Book cover

9789877230284-frontcover

9789877230253-frontcover

9789877230741-frontcover

Típico das margens

História e Cotidiano de uma Produtora Tradicional de Bolo de Arroz

Regiane Caldeira, Maria Inês Rauter Mancuso
e Silviane Ramos Lopes da Silva

Resumo

O presente estudo perpassa uma realidade de embates seja pela e na sobrevivência do resistir, quanto na produção do alimentar. Essa realidade se expressa no município de Cáceres-MT, nos lugares em que o silenciamento propicia a sobrevivência de uma senhora que há mais de 40 anos vive da produção do bolo de arroz, típico da região, e que muitas vezes é apresentado aos visitantes como um gesto de boas-vindas. Esse quitute produzido, em sua maioria, com arroz, mandioca, açúcar, erva-doce, coco ralado, manteiga e leite, é considerado patrimônio cultural do Estado. No caso citado, o bolo é transportado até a porta da sociedade cacerense e do comércio local, por meio dos pedais e das garupeiras dos boleiros que se deslocam por toda cidade em suas bicicletas autocaracterizadas. Neste contexto, o presente estudo busca compartilhar a história de vida e o cotidiano de uma produtora de bolo de arroz que vive às margens do mercado formal e discutir quais mecanismos a auxiliam a construir este espaço de resistência diante das pressões do mercado racionalizado. As evidências empíricas foram geradas a partir de entrevistas realizadas com a produtora e clientes ao longo de 2016 e início de 2017, como também observação assistemática durante os processos de preparo e comercialização do bolo de arroz. A base teórica aborda o típico a partir de Luís Câmara Cascudo (2011) e Massímo Montanari (2013), memória e silenciamento através de Michael Pollak (1989), percepção das microrresistências e artes de fazer por Michel Certeau (2013). A fim de fortalecer a relevância das práticas ordinárias utilizou-se o conceito de biopoder de Michel Foucault (2000), partindo do argumento de que a alimentação não se trata de algo abstrato e desconectado da realidade, pois o ato de se alimentar é onipresente na vida do ser humano, por conseguinte, detentor de valores simbólicos, culturais e subjetivos. Destarte, torna-se relevante discutir até que ponto os mecanismos de racionalização são relevantes e a partir de que momento passam a ser meramente discursos que traduzem instâncias de poder em confronto, interesses econômicos, conflitos estruturais e embates políticos. Os resultados apresentam a história de uma pessoa que replica o seu saber fazer ao longo dos anos, tendo como base conhecimentos passados por sua avó, sem vislumbrar a participação no mercado formal, cheio de “regras complicadas”, ademais, identificou uma demanda que busca estabelecer e manter conexão com saberes e fazeres tradicionais. Estes indicativos mostram que diante de tendências de padronização, homogeneização e apagamento, resistem forças que reconhecem e valorizam aspectos construídos na simplicidade da vida cotidiana.

Palavras-chave

Comida típica; Cotidiano; Resistência.

I. Introdução

A alimentação, elemento indispensável à sobrevivência humana, além de sustentar o corpo físico, auxilia na sustentação de outros corpos da vida social. Em meio aos aspectos que compõem o mundo cultural, a comida e seus aparatos são marcadores, diferenciando e identificando costumes, práticas e crenças grupais. Comida não se relaciona apenas com o que está no prato e nos copos, mas a toda uma cadeia de acontecimentos, relações e sujeitos que, por questões culturais, elegem determinados alimentos e rituais como parte dos hábitos.

Dentre as opções alimentares disponíveis e reconhecidas como comida, algumas se destacam por representar a cultura gastronômica de um grupo: saberes e fazeres em relação ao que, como, quando e com quem se come e ao significado atribuído ao alimento. Aparece assim a comida típica que representa, por razões climáticas, geográficas, políticas, religiosas, entre outras, os costumes alimentares de grupos específicos. A construção do típico segue processos que carregam saberes que ressoam no espaço e no tempo, expressando formas sociais e vivências culturais por meio do que se come.

Para este estudo, realizamos um recorte da pesquisa de doutoramento de uma das autoras[1], sobre a construção de pratos típicos tendo, como caso exemplar, o bolo de arroz mato-grossense. O estudo se centra em uma produtora tradicional, a Sra. Regina de Cáceres-MT, que ainda resiste às pressões de um modelo racionalizado. Em 2016 e 2017, nós a entrevistamos. Fizemos, também, observação assistemática durante o preparo e a comercialização do bolo.

II. Marco teórico

A palavra típico remete àquilo que distingue, caracteriza e simboliza coisas, pessoas, lugares, situações e os simboliza. A utilização desta palavra descreve aspectos notados de maneira recorrente. “Isso é típico desta pessoa, deste lugar ou desta cultura” demonstra o que está presente nesses sujeitos e objetos, e os identifica. O típico pode, também, ser algo esperado, imaginado, atribuído a algo ou alguém, em consequência do que se viveu, vive ou se emprestou, como as memórias herdadas (Halbwachs, 2006). Assim, vivemos construindo típicos, referências flutuantes e dinâmicas.

Cascudo (2011) descreve costumes alimentares no Brasil, nativos e estrangeiros, indígenas, africanos e portugueses, misturados e ressignificados para atender aos paladares e possibilidades de cada época. Destaca, ainda, elementos básicos e técnicas de preparo daquela alimentação, identificando características que distinguem a comida e os rituais dos grupos citados, e a mistura de elementos, antes separados, que constrói novos saberes e fazeres visualizados como hábitos alimentares. Cria-se o típico.

A construção do típico, assim, não se faz exclusivamente de elementos particulares de cada grupo. Na alimentação brasileira, pratos considerados típicos contam com ingredientes e técnicas de preparo de múltiplas origens. Eles tornam-se tão nossos que a origem não é comumente discutida. À pergunta sobre a origem do arroz em Mato Grosso, a Sra. Eulália[2], produtora de bolo de arroz em Cuiabá-MT, sorrindo respondeu: “ele já estava aqui, é arroz simples, normal”. Ou seja, é parte do cotidiano: não precisa ser problematizado.

“As cozinhas típicas e regionais são processos de lentas fusões e mestiçagens, desencadeadas nas áreas fronteiriças e, depois, arraigadas nos territórios como emblemas de autenticidade local, mas cuja natureza é sempre híbrida e múltipla” (Montanari, 2013, p.11). Por exemplo, o arroz com feijão é uma comida típica brasileira. De onde eles vieram? As origens são múltiplas (Pereira, 2002; Embrapa, 2000), como são múltiplas as origens do que hoje podemos chamar de “o povo brasileiro”.

A combinação arroz e feijão, consumida como alimento cotidiano, leva a crer que o típico é construído a partir de alguns aspectos básicos: aceitação, presença contínua e significado. Independentemente de onde vieram, determinados elementos são aceitos como parte da dieta alimentar cotidiana de grupos humanos, gerando significados para os que deles se alimentam, marcando vivências, histórias, tradições, construindo representações.

Podemos pensar ainda as razões pelas quais o típico é construído. Observa-se que muitos pratos são considerados típicos pela tradição, entendida como “aquilo que é transmitido entre gerações pela experiência” (Lucena, 2013, p.84), mas também por demandas mercadológicas, como mostra Coutinho (2005), sobre a invenção de identidades.

Gosto e memória

O gosto é uma construção social, compartilhada pelos sujeitos, desde o nascimento até a morte, levando a acreditar que “os comportamentos alimentares são fruto não apenas de valores econômicos, nutricionais, salutares, racionalmente perseguidos, mas também de escolhas (ou de coerções) ligados ao imaginário e aos símbolos, de que somos portadores e, de alguma forma, prisioneiros” (Montanari, 2013, p. 79). O gosto, “propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas” (Bourdieu, p. 83) é uma disposição durável. Disposição refere-se a uma tendência individual, “de reagir de certa maneira em determinadas circunstâncias” (Rosenberg, p.32). Comer insetos e determinados animais, por exemplo, pode causar ojeriza para uns e prazer para outros. Os padrões alimentares determinam o que é saudável, saboroso, adequado, rentável e correto para se cultivar, criar, colher, abater, preparar e comer.

Em meio a estes processos, a memória desempenha o papel de armazenar informações derivadas de experiências vividas e que articulam os tempos presente, passado e futuro. São as experiências inscritas na memória coletiva que conferem sentimento de continuidade e pertencimento a um grupo. Essas experiências podem definir e se expressar nos gostos. A memória está impressa, inconscientemente, nas formas de ser, agir e pensar: está impressa em nosso corpo, em nossa forma de andar, olhar, sentar, comer…

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (Pollak, 1989, p.7).

Diante dos empenhos para reforçar pertencimentos e fronteiras, a alimentação configura-se como um dos elementos indissociáveis da vivência e sobrevivência humanas. O saber ligado à escolha, ao armazenamento, ao preparo e compartilhamento da comida, serve como referência para manter a coesão do grupo (Pollak, 1989). Em uma abordagem durkheimiana, a comida, o gosto e as formas de comer são transmitidos na socialização pela sociedade da qual fazemos parte.

O saber fazer era, e ainda o é, em alguns grupos e em muitas situações, transmitido oralmente ou pela observação assistemática e preservada na memória. O preparo sem o livro de receitas, instrumento racionalizado de transmissão de saberes, ocorre de forma que expressa na comida lembranças dos ingredientes, das quantidades adicionadas “a olho”. A textura é definida pela observação da cor, peso ou forma da massa; o cozimento, pelo cheiro, cor, consistência. Essa forma de aprendizagem pode ter levado à perda de muitos saberes. Diferentemente, com a

construção de uma memória escrita da cozinha, torna-se possível o desenvolvimento cumulativo dos conhecimentos […]. A cozinha escrita permite codificar, em um repertório estabelecido e reconhecido, as práticas e técnicas elaboradas em determinada sociedade. A cozinha oral teoricamente está destinada, em longo prazo, a não deixar traços de si (Montanari, 2013, p.62).

A memória resiste ao tempo por períodos finitos. Quando compartilhada por quem viveu, ganha ou perde nuances dada a característica de seletividade do rememorar e do fato de que são os estímulos do presente que inquerem o passado (Halbwachs, 2006). Quando apreendida por quem não viveu, os sentidos e significados diferem. A memória escrita preserva o que foi vivido e o que foi rememorado, o que ela traz pode ser aprendido por quem não compartilhou das experiências escritas, preservando, em certa medida, o que se traz de ensinamento.

O saber fazer residente na memória pode adotar formatos fixos, em contraponto à fluidez. Mauss (1974) discute como o próprio corpo preserva uma memória coletiva nas formas de andar, correr, olhar, comer. Apesar de culturais, parecem fazer parte da natureza. Assim, também, algumas comidas são preparadas e degustadas sem questionamentos. Algumas, por outro lado, despertam sentimentos de aconchego. Diálogos do ontem com o hoje, fazer e comer relembrando despertam encantamentos. Alimentam a alma, além do corpo, originando o conceito de comfort food[3] (Locher, Yoels, Maurer, & Ells, 2006; Caldeira & Fava, 2016).

Cozinha e poder: reflexos de uma sociedade

A comida e os modos de comer são distintivos sociais (Poulain, 2013), primordiais no estabelecimento e manutenção da sociabilidade. Marcadores étnicos e sociais, classificam e hierarquizam pessoas e grupos sociais, incluem ou excluem. As cozinhas são formas de resistir à industrialização e tecnologização que podem apagar especificidades regionais (Contreras & Gracia, 2011).

Comer é diferente de nutrir-se. Para este, basta que os nutrientes desejados sejam balanceados, unidos e ingeridos nas refeições diárias, em cápsulas ou shakes. O comer envolve um cerimonial, processo que começa muito antes da comida no prato e bebidas nos copos.

Manter a cultura gastronômica ou, pelo menos, traços dela, tornou-se uma luta, travada diariamente, contra os encantos e desencantos do mundo globalizado e racionalizado. O que antes era preparado ao som do estalar da madeira queimando, sob os olhos atentos de quem prepara e doma o fogo, hoje pode ser finalizado em minutos no micro-ondas, pois compra-se, quase pronta, a comida montada (Montanari, 2013). Regras e procedimentos descartam singularidades que, mesmo ausentes, permanecem nas mentes daqueles que viam, neste proceder, um sentido. As práticas tornam-se esterilizadas, “limpas” dos modos tradicionais e subjetivos, para o atendimento das novas formas de fazer, adequadas ao modus operandi vigente.

Em “O nascimento da clínica”, Foucault (2004) discute os pilares que sustentam o modelo biomédico, e aponta transformações que substituem, de forma gradativa, a subjetividade presente nos processos de cura, pelo olhar objetivo sobre o ponto de manifestação da doença, afastando-se das formas de perceber detalhes que vão além desse ponto. Transferindo este entendimento para a alimentação, com a industrialização e racionalização passamos pelo mesmo distanciamento: engolimos substâncias, sem nem ao menos conhecer origem, formas de preparo, significados. O objetivo é preencher o vazio que existe no estômago, sem dar atenção aos vazios que se formam em outros ambientes da vida cotidiana.

Foucault (2000), em “Em defesa da sociedade”, discute o biopoder, conjunto de formas de controlar os corpos, ajustando suas expressões e produções aos processos econômicos, aparato essencial ao capitalismo. O saber fazer em seu formato originário passa, nesse processo, por adequações, atendendo normas que estabelecem o que se deve comer, como preparar, armazenar, distribuir, que legislam em favor dos que conseguem se encaixar de forma física e emocional a estes requisitos. O espaço físico da cozinha deve ser azulejado, com telas nas portas e janelas, bancadas de inox; o manuseio feito com toucas, uniformes, luvas, sem acessórios, calçado fechado e antiderrapante; os fluxos de produção afixados nas paredes, cronometrados, controlados, com licenças de funcionamento das mais variadas à vista. Como pensar tantas produções tradicionais, parte de nossa história e cultura, que não atendem a tudo isso? A condição é: “adapte-se”, “ressignifique-se”. A sociedade passa a agir, direcionada por discursos que conferem verdade a interesses na maioria das vezes desconhecidos. Como era quando estes mecanismos não existiam? Em nossas casas, seguimos tudo isso? E por que não adoecemos ou morremos em grande escala?

O caso da chef Roberta Sudbrack (G1, 2017) ilustra o que entra ou não entra, permanece ou sai, de espaços delimitados por poderes disciplinares. Durante o evento Rock in Rio (2017), a chef organizou-se para comercializar a produção de pequenos produtores do município de Gravatá, Pernambuco, composta por queijos, linguiças, salsichas, mas foi impedida de comercializá-los, mesmo com uma fila que passava de 100 pessoas, esperando para comprar. A vigilância sanitária interditou o espaço e informou, em nota, que faltava um carimbo para comercialização dentro do município do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Roberta escreveu à mão um aviso colado em seu estande do Rock in Rio: “Fomos fechados pela Vigilância Sanitária do RJ porque usamos produtos de artesãos brasileiros. Todos os produtos estavam dentro das normas sanitárias e dentro da validade. Os produtos foram jogados fora!!! Enquanto no mundo tanta gente está morrendo de fome”. Relatou que os garis, chorando muito, não quiseram jogar a comida fora. Trabalhando há mais de 20 anos com estes produtos, Roberta afirmou:

Sem o pequeno produtor nacional, a gastronomia brasileira acabará. Na Europa, esse tipo de produção é motivo de orgulho. Participei de congressos na Espanha, na Itália e na França. Contei a história desses alimentos e os ofereci para degustação. Todos adoraram. É um trabalho da vida inteira que está em jogo. Não é um carimbo (da prefeitura).

Este caso apareceu nas mídias. De outras pessoas, sem acesso à mídia, os cotidianos contêm histórias pouco conhecidas fora do seu círculo. “Os artistas cotidianos das maneiras de falar, vestir e de morar, são fantasmas na arte moderna patenteada […]. Mil modos de vestir-se, de circular, de decorar, imaginar, traçam as invenções nascidas de memórias ignoradas” (Certeau & Giard, 2013, p.199). Alcançam também as práticas alimentares, saberes e fazeres “que exigem tanta inteligência, imaginação e memória, quanto as atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas, como a música ou a arte de tecer. Neste ponto, constituem de fato um dos pontos fortes da cultura comum” (ibidem, p.212). Os modos de fazer nascidos do popular e comum despertam olhares que, mesmo sem admitir, redesenham processos e produtos, atribuindo a estas “novas” formas de produção, valores visíveis, em oposição aos invisíveis que as originaram. A comida passa então, a ter classe, literalmente. Os movimentos de gourmetização (Palmieri, 2017) são uma prova disso: o alimento torna-se decoroso, como o alho, alimento camponês, que “artificialmente” se modifica quando adicionado à carne do marreco (Montanari, 2013).

III. Metodologia

A geração de dados ocorreu por meio de entrevista, observação não participante e pesquisa documental. Foram realizadas quatro visitas ao total ao longo de 2016 e o primeiro semestre de 2017. A primeira centrou-se em conhecer a história de vida da produtora e as outras nos momentos de preparo (madrugada, manhã e tarde) e comercialização do bolo de arroz (madrugada e manhã).

IV. Análise e discussão de dados

Cáceres é um município histórico, situado no Estado do Mato Grosso, fronteira com a Bolívia. É banhado pelo rio Paraguai, possui diversas cachoeiras. Pelo censo de 2010, o município tinha cerca de 90 mil habitantes. Sua base econômica é a pecuária, com um rebanho de 1.083.531 cabeças (IBGE, 2015). É considerada a cidade das bicicletas: 130.000 segundo reportagem do Globo Repórter (2012). Este meio de transporte, desde muito cedo, é parte da cultura local. Hoje, nota-se que “magrelas” como são geralmente chamadas, estão perdendo espaço para as motos e carros, alterando a paisagem da cidade. É no movimento dos pedais de bicicletas autoestilizadas, cortando a cidade de ponta a ponta, logo no raiar do dia, que os boleiros[4] de Dona Regina levam, para muitos, o café da manhã – o bolo de arroz.

Com jeito próprio, os boleiros chamam os clientes que logo aparecem nos portões ou entradas de seus comércios, ávidos pelo quitute quentinho, com cheiros característicos que se acentuam quando a tampa da caixa se abre. Os bolos apresentam diferentes formatos e cores por causa dos diferentes pontos de cocção segundo as preferências dos clientes conhecidas pelos boleiros.

Depositária de um saber que se tornou típico do estado[5], dona Regina (60 anos) é uma senhora simples e hospitaleira. Recebe a todos sorrindo timidamente, com lenço e avental muitas vezes manchado pelo carvão dos fornos e formas. Foi criada por sua avó. Desde pequena, aprendeu a arte do bem receber. A casa está sempre movimentada com a presença de muita gente, da família ou não, conhecida ou não. A avó, costureira, começou a fazer o bolo de arroz quando o marido faleceu. Moravam no bairro Jardim São Luiz da Ponte[6]. Mudaram-se para outro bairro na cidade, o Areal, onde cuidaram, durante algum tempo, dos filhos dos fazendeiros. Lá, fizeram outro forno, continuando a produção do bolo, mas logo retornaram para a “velha morada”.

O pai faleceu em 1962. Ficaram apenas dona Regina e a avó. Neste mesmo ano, começa a funcionar uma das maiores serrarias da cidade nos fundos da casa de dona Regina. Os serviços aumentaram: passaram a vender marmita (almoço e jantar), a lavar roupa e o bolo continuava.

A avó de D. Regina era descendente de paraguaios. Dona Regina a descreve como uma mulher guerreira, que mesmo com um pedacinho pequeno de terra, onde estava sua casa, conseguia produzir muito: “ela plantava mandioca, tinha muitas frutas. Era tudo manual, não tinha energia. A água, pegava do rio”.

A farinha muito fina de arroz para o preparo do bolo era feita no pilão. Nesse, macetava repetidas vezes os grãos dormidos na água, com a força do corpo. A farinha era misturada ao purê de mandioca que resultava de processo longo de preparo: colher, descascar, ralar, cozer. Adicionados os temperos, compunham a massa, pronta para ir ao forno.

A avó, que gostava de descascar mandioca, morreu com 89 anos, em março de 1994. Com a morte, inicia-se um novo ciclo na vida de D. Regina. Em 1986, teve o primeiro filho, mas não se casou. Uniu-se ao senhor Benjamin em 1994 e teve outro filho.

O Sr. Benjamin e um auxiliar preparam o purê de mandioca e a mistura da massa, tarefas pesadas para ela no momento. Contudo, é seu papel administrar todo o processo de produção. Às vezes conta com uma auxiliar para lavar as formas.

A massa, assada na madrugada, é misturada no dia anterior. Faz-se a farinha com o arroz “dormido” na água. O arroz é então triturado, não mais no pilão. A mandioca é ralada, cozida e transformada em purê. Todos os ingredientes são misturados e a massa obtida é batida em uma grande bacia até ficar homogênea. Depois é refrigerada, para aguardar o momento de ir ao forno.

Aproximadamente à 1h da manhã, os fornos são acesos por D. Regina, a madeira é doada pela serraria vizinha. Seus quintais são separados apenas por um portão. Às 3h da manhã, inicia-se o processo de cocção por D. Regina e o Sr. Benjamin, as formas são untadas, recebem a massa e seguem para o forno. Este processo continua aproximadamente até às 8h da manhã. São produzidos entre 400 a 600 bolos por dia, distribuídos pela cidade por uma equipe de 10 boleiros e comercializados diretamente no local de produção.

O trabalho não para. O funcionamento da produção caminha, segundo D. Regina, “todos os dias, desde muito cedo, igual cantiga de passarinho”. Os boleiros, que chegam por volta das cinco horas da manhã, ajudam a desenformar e selecionar os bolos de sua preferência.

Ao chegarem, estacionam as bicicletas e começam a auxiliar. Conversando, desenformam os bolos, virando[7] e organizando na forma os que já estão prontos. Depois selecionam os bolos, o que inclui lembrar os pedidos dos clientes: bolos mais “moreninhos”, mais “branquinhos”, ou ainda, os de forma de lata de sardinha (compridinhos e mais finos), e os de lata de atum (redondinhos e mais altos). Existem ainda os de formas compradas, muito caras segundo Dona Regina. As latinhas são, na maioria das vezes, presentes de pessoas. Estas práticas assemelham-se às experiências contadas por Mayol (2013, p.133), nas quais Robert, proprietário de um armazém tradicional do bairro, separa diariamente pães para suas clientes, este é o “ato de pôr a parte”, cimentando relações que conhecem e reconhecem os gostos, colocando o alimento como intermediário.

É interessante observar o chegar e o sair das pessoas que compram o bolo para levá-lo ou consumi-lo ali mesmo. Olham dona Regina com admiração, carinho e muitas vezes gratidão.

Os boleiros, em sua maioria, trabalham com ela há muitos anos, de 2 a 30 anos. Um deles comentou: “ah!…faz um bocado de dias”. Outros, ex-boleiros, continuam a tomar o café neste lugar. Um policial, fardado, aparentemente seguindo para o trabalho, passou para tomar café e dar bom dia, dizendo orgulhoso: “Trabalhei com D. Regina. Entregava bolo. Agora eu como o bolo e assim também minha família”. Outro homem, ex-boleiro, ajudando a desenformar os bolos, contava que trabalhou com D. Regina e sempre estava por ali. Enquanto isso, seu pai tomava café e observava, sentado no banquinho de madeira, espaço de prosa, localizado em frente aos fornos e bancadas de trabalho.

Este lugar de morar, viver e ganhar a sobrevivência, apresenta-se também como espaço de sociabilidade, onde o flanar é possível e ainda existe. Para Simmel (2006), a sociabilidade é algo vazio, não programado, que ocorre sem pré-arranjamentos, apenas pelo prazer de se relacionar. Pessoas entram e saem, conversam, comem bolo e tomam café, compartilham suas histórias, atualizam as notícias, muitas vezes utilizam códigos em suas conversas. Os produtores do bolo tornam-se confidentes, assim como, o Robert do armazém citado por Mayol (2013).

A produção do bolo de arroz da D. Regina não possui certificação. O reconhecimento, como comida e tradição é dado pelos consumidores. Muitos são os espaços que ofertam o bolo de arroz: lanchonetes e padarias com ar-condicionado, licenças afixadas em local visível. D. Regina, resiste ao longo de décadas na chamada “informalidade”. Mesmo diante de forças que estabelecem uma “verdade” (Foucault,2000), existem forças que traçam caminhos paralelos. O mainstream está posto, mas as margens continuam a existir.

V. Considerações finais

A experiência aqui compartilhada expressa a história de uma pessoa que replica o seu conhecimento culinário ao longo dos anos, baseada nas práticas da avó. Não vislumbra a formalização do trabalho, repleto de “regras complicadas”. Continua seus saberes e fazeres por existir uma demanda que busca estabelecer conexão com o tradicional que, mantidos, puderam ser incorporados pela produção industrializada. Muitas padarias e lanchonetes hoje produzem o bolo de arroz.

Reafirma-se: diante de tendências de padronização, homogeneização, apagamento, existem forças que reconhecem e valorizam aspectos construídos na simplicidade da vida cotidiana.

Bibliografia

Bordieu, P. Sociologia. São Paulo, SP: Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

Caldeira, R.; Fava, B.M. Comida: uma contadora de histórias. In: Anais do Seminário Nacional do Centro de Memória-UNICAMP. Campinas, SP, 7, 2016.

Cascudo, L.C. História da alimentação no Brasil. 4ª ed. São Paulo, SP: Global, 2011.

Certeau, M., Giard, L. In: Certeau, M.; Giard, L., Mayol, P. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. 12ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. Cap. 8, p. 189-199.

Contreras, J., Gracia, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz, 2011.

Coutinho, D.T. Goiás é bom demais: o marketing como potencializador da invenção de uma identidade. 2005. Dissertação (Mestrado). Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia-IGPA, Goiás, GO. Disponível em: <http://tede2.pucgoias.edu.br:8080/handle/tede/3558>

Embrapa Arroz e Feijão. Origem e história do feijoeiro comum e do arroz. Santo Antônio de Goiás, GO: Embrapa Arroz e Feijão, 2000.

Foucault, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975/1976). São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000.

Foucault, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2004.

Halbwachs, M. A memória coletiva. São Paulo, SP: Centauro, 2006.

Locher, J.L.: Yoels, W.C.; Maurer, D.; Ells, J.V. (2006). Comfort foods: an exploratory journey into the social and emotional significance of food. Food and Foodways: Explorations in the History and Culture of Human Nourishment, 13 (4), p. 273-297.

Lucena, C. T. Bixiga revisitado. São Paulo, SP: IBRASA, 2013.

Mauss, M. Sociologia e Antropologia. (vol. 2) São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.

Mayol, P. In: Certeau, M.; Giard, L.; Mayol, P. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. 12ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. Cap. 4, p. 115-122.

Montanari, M. Comida como cultura. 2ª ed. São Paulo, SP: Senac, 2013.

No Coraçao do Pantanal, Cidade tem mais Bicicleta que Habitantes. Globo Repórter. Rio de Janeiro, Globo, 4 de maio de 2012. Arquivo de Vídeo. Disponível em: <https://glo.bo/2VeZSxf>.

Palmieri Júnior, V. A gourmetização em uma sociedade desigual: notas sobre a diferenciação do consumo de alimentos industrializados no Brasil. 2017. Tese de Doutorado. Unicamp, Campinas, SP, 2017.

Pereira, J. A. Cultura do arroz no Brasil: subsídios para sua história. Teresina: Embrapa Meio-Norte, 2002.

Pollak, M. Memórias, silêncios e esquecimentos. Estudos Históricos, 2 (3), 1989, 3-15.

Poulain, J. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. 2ª ed. Florianópolis, SC: UFSC, 2013.

Rosenberg, M. A lógica da análise do levantamento de dados. São Paulo, SP: Cultrix-USP, 1976.

Simmel, G. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro, RJ:

Jorge Zahar, 2006.


  1. Regiane Caldeira.
  2. Produtora tradicional do bolo de arroz Mato-Grossense, um dos sujeitos da pesquisa de doutoramento em andamento de Regiane Caldeira, mencionada na introdução. Conversa realizada em 14 de novembro de 2018.
  3. Criado nos Estados Unidos, o conceito comfort food tem se disseminado por todo o mundo. No Brasil os restaurantes Miam Miam (Rio de Janeiro), Amici (São Paulo) e João e Maria (Curitiba), são alguns exemplos de empreendimentos de restauração que trabalham com este segmento.
  4. Pessoa que comercializa o bolo de arroz pela cidade, de bicicleta. A priori, pode-se imaginar que seria quem faz o bolo, mas esta é a denominação dada pela produtora e também por seus clientes.
  5. O bolo de arroz cuiabano foi instituído como prato típico do estado por meio da Lei 10.514 de 18 de janeiro de 2017. Apesar do gentílico “cuiabano” presente na lei, a disseminação em grande parte do estado é descrita no projeto de lei.
  6. Dos 45 bairros do município, este é um dos mais antigos, situado às margens do rio Paraguai e BR364, população de 3.749 habitantes (IBGE, 2010).
  7. O virar do bolo trata-se de um processo de tirar da forma, colocá-los em uma outra forma maior, fora das forminhas, com as partes brancas – a parte de baixo do bolo – virada para cima, a fim de dourar e finalizar o cozimento.


Deja un comentario