou a punição de torturadores e responsáveis pelo regime, bem como a elucidação dos “desaparecimentos” ocorridos durante a ditadura. A lei da anistia brasileira teve dois movimentos: por um lado, foram anistiados aqueles condenados por crimes políticos e, por outro, os representantes do Estado responsáveis pelas violências políticas. Por isso, até hoje, há disputa em torno dos temas que envolvem a anistia, o direito à verdade e à memória. A palavra anistia aponta para dois sentidos aparentemente opostos, mas que podem ser pensados como complementares. O primeiro é o de anamnesis, que se refere à recordação; o segundo conceito é o de amnésia, que se relaciona com a perda da memória. Há um embate, então, em torno do que a anistia deve representar: se o resgate da memória, o direito à verdade, à reparação e a luta contra o esquecimento, ou o esquecimento em prol das supostas conciliação e unidade nacional. O objetivo deste trabalho é refletir sobre a lei da anistia no Brasil, destacando, prioritariamente os processos de busca por justiça. A forma como foi sancionada a lei da anistia pode até ter representado conciliação parcial e evitado rupturas, no entanto, é possível dizer que ela é justa? É justa uma lei que impede a reparação dos danos, a punição dos criminosos agentes estatais e o acesso aos documentos militares? Para ser justa, a anistia deve representar esquecimento ou lembrança? Para refletir sobre esse ponto, destaco a interpretação de Maria Rita Khel, para quem, o “esquecimento” de um período traumático, imposto pela anistia, fez com que sua violência e seus sintomas voltassem de outras formas, por vezes mais cruéis, na atualidade. Por outro lado, penso essas questões a partir da interpretação de Jacques Derrida acerca do perdão. Para o autor, um processo de perdão só pode ser justo se perdoar o que não pode ser perdoado. Com isso ele propõe que esqueçamos todas as atrocidades de um regime ditatorial? Não. Ele quer dizer que o perdão é impossível. Para ser justo é preciso lidar com a impossibilidade do perdão. Isso significa que, para buscar a justiça, é preciso sempre lembrar que o perdão é impossível. De que maneira a busca pela justiça e a impossibilidade do perdão se relacionam com as políticas da memória? Essa é uma questão central para este trabalho.

Palavras chave

Anistia; Memória e Justiça.


Em 1979, no Brasil, João Baptista Figueiredo assume a presidência do país com a incumbência de dar início a uma abertura política ao regime ditatorial vigente. A forma como seria feita era objeto de disputa dentro do próprio governo, variando entre propostas de abertura veloz, outras de uma mudança “lenta e gradual” e outras que pretendiam abrir o mínimo de margem possível para a democracia, por medo de retaliações. Nesse contexto, somado com o agravamento da situação econômica, aumento da dívida externa e do desemprego, em conjunto com a crescente organização de setores para combater o regime autoritário, surgia o movimento pela anistia aos presos políticos, o qual já tomava as ruas e mobilizava grande parcela da população. Em agosto de 1979 é, então, sancionada a lei da anistia, que excluía os condenados por crimes de sequestro, terrorismo, assalto e atentado pessoal, mas incluía os acusados de tortura, desaparecimento e assassinato durante o regime militar (Migliori, 2016).

Apesar de ter representado algum avanço no caminho para a democracia, a lei da anistia, que prossegue até hoje sem mudanças significativas, foi incompleta, pois dificultou a punição de torturadores e responsáveis pelo regime, bem como da elucidação dos “desaparecimentos” ocorridos durante a ditadura. Dessa maneira, a lei da anistia teve dois movimentos: por um lado, foram anistiados aqueles condenados por crimes políticos e, por outro, também foram os representantes do Estado responsáveis pelas violências políticas (Migliori, 2016).

Há, ainda hoje, grupos que pressionam por uma revisão da lei da anistia, uma revisão que seja capaz de corrigir as falhas contidas nesse processo. Para isso, esses grupos se apoiam, em grande parte, em alguns tratados internacionais como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na Convenção contra a Tortura e na Convenção Americana de Direitos Humanos, nas quais se destacam quatro pontos fundamentais: o direito de não ser submetido à tortura, o direito à proteção judicial, o direito à verdade e o direito à prestação de reparações e de remédios efetivos no caso de violações desses direitos. Segundo esses tratados, ratificados pelo Brasil:

Ao direito a não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direito à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos humanos. Vale dizer, é dever do Estado investigar, punir e reparar a prática da tortura, assegurando à vítima o direito à proteção judicial e a remédios efetivos. Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol do direito da sociedade à construção da memória e identidades coletivas (Piovesan, 2010, p. 98).

É possível notar, portanto, que há uma disputa ainda viva em torno dos temas que envolvem a anistia, o direito à verdade e à memória. A própria palavra anistia aponta para dois sentidos aparentemente opostos, mas que podem ser pensados como complementares. O primeiro é o de anamnesis, que se refere à reminiscência, à recordação; o segundo conceito é o de amnésia, que se relaciona com a perda da memória, com o esquecimento. Ou seja, há um embate em torno do que a anistia deve representar: se o resgate da memória, o direito à verdade, à reparação e a luta contra o esquecimento, ou o esquecimento em prol das supostas conciliação e unidade nacional (Cunha, 2010).

Como afirma Paulo Ribeiro da Cunha (2010), essa conciliação nacional, imposta pelo processo de anistia, representou quase a retirada desse tema da agenda política. Por isso, para ele, a forma como a anistia foi feita pode até ter representado uma conciliação parcial e evitado algumas rupturas, entretanto, não foi expressão de justiça. A impossibilidade de punir os criminosos agentes da ditadura, a impossibilidade de acessar os arquivos militares, a impossibilidade de tentar reparar os erros históricos, podem ser resumidas a partir da grande dificuldade que há no Brasil em lembrar e encarar de frente esse momento. O processo de anistia, como um instituto supostamente capaz de operar uma reconciliação nacional, representa, ainda hoje, um obstáculo para os direitos humanos, o direito à verdade e o direito a reparações. O que a lei de anistia fez foi algo como passar uma régua por cima do que havia acontecido e impor que a sociedade brasileira deveria seguir em frente sem mágoas, sem tentar rememorar esse momento traumático.

Além de não exprimir justiça, para Maria Rita Khel (2010), a forma como foi feito o processo de anistia e a transição democrática no Brasil continua a gerar sintomas e problemas na sociedade brasileira. Para ela, o Brasil, como único país da América Latina que “perdoou” e “esqueceu” os crimes cometidos por regimes militares, convive, por exemplo, com uma naturalização da violência e destaca que a polícia brasileira é a única da região que mata e tortura mais do que durante o período ditatorial. Para a autora, é como se o “esquecimento” desse período traumático fizesse com que sua violência e seus sintomas voltassem de outras formas, por vezes mais cruéis, em nossa sociedade.

No seu artigo “Tortura e sintoma social” (2010), a autora trabalha com a possibilidade de refletir, a partir de conceitos da psicanálise, traumas que são coletivos. Ela relembra que para a psicanálise o esquecimento que produz sintomas não se trata de uma perda fortuita da memória, mas se encontra na ordem do recalque. Sendo assim, ela questiona “se é possível se falar em um inconsciente social cujas representações recalcadas produzem manifestações sintomáticas” (Khel, 2010, p. 124).

A ideia de sintoma social não é unanimidade na psicanálise, mas a autora adere a essa concepção, explica o que ela significa e justifica essa opção. Mesmo confirmando que a análise da sociedade não pode ser a mesma de um sujeito, ela diz que o sintoma social se manifesta de forma semelhante ao dos sujeitos que sofrem e manifestam, de alguma maneira, os efeitos de não saber as causas do seu sofrimento. Para Maria Rita Khel (2010), todos os grupos sociais convivem com efeitos do que lhes é inconsciente e o que é inconsciente em uma sociedade pode ser tanto momentos históricos esquecidos – por proibições ou disputas de poder – ou demandas de minorias que não encontraram formas de expressão, por exemplo. “Excluído das possibilidades de simbolização, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas dos que buscam a clínica psicanalítica” (Khel, 2010, p. 125). Pois, mesmo os sintomas de um indivíduo são menos individuais do que se imagina. Para dar força a esse argumento, ela retoma Lacan, para quem “o inconsciente é aquela parte do discurso concreto enquanto transindividual que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (Lacan, apud Khel, 2010, p. 125).

Nessa concepção, o inconsciente pode ser social, pois nem mesmo o sujeito é um indivíduo autônomo e autocentrado. Ele é fragmentado, pois faz parte de um campo simbólico sustentado coletivamente. O inconsciente é formado a partir dessa coletividade, o que leva Lacan a dizer que “o inconsciente é a política” (Lacan, apud Khel, 2010, p. 125). Isso coloca em questão a divisão radical entre o individual e o coletivo. Dessa maneira, a sociedade guardaria experiências inconscientes, as quais não estariam incluídas nas práticas falantes, nem na memória (Khel, 2010).

A prática da tortura no Brasil estaria, junto com o desaparecimento de cidadãos e a impossibilidade de acesso aos documentos da ditadura, nesse campo das experiências inconscientes, pois foram em grande medida apagados e esquecidos. Maria Rita Khel (2010, p. 126) explica o grande problema desse esquecimento:

Sabemos que nem tudo, do real, pode ser dito; o que a linguagem diz define, necessariamente um resto que ela deixa de dizer. O recorte que a linguagem opera sobre o real, pela própria definição de recorte, deixa um resto – resto de gozo, resto de pulsão – sempre por simbolizar. Nisto consiste o caráter irredutível do que a psicanálise chama de pulsão de morte. Não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da história de uma sociedade. Se o trauma, por sua própria definição de real não simbolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.

Para a autora, a política de esquecimento desse trauma coletivo faz com que a experiência autoritária e violenta da ditadura não possa ser combatida efetivamente e retorne constantemente, até a contemporaneidade, sob novas formas. A maneira como foram feitas nossas “pseudoanistia” e política do esquecimento faz com que não seja possível esquecer, até hoje, as marcas da violência social e é por isso que, para Maria Rita Khel, a tortura resiste, no Brasil, como sintoma social de uma dificuldade de relembrar a história.

Em um texto chamado “Sobre o perdão”, Jacques Derrida (2001) explora as possibilidades e impossibilidades de lidar com justiça e ética diante de episódios traumáticos e “crimes contra a humanidade”. Para refletir sobre isso, Derrida expõe uma discussão acerca do perdão, dos seus significados e limites.

O autor (2001) diz que o conceito de perdão pertence a uma tradição religiosa abraâmica – que remete tanto ao cristianismo, como ao judaísmo e ao islamismo, sem esquecer das diferenças complexas e conflituosas entre eles –, mas que, desde a Segunda Guerra Mundial, ajudou a configurar uma espécie de “teatro do perdão”, no qual há uma urgência de volta ao passado para demonstrar arrependimento, pedir desculpas, perdão, confessar. É possível notar como não só indivíduos, mas comunidades, Estados e líderes diversos pedem “perdão” e mostram arrependimento por crimes ou injustiças cometidos contra outros grupos. Essa linguagem do perdão se multiplicou configurando o que Derrida chama de “geopolítica do perdão”, na qual as relações entre Estados-nação são marcadas por essas representações e performatizações do “perdão”, mesmo entre países que não compartilham da tradição abraâmica – caso do pedido de desculpas feito pelo Japão à Coréia.

Um dos problemas encontrados por Derrida é que esses pedidos de “perdão” são sempre regidos por interesses econômicos, políticos, de “reconciliação” e retomada da harmonia diplomática. Ou seja, é como se o perdão se transformasse em uma moeda de troca em uma negociação. No entanto, para Derrida, a existência de uma finalidade no perdão o afasta de si mesmo. Diz o autor (2010, p. 32):

Eu arrisco essa proposição: o tempo todo o perdão está a serviço de uma finalidade, mesmo que seja ela nobre e espiritual (redenção, reconciliação, salvação), o tempo todo ela busca reestabelecer uma normalidade (social, nacional, política, psicológica) por um trabalho de luto, por alguma terapia ou ecologia da memória, então o “perdão” não é puro – nem é o seu conceito. O perdão não é, ou não deveria ser, normal, normativo, normalizador. Ele deveria permanecer excepcional e extraordinário, em face do impossível: como se interrompesse o curso ordinário de uma temporalidade histórica.

Para o autor, o perdão só é verdadeiro quando ele perdoa o que não pode ser perdoado. E aqui Derrida aporta em seu terreno favorito: o da aporia. Essas questões que são impossíveis de serem resolvidas são, para Derrida, capazes de mover, de ser o combustível para tomar decisões éticas e justas, se é que elas são possíveis em sua concepção. Ao considerar que o perdão só é o perdão do imperdoável, para ele, o perdão é impossível. Sendo assim, o perdão não pode ser confundido com ideias como arrependimento, pedidos de desculpas, anistia. O perdão não poderia pedir nada em troca e nem impor condições.

Para explicar melhor essa ideia, Derrida (2010) debate com Jankélévitch, para quem a Shoah é um evento imperdoável, pois os criminosos não pediram perdão. No entanto, Derrida discorda, pois vê nisso uma lógica de troca, de comércio, que se afasta do perdão puro. Afinal, quando se perdoa alguém que se arrependeu, o criminoso não é mais o mesmo e, portanto, não foi ele quem foi perdoado, mas “outra pessoa”. Outro argumento de Jankélévitch é que o imperdoável é aquilo que não pode ser punido. No entanto, para Derrida, mantém o mesmo problema: a exigência de uma contraparte. Ele sintetiza esse argumento dizendo que o que Jankélévitch busca é um sentido para o perdão, seja ele a salvação, a reconciliação, a redenção, no entanto, encontrar um sentido para o perdão faz dele perdoável e o que Derrida defende é que ele só pode ser perdão se perdoa o imperdoável. O perdão, para o autor, não pode ter nenhum sentido.

Para ele, o perdão verdadeiro é como um ato de loucura e deve permanecer assim: impossível. “Essa é mesmo, talvez, a única coisa que chega, que surpreende como uma revolução o curso ordinário da história, da política e da lei. Porque isso significa que permanece heterogêneo à ordem da política ou do jurídico como eles são ordinariamente entendidos” (Derrida, 2010, p. 39). Ou seja, a impossibilidade do perdão é aquilo que é capaz de surpreender, de gerar coisas novas, de abrir brechas para o diferente, para o outro, de não reproduzir mais do mesmo. Por isso, Derrida alerta que não se deve anunciar uma política ou uma lei em nome do perdão. A lei e a política regularizam, o perdão é o que rompe. Fundar uma lei em nome do perdão significa apagar todo o seu potencial transformador. Uma lei ou uma política do perdão geram o esquecimento do que passou em prol da reconciliação, da unidade nacional, da harmonia. Portanto, isso não tem nada a ver com o perdão, pois espera algo em troca.

Outro problema da política do perdão, que destoa da tradição abraâmica, na qual o perdão deve ser fruto de uma relação entre vítima e culpado, é que outra instância como a lei ou o Estado sempre intervém nessa relação. Nesse caso, pode-se falar de reparação, anistia, etc., mas não de perdão. Uma terceira instância não pode perdoar pela vítima. Derrida (2001, p. 43) exemplifica isso que está querendo dizer com um episódio que ocorreu durante a realização do comitê da verdade na África do Sul. Uma mulher, cujo marido havia sido assassinado por torturadores da polícia foi chamada a testemunhar e disse algo como: “uma comissão ou um governo não podem perdoar. Só eu, eventualmente, poderia fazer isso (e eu não estou pronta para perdoar)”. Nesse sentido, só quem é capaz de perdoar é a própria vítima. Nenhuma outra instituição pode perdoar pela vítima. Porém até isso é posto em xeque por Derrida, pois, para ele, sempre haverá algum outro polo entre a vítima e o culpado, seja o Estado, a lei, alguma instituição, a linguagem. É por isso, também, que o perdão sempre será impossível.

Mas o que resta fazer? Esquecer as maiores atrocidades e perdoar sem exigir nada em troca? Não se deve cobrar nenhuma reparação? O que foi visto acima, a partir de Maria Rita Khel, é que a ausência de reparações, de punições, da cobrança de direitos significou um grande problema para a sociedade brasileira, pois até hoje continua a reproduzir sintomas de um trauma. No entanto, Derrida afirma que o verdadeiro perdão não pode exigir nada em troca. Como esperar justiça a partir dessa concepção de perdão?

Derrida aponta que, mesmo na tradição religiosa, há vezes em que o perdão é dado sem troca e sem condição, mas outras vezes é necessário o arrependimento ou a transformação daquele que cometeu o pecado. Essa tensão é importante para o autor e é a partir dela que ele tenta fornecer explicações para as últimas questões:

Se nossa ideia de perdão é arruinada assim que é privada do seu polo de referência absoluta, nomeadamente sua pureza incondicional, ela permanece, no entanto, inseparável do que é heterogêneo a ela, nomeadamente a ordem das condições, arrependimento, transformação, tantas coisas quantas a permitem inscrever-se na história, na lei, na política, na existência em si mesma (Derrida, 2001, p. 45).

Ou seja, há um movimento duplo entre o perdão e a política. Por um lado, eles são irredutíveis, um não se confunde com o outro, são absolutamente heterogêneos. No entanto, são indissociáveis.

Se se quer, e isso é necessário, que o perdão se torne efetivo, concreto, histórico; se se quer que isso chegue, que aconteça pela mudança das coisas, necessário que essa pureza se engaje ela mesma em uma série de condições de todos os tipos (psico-sociológica, política, etc.) (Derrida, 2001, p. 45).

Essa discussão se assemelha bastante à reflexão derridiana acerca da relação entre a justiça e a lei. A justiça, assim como o perdão, é impossível. Para Derrida, a justiça e a ética devem ser guiadas pela possibilidade de acolhimento do outro, de oferecer hospitalidade para o outro, para o diferente. A justiça depende do amor e do acolhimento total e irrestrito ao completamente outro. No entanto, é impossível atingir plenamente a justiça, dentre outras coisas, porque no momento em que ela fosse atingida e algo fosse afirmado como justo, ao mesmo tempo uma fronteira seria criada compondo o que seria considerado injusto. Isso, por si só, impede o acolhimento do completamente outro, fechando-se para o que é diferente. De certa maneira, a justiça só é possível em sua impossibilidade, em sua aporia. Só pode haver justiça quando o caminho está bloqueado, pois se o caminho está livre o que se faz é aplicar leis mecanicamente, mantendo a segurança do que já está dado. Sobre a justiça, Derrida aponta para algo interessante: para ele, não há nenhum lugar que esteja simplesmente fora da lei, nenhum lugar para ser procurado e achado, pois não há justiça pura. Ela é impossível. Dessa maneira, é preciso amar a justiça e saber lidar com a lei, para abri-la sempre que possível à justiça (Caputo, 1997). A justiça não pode ser confundida com a lei. No entanto, elas são inseparáveis e a justiça é urgente. É preciso encarar a impossibilidade da justiça para dialogar com a lei e com a política de maneira a buscar sempre a abertura para a vinda do outro. A justiça não cabe na lei, nunca caberá, a lei impossibilita a justiça. No entanto, não é possível pensar uma sem a outra. Para Derrida (apud, Ghetti, 2004, p. 101):

Esse excesso da justiça sobre o direito e sobre o cálculo, esse transbordamento do inapresentável sobre o determinável não pode e não deve servir de álibi para a abstenção das lutas jurídico-políticas no interior de uma instituição ou de um Estado, entre instituições ou entre Estados.

Dessa maneira, de forma semelhante, Derrida não é contra a reparação, ou a reconciliação, ele só quer dizer que esses conceitos não podem ser confundidos com o perdão. Um perdão que seja finalizado não é perdão, pois o verdadeiro perdão é impossível. Como a economia e a estratégia política podem esconder muitas violências é preciso encarar de frente esse paradoxo, essa aporia. É esse paradoxo que faz com que os processos estejam sempre abertos. E ao contrário do que pode parecer, essa impossibilidade é condição de responsabilidade, é ela que move, é ela que faz com que algo seja sempre buscado, mesmo que não seja nunca alcançado. Diz Derrida (2001, p. 51):

Eu permaneço “rasgado” / “fragmentado” (entre uma visão ética “hiperbólica” do perdão, puro perdão, e a realidade de uma sociedade em funcionamento em processos pragmáticos de reconciliação). Mas sem poder, desejo, ou necessidade para decidir. Os dois polos são irredutíveis, certamente, mas permanecem indissociáveis. Para modular a política, ou o que pode ser chamado “processos pragmáticos”, para mudar a lei (a qual, assim, se acha entre dois polos, o “ideal” e o “empírico” – e o que é mais importante para mim é, entre esses dois, essa mediatização universalizadora, essa história da lei, a possibilidade do progresso da lei), é necessário se referir a uma “visão ética ‘hiperbólica’ do perdão”. Mesmo se eu não estou certo das palavras “visão” ou “ética” nesse caso, deixe-me dizer que só essa exigência inflexível pode orientar uma história das leis e a evolução da lei. Isso sozinho pode inspirar aqui, agora, na urgência, sem espera, respostas e responsabilidades.

Dessa maneira, foi possível perceber como o conceito de perdão de Derrida está relacionado com suas noções sobre ética e justiça. Esses são temas fundamentais na obra derridiana e constituem o núcleo de suas preocupações. O perdão verdadeiro é, para o autor, a possibilidade de agir eticamente, agir com justiça, se é que isso é possível. Muito disso se relaciona a algo que foi dito anteriormente, mas que está presente em toda sua discussão. Em grande parte, o perdão representa justiça, pois ele não é normativo, nem normalizador. O perdão, por ser impossível, é extraordinário e, por isso, capaz de romper com o desenrolar natural de uma temporalidade histórica, capaz de se abrir para outro, de recepcionar o outro. Isso remete a outra discussão fundamental em Derrida: a sua concepção de história.

Para John Caputo (1997), a noção derridiana de história depende do conceito de messiânico. É através dele, por exemplo, que Derrida pensa o futuro:

Não o relativo e previsível, programável e planejável futuro, mas o futuro absoluto, as boas vindas estendidas para um outro que eu não posso, em princípio, antecipar, o completamente outro, cuja alteridade perturba os círculos complacentes do que é o mesmo (Caputo, 1997, p. 156).

Com relação ao perdão, ele que é capaz de possibilitar essa abertura para o futuro absoluto, um futuro que não depende de cálculos e negociações, projetos de reconciliação e de restauração. É o messianismo que, na concepção derridiana, é capaz de garantir essa abertura para o futuro.

Contudo, a noção de messianismo não foi aceita logo por Derrida, pois ele temia que pudesse transparecer a ideia de um horizonte de possibilidade. Mas, sob influência de Walter Benjamin, adota esse termo como um “fraco poder messiânico” ou um “messianismo sem messianismo”. O messianismo de Derrida não pertence a um só povo, não pode ser detido como a verdade final, que deve ser buscada a qualquer custo. O messianismo de Derrida é fraco, relaciona-se com a promessa de um futuro absolutamente indeterminado, que está sempre por vir, que não pode chegar nunca.

É fundamental notar que, para Derrida, o tempo messiânico se relaciona com a não presença do Messias, com a promessa de uma vinda que nunca acontecerá, mas na qual é preciso continuar acreditando. Isso se dá porque a presença material do Messias seria desastrosa, pois fecharia a estrutura da esperança, da promessa do futuro. Nesse sentido, o Messias deve estar sempre por vir. O Messias é o completamente outro, é aquele que despedaça os horizontes estáveis, vai além do que é possível e previsível (Caputo, 1997).

A desconstrução, que é a possibilidade de encontrar brechas no que está consolidado para ensejar o surgimento de diferenças capazes de romper com as injustiças, na perspectiva derridiana, é uma paixão pelo impossível, por algo que está sempre por vir, indesconstrutível e impossível. Se na religião o nome desse amor é Deus, na desconstrução assume vários nomes: justiça, hospitalidade, ética, democracia e, pode-se dizer, perdão. O messianismo de Derrida, portanto, não se identifica com a figura do Messias, apenas retém sua futuricidade, o seu por vir (Caputo, 1997).

Para entender um pouco melhor a noção de história em Derrida é preciso retomar o pensamento de Walter Benjamin e seu conceito de origem ou Ursprung. Para Jeanne Marie Gagnebin (2011), a noção de origem, que serve de sustento para várias reflexões de Benjamin, é pilar para uma teoria da história regida por outra temporalidade, que não aquela linear, progressiva e exterior ao evento. Nesse sentido, a história se aproximaria de uma coleta de informações, o que tornaria a tarefa do historiador semelhante à do colecionador e não daquele intelectual que tenta estabelecer relações causais entre os fatos do passado. Cada fato histórico seria apresentado em sua unicidade, em sua excentricidade.

A pesquisa historiográfica estaria próxima do estudo do fenômeno, não para descrevê-lo de maneira positivista, mas para restituir sua dimensão única e que não pode ser reduzida; buscando, com isso, a preservação do esquecimento e da destruição. O Ursprung, nessa concepção, estaria próximo do sentido de Sprung (salto); a origem seria entendida como salto para fora da sucessão cronológica e da continuidade do tempo da historiografia tradicional.

Trata-se muito mais de designar, com a noção de Ursprung, saltos e recortes inovadores que estilhaçam a cronologia tranquila da história oficial, interrupções que querem, também, parar esse tempo infinito e indefinido, como relata a anedota dos franco-atiradores, que destroem os relógios na noite da revolução de julho[1]: parar o tempo para permitir o passado esquecido ou recalcado surgir de novo (ent-springen, mesmo radical de Ursprung), e ser assim retomado e resgatado no atual (Gagnebin, 2011, p. 10).

Esse salto, essa interrupção da continuidade sem percalços da história é o que permite que outras histórias, aquelas reprimidas, sejam contadas, ou seja, que o outro possa surgir.

Então, para Benjamin, a história narrada de forma contínua é responsável em grande parte por dificultar outras experiências, em dificultar a expressão das diferenças e em promover a continuidade da dominação e da história dos vencedores.

A tradição ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção (Benjamin, 2012, p. 13).

Esse verdadeiro estado de exceção a ser provocado é aquele que excede o tempo contínuo e linear, aquele que rompe a versão da história dos vencedores e é capaz de escutar a voz dos vencidos. O estado de exceção do qual Benjamin fala deve ser buscado nas ruínas, nos cacos e fragmentos da história:

Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o irreparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos de progresso é este vendaval (Benjamin, 2012, p. 14).

É o progresso, a história contínua e linear, que impede que as ruínas e os fragmentos sejam reconstruídos, é essa continuidade que não permite que os vencidos possam se expressar e que é responsável pelo acúmulo crescente de ruínas.

Nessa concepção benjaminiana da história o passado nunca é completamente passado. Ele modifica e é modificado no presente. Dessa maneira, os atos do lembrar e do esquecer estão muito próximos e quando algo é rememorado é porque uma série de outras coisas foi esquecida. Gagnebin (2010) afirma que ao tentar operar uma reconciliação através da anistia e um esquecimento do passado em prol da harmonia, o que houve não foi apenas a imposição do esquecimento, mas também a imposição de uma forma única de lembrar. Essa forma única de lembrar pode ser compreendida como a história progressiva e linear da qual nos fala Benjamin, a história dos vencedores, que por trás de uma aparente harmonia esconde montes gigantes de ruínas. Essa história que privilegia os momentos de reconciliação e de coerência deixa de lado aqueles fragmentos que guardam as vozes dos vencidos. No caso do processo de anistia essas vozes silenciadas são as vozes dos torturados, desaparecidos, de seus familiares e de todos aqueles que continuam sofrendo com os sintomas da violência que ainda teimam em se manifestar.

A importância do perdão, para Derrida, está em sua impossibilidade. Uma política da memória que busque a ética deve reconhecer a impossibilidade do perdão. É essa impossibilidade que deve guiar as políticas com relação ao período ditatorial. A consciência da impossibilidade do perdão faz com que o passado seja sempre retomado, relembrado, que suas ruínas sejam remexidas, que as vozes silenciadas possam ser escutadas. No entanto, se políticas forem realizadas em nome do perdão, políticas que se confundam com o perdão, o que ocorrerá será um apagamento do passado e um reforço daquela historicidade que esconde as ruínas. Se os traumas foram considerados perdoados, nada mais pode ser feito e o passado continuará a assombrar o presente com seus sintomas. Desse ponto de vista, só a compreensão de que o perdão é impossível é capaz de seguir movendo o passado, de seguir tentando remediar o passado, de seguir tentando alcançar a justiça, mesmo que isso nunca seja atingido. Só a compreensão de que o perdão é impossível exige a necessidade de lembrar constantemente desse trauma, de lembrar sempre dos seus horrores, de buscar constantemente a justiça, de tentar evitar sempre que ele se repita.

Bibliografia

Benjamin, Walter. Sobre o conceito da História. In: João Barrento (org.). Walter Benjamin o anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 7-20.

Caputo, John. Deconstruction in a Nutshell: a conversation with Jacques Derrida. Nova York, Fordham University Press, 1997.

Cunha, Paulo Ribeiro da. Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: Teles, Edson; Safatle, Vladmir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 15-40.

Derrida, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness. Routledge, Londres e Nova York, 2001.

Gagnebin, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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  1. A consciência de destruir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no momento da sua ação. A grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com que se inicia um calendário funciona como um dispositivo de concentração do tempo histórico. E é, no fundo, sempre o mesmo dia que se repete, sob a forma dos dias e feriados, que são dias de comemoração. Isso quer dizer que os calendários não contam o tempo como os relógios. São monumentos de uma consciência histórica da qual parecem ter desaparecido todos os vestígios na Europa dos últimos cem anos. Na revolução de julho aconteceu ainda um incidente em que essa consciência ganhou expressão. Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em vários locais de Paris, várias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, começaram a disparar contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva seu poder divinatório à força da rima, escreveu nessa altura: (…)
    [Incrível! Irritados, com a hora, dir-se-ia,
    os novos Josués, aos pés de cada torre,
    alvejam os relógios, para suspender o dia.] (Benjamin, 2012, p. 18)


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