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Inquirindo as epistemologias do Sul

Estratégias de enfrentamento da desigualdade social a partir do associativismo no Brasil

Marilia Verissimo Veronese y Geovani Fachini Da Silva

Resumo

O texto deriva de ampla contextualização empírica e teórica oriunda de investigações anteriores, através dos projetos de pesquisa intitulados “Em busca das epistemologias do Sul: saberes sobre a vida coletiva entre grupos ‘subalternos’” (executado de 2010 a 2013), e “Inquirindo as epistemologias do Sul: saberes e práticas sociais entre catadores de material reciclável” (entre 2014 e 2016). O conceito de epistemologias do Sul refere-se ao conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão/opressão dos saberes populares que não cabem nos cânones da ciência oficial, ao longo dos últimos séculos, sob a égide do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado. Na primeira pesquisa citada, “ouvimos as vozes” de grupos quilombolas, indígenas e pescadores artesanais; na segunda, as dos catadores de materiais recicláveis urbanos. Houve um fio condutor nesses trabalhos, que pretendeu realizar o que Boaventura de Sousa Santos denomina de sociologia das ausências e emergências, bem como a compreensão do que significam as epistemologias do Sul e os grupos sociais que as produzem localmente. Todos os grupos trabalhados, a despeito de significativas diferenças, tinham algumas características em comum: eram trabalhadores associados enfrentando precariedades econômicas e vivenciavam diversidades culturais – étnico-raciais, de construções de gênero, religiosas, ético-estéticas. A investigação buscou identificar suas visões de mundo e formas de resistência à pobreza e à exclusão social. Utilizamos a metodologia Sociopoética que tem influências da pedagogia do oprimido, teatro do oprimido, pesquisa ação participante, filosofia da diferença e Análise Institucional, sendo compatível com a epistemologia do Sul e sua orientação ético-estética, por já conter em si uma experiência de tradução Norte-Sul. Trabalhou-se com a construção de um grupo pesquisador, com a participação das culturas de resistência, utilizaram-se diferentes técnicas artísticas para produção de dados, e encerrou-se a experiência com a experimentação de uma forma de saber definida pelo grupo, para sua produção e socialização. Identificou-se que, embora convivam com a vergonha e a humilhação, presentes no sofrimento ético-político, decorrente da discriminação e do preconceito que a sociedade ainda manifesta, as grupalidades que formam podem gerar experiências positivas e agregadoras – especialmente no coletivo construído por eles cotidianamente. Na proposta de combate às desigualdades, pensa-se em uma ética, e é estando junto daqueles que por suas condições sociais são colocados no lugar de “inferioridade”; em uma estética, que visa o caráter inventivo em valorização da vida; e de uma política, que concebe o sujeito em seus contextos históricos e culturais em busca da cidadania.

Plavras-chave

Epistemologias do Sul; Sociopoética; Associativismo.

Introdução

As experiências econômicas associativas, pautadas em princípios comunitários, autogestionários e solidários, especialmente entre atores sociais periféricos, avançaram significativamente nas últimas décadas, representando por vezes a persistência de antigas, por vezes a emergência de novas, sociabilidades em meio às dificuldades provocadas pelas pressões globais em contextos locais de desigualdade social acentuada. A pesquisa que embasa este texto trabalhou com sujeitos associados para o trabalho, cooperativados ou que vivem em comunidade, no âmbito de distintas experiências de economia solidária e vida coletiva. Estavam ligados a grupos quilombolas, indígenas, de pescadores artesanais e de catadores de material reciclável urbano. A ideia básica de ouvir essas “vozes do mundo” é concretizar a posição epistemológica de que são muitos os conhecimentos possíveis do mundo e que o conhecimento científico é apenas um entre eles (CES, 2008; Santos, 2012).

São pesquisas já concluídas que ensejam uma perspectiva mais ampla de investigar o associativismo entre atores sociais periféricos como possibilidade de enfrentamento ao problema das desigualdades socioeconômicas. Tais estudos foram conduzidos através de técnicas etnográficas como observação participante, entrevistas e diário de campo; e também com base na metodologia Sociopoética (Gauthier, 2001).

Marco teórico/marco conceitual

No que se refere à economia, em sua versão moderna e científica, teoriza e fomenta a acumulação material, sancionando a exploração e naturalizando a desigualdade. Num sentido dominante, portanto, a economia caracteriza-se como uma “gramática colonial” (Meneses, 2009, p. 232). Contudo, seu dinamismo provoca reações, mais ou menos desafiadoras, a exemplo da economia solidária, que questiona em suas práticas o individualismo utilitarista, a busca do lucro a qualquer custo e o descompromisso social (Gaiger e Laville, 2009). Suas expressões empíricas são as mais variadas, geralmente envolvendo trabalho associativo e autogestionado (organizado em cooperativas e associações) realizado por trabalhadores e trabalhadoras, mas também redes e sistemas de poupança e comércio justo e muitas outras formas organizativas, onde existe a proposta do primado da solidariedade, do atendimento da demanda social e ambiental e do igualitarismo. A realidade da economia solidária é bastante complexa, formada por empreendimentos econômicos de diversos segmentos e tipos, que apresentam graus muito variáveis de gestão coletiva, sendo os princípios norteadores praticados em alguma medida, conforme os grupos avançam nas práticas associativas, geralmente com bastante dificuldade.

O objetivo do empreendimento solidário é a obtenção da quantidade e da qualidade do produto ou serviço que venha a atender a demanda social, maximizar o bem-estar e não apenas maximizar o lucro. O excedente terá sua destinação decidida pelos trabalhadores em assembleia, pois a propriedade e concepção coletivas dos meios e da gestão do trabalho deverá ser característica do empreendimento solidário, seja ele cooperativo, associativo ou comunitário. Tais critérios, obviamente, não são encontrados de forma absoluta nos empreendimentos, existindo diversos graus de apropriação dos mesmos, bem como de práticas autogestionária (Veronese e Scholz, 2013).

Trabalhamos, durante a investigação, na perspectiva dos saberes e práticas cotidianamente produzidos e intercambiados como produção de subjetividade, sendo esta entendida enquanto fronteira entre o psicossocial e o cultural, a um tempo categoria analítica e realidade empírica. Nesse processo, a mediação semiótica desempenha um papel fundamental, pois além de constituir as funções psicológicas superiores, possibilita a socialização e a individuação do sujeito inserido em uma determinada cultura (Jovchelovitch; Priego-Hernández, 2013).

Norte e Sul – não geográficos, mas epistêmicos, metafóricos –, constituíram-se mutuamente através de processos históricos de colonialismo e dominação, e a natureza hierárquica das relações que estabelecem entre si permanece atual, a partir da noção de colonialidade. No Norte global, os saberes não alinhados à ciência e à técnica têm sido produzidos como não existentes e excluídos dos cânones da racionalidade moderna. A subalternização ou invisibilização de outros saberes e interpretações do mundo significa que esses não são considerados formas relevantes ou mesmo inteligíveis de ser e estar no mundo, e Boaventura Santos denominou-as, por isso, epistemologias do Sul (Meneses, 2008).

O Sul metafórico, portanto, remete ao sofrimento ético-político de ter sido invadido, saqueado, explorado e finalmente marginalizado pelos mecanismos sociais complexos do colonialismo e colonialidade do poder (Quijano, 2005). Ouvindo as vozes do Sul, podemos, através delas, ampliar a nossa sensibilidade de escuta qualificada e solidária das necessidades do mundo (Benzaquen, 2008). Ou ainda, como referem Santos e Nunes (2004), ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade.

Para Gaiger (2016), inspirado na visão de Karl Polanyi em seu artigo “Our obsolete Market mentality”, publicado em 1947, o problema da nossa civilização não é econômico, mas sim justamente o desafio de abandonar a dimensão econômica como fonte de resolução de todas as mazelas sociais. É preciso superar a obsoleta crença no determinismo econômico, que se apresenta através da supremacia da racionalidade de mercado capitalista. Urge valorizar outros sistemas de vida, outras formas de subjetivação, modos não mercantis e não utilitaristas de existência social, baseadas, sobretudo e primordialmente, em vínculos sociais vinculantes, tal como proposto nas diretrizes das práticas associativas na economia solidária (Gaiger, 2016); os grupos contatados se consideram parte dela, unanimemente.

Metodologia

Sobre referencial da sociopoética, que reforça o princípio do pesquisar com e não pesquisar sobre, achamos que é também apropriada à ideia das epistemologias do Sul. A pesquisa sociopoética apresentou-se como possibilidade a ser experimentada e avaliada, e de fato possui fundamentos teórico-epistemológicos e técnicos compatíveis com elementos requeridos à produção de conhecimento na perspectiva da pós-colonialidade, especialmente pelo protagonismo dos sujeitos da pesquisa. Por serem eles, ao compor o grupo-pesquisador, sujeitos dos rumos do processo. Desde a escolha do tema, até a validação dos resultados apresentados pelos pesquisadores-institucionais, que reúnem novamente o grupo que produziu os dados para discutirem/validarem as interpretações.

O método tem influências da pedagogia do oprimido (Freire, 1997), teatro do oprimido (Boal, 1988), pesquisa ação participante (Brandão, 1999; Fals-Borda, 1999), filosofia da diferença (Deleuze e Guattari, 1980; Guattari e Rolink, 1993) e Análise Institucional (Lourau, 1975; Lapassade, 1979), sendo compatível com a epistemologia do Sul e sua orientação ético-estética, por já conter em si uma experiência de tradução Norte-Sul.

Sua proposta metodológica baseia-se em cinco considerações iniciais:

A primeira delas afirma a construção de um grupo pesquisador, ou seja, não se trata do pesquisador e seus pesquisados, mas sim de um grupo, do qual o pesquisador institucional também faz parte e coletivamente todos são responsáveis pelos caminhos que a pesquisa encontrar á para se desenvolver. O método prevê, numa segunda consideração, a participação das culturas de resistência; em terceiro lugar, Gauthier propõe que no processo da pesquisa se dê atenção ao corpo inteiro daqueles que integram o grupo pesquisador; em um quarto ponto, Gauthier sugere que sejam usadas diferentes técnicas artísticas para produção de dados e finalmente, na quinta consideração, Gauthier pondera que o estudo desenvolvido conforme a sociopoética culmine na experimentação de uma forma de saber definida pelo grupo, para sua produção e socialização. No nosso caso, tivemos desde a produção de um conto que resgatasse o imaginário de uma comunidade indígena até um vídeo de 12 minutos que mostrasse o cotidiano de catadores de material recicláveis urbanos. O corpus de imagens, produzido junto a eles, poderá vir a compor também uma exposição fotográfica que possa registrar suas visões de mundo e seus referenciais ético-estéticos-políticos.

Análise e discussão de dados

Os principais achados apontam para a pluralidade das experiências, a não diretividade de suas cosmovisões e práticas laborais/comunitárias; e ainda o quanto a diversidade étnica, de gênero e geração impactam na construção de suas identidades e trajetórias, marcadas pela adversidade da pobreza e sofrimento ético-político, mas também pela superação e transformação de alguns aspectos importantes de suas condições de vida. O vínculo social e a reciprocidade (Gaiger, 2016) são fundamentos da vida que levam, sendo compreendidos como “família” muitas vezes, noção que os acompanha apesar das contradições que esta carrega em sua memória afetiva.

A família que exige, explora, agride física e emocionalmente é a mesma que acolhe, sustenta e é a base da inserção no mundo. Talvez por esta razão a família seja levada consigo na hora de atribuir sentido à cooperativa, à comunidade de trabalho, sendo que ali precisam tentar construir uma “família de irmãos” (palavras deles) na tentativa de evitar a dependência das lideranças da cooperativa.

O primeiro grupo selecionado para a realização da prática sociopoética foi a Comunidade Kaingang Por Fi, localizada na cidade de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. A comunidade é composta por cerca de quarenta famílias, que vivem hoje em terras cedidas pelo município, porém não legalizadas como domínio indígena. A cidade de São Leopoldo foi território indígena antes da colonização alemã. Como aconteceu em todo o país, as etnias indígenas locais foram sendo “espremidas” em territórios cada vez menores e mais precários (Severo, 2011).

A cidade é dividida pelos estratos sociais, encarados como faixas de demanda de mercado (Veras, 2010). Uma vez que não significam uma faixa privilegiada no mercado de consumo, os grupos indígenas urbanizados são relegados às áreas degradadas, que oferecem poucas possibilidades de inserção laboral qualificada ou comercialização de seu artesanato típico.

Através de contatos e entrevistas realizadas com a pajé, fomos informadas que a história da tribo estava se perdendo, e em função da falta de material didático na língua indígena, compreendemos a demanda de criar um registro histórico daquele povo, para as novas gerações. A tradição oral estava se perdendo, relatava a pajé, pois os jovens não queriam mais ouvir as histórias dos velhos: queriam ver novela, sair à noite e beber cerveja. Quando era criança, ficava a noite ao redor da fogueira, ouvindo as histórias dos velhos; mas a vida “dos brancos” nas cidades “dos brancos” estava acabando com essa prática, lamentava ela. Assim, Nimpré (que aparece na foto abaixo, em atividade na escola), narrou-nos a história da origem da comunidade, e a transformamos num conto, que foi impresso e 10 cópias foram entregues para que fosse utilizado na educação das crianças.

O Quilombo da família Silva, segunda comunidade visitada, constitui um fenômeno social dos mais interessantes. Incrustado no meio de um bairro de classe média alta na capital gaúcha, o terreno na área do metro quadrado mais caro da cidade abriga os negros, pobres e aparentados entre si há mais de 60 anos. Sofrem pressões terríveis, com a especulação imobiliária, o autoritarismo da polícia (criminalização dos pobres), os vizinhos hostis que não os querem ali. Pelo tamanho do terreno (4.445,71 metros quadrados) pode-se imaginar o quanto a iniciativa privada almeja adquirir a área. A comunidade possui 16 núcleos familiares, totalizando uma população de 68 pessoas. Possuem uma identidade étnica, uma ancestralidade comum, que impacta em suas formas de organização política e social, e também em elementos linguísticos e religiosos. O Quilombo Silva tem um grupo atuante, praticando uma militância ativa em movimentos urbanos, procurando articular-se com outras demandas da cidade.

O Quilombo da Praia do Rosa – SC, foi a terceira comunidade em foco. Esses sujeitos estão morando ali há mais de 150 anos, segundo relatos dos moradores (atualmente são 140 pessoas em 40 famílias, todas aparentadas entre si); foram reconhecidos legalmente, mas o processo de demarcação das terras ainda está em andamento, moroso e conflituoso. Estão organizando, há alguns anos, uma associação para organizar e fortalecer seus vínculos e potenciais, que começa a despertar para a necessidade da defesa de direitos e militância política (a associação foi criada em 2006 e a pesquisa lá realizada em 2012).

Trabalham em vários segmentos (produção de leite, pequena agricultura familiar, a maioria em pequenos negócios urbanos – comércio) buscam fortalecer o coletivo. Perdeu-se a prática da agricultura de maior porte e da pesca, querem retomar no coletivo; são católicos fervorosos, inclusive a benzedeira da comunidade, D. Adelaide, que realiza suas bênçãos e tratamentos de saúde mesclando os santos da Igreja Católica com crenças de origem popular, ervas, chás e benzeduras. Mas Cristo, para ela, é o fundamento e o sentido de toda a existência. A benzedeira é respeitada e procurada por negros e brancos, até mesmo por turistas (a Praia do Rosa é muito bonita e procurada para turismo, especialmente na temporada de verão).

A Associação de pescadores do Pântano do Sul (Florianópolis, sul da Ilha) – SC, foi o quarto grupo visitado. ÚÚÚÚ! É o grito – o apupo – emitido pelos pescadores do Pântano do Sul, ilha de Santa Catarina, para avisar que tem um cardume de tainhas se aproximando da praia.

É ele que avisa e reúne toda a comunidade na praia para o milenar ritual do cerco e o arrasto dos peixes. Essa comunidade, que tradicionalmente vive da pesca, no entorno do mar, apenas mais recentemente passa a dedicar-se também às atividades ligadas ao turismo, pois um problema ambiental e comercial ameaça seu modo de vida e sustento: a pesca industrial. As redes industriais arrastam e matam os peixes antes que cheguem onde os pescadores artesanais possam pescá-los; isso provoca vários problemas, práticos e vivenciais. A geração de pescadores mais nova está beirando os 40 anos; os jovens não querem mais ser pescadores e a vida precariza-se, na medida em que o peixe escasseia.

De modo geral, vivem em contato com a modernidade, alguns com acesso à internet e outras facilidades da vida moderna, mas há uma parcela que resiste. As benzeduras são parte da cultura e necessárias na hora da pesca. Na comunidade do Saquinho, próxima a Pântano do Sul – SC, mas de mais difícil acesso, um informante nos diz: “Não queremos luz elétrica aqui, porque a gente nunca sabe o que vem atrás do poste…”.

As Comunidades indígenas e ribeirinhas na Amazônia, participantes do projeto da ONG italiana ISCOS, entraram no horizonte empírico do projeto pois um dos membros da equipe de pesquisa atuava como técnico, em 2012, em um projeto junto aos indígenas e ribeirinhos do Alto Solimões, na Amazônia. O projeto, com duração de três anos, tinha o objetivo geral de melhorar as condições de saúde e de renda de vinte comunidades ribeirinhas do município de Benjamin Constant – AM, na Região do Alto Solimões. Tivemos a oportunidade de visitar 4 dessas comunidades e acompanhar os modos de vida e as trocas de aprendizados que se dão entre os moradores locais e os técnicos do projeto. A metodologia produtor-a-produtor previa esse aprender horizontal, visando a diversificação da produção, a potabilização da água, a produção de sementes crioulas e a independência das comunidades da semente estéril que o governo fornece, gerando dependência da Monsanto e outras transnacionais do agronegócio. Saberes tradicionais vão se articulando com saberes de agricultura sustentável e o resultado é um interessante empoderamento das comunidades; por serem comunidades tradicionais, há o problema de uma intensa desigualdade de gênero, típica das culturas tradicionais, que fica como um desafio a mais para todos.

Em 2014, começamos o trabalho junto aos catadores de materiais recicláveis. Visitas exploratórias foram feitas em várias cooperativas; aprofundamos a prática da sociopoética em duas. São elas a COOPCAMATE (Canoas, RS) e a COOTRE (Esteio, RS). A primeira teve seu início no ano de 1986, quando cinco pessoas moradoras do bairro Mathias Velho, em Canoas – RS, iniciaram a organização de um grupo de coleta de resíduos sólidos recicláveis no bairro. A segunda, primeiramente Associação de Recicladores de Esteio (ARCA) e depois cooperativa COOTRE, foi fundada no ano de 2003. Ou seja, são empreendimentos longevos e que fazem parte da base da cadeia produtiva da reciclagem no RS há mais de uma década.

O trabalho realizado por esses sujeitos, de catar, separar, transportar, organizar, acondicionar (em casos mais raros, beneficiar) os resíduos recicláveis, recoloca o material numa condição de obter valor de mercado, de gerar renda. Desse modo, o catador opera uma transformação que, além de ajudar em seu sustento e renda, tem valor simbólico: ele mesmo se recicla nesse processo, ou seja, adquire um papel social com sentido e se produz como sujeito.

Embora convivam com a vergonha e a humilhação, presentes no sofrimento ético-político (SAWAIA, 2013), decorrentes da discriminação e do preconceito que a sociedade ainda manifesta, ser catador pode gerar experiências positivas e agregadoras – especialmente no coletivo construído por eles cotidianamente. Esse registro positivo passa também por ser reconhecido/a como trabalhador honesto, distinto da atividade de mendigos e bandidos, adquirindo o indivíduo a capacidade de se organizar e mobilizar coletivamente na luta por melhores condições de trabalho e vida. É nesse ponto que o grupo, o coletivo, adquire uma significativa importância na vida dos catadores.

Nos casos em questão, sentidos ligados à família e à casa emergiram fortemente nos grupos pesquisadores. A cooperativa como segunda casa e como meio de, ao gerar renda, proporcionar o sonho de uma casa própria – que muitos ainda não têm –, assume lugar central na vida dos sujeitos, a ponto de constituir também a “segunda família”.

Nesse ponto, citamos Sader (1995, p. 55) para (res)significar a noção de coletivo protetor: “[…] uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas”.

Conclusões

Pesquisar “com” e não “sobre” possibilita o enfrentamento dos desperdícios de experiências pelo paradigma engendrado na modernidade ocidental, afirmando a potência da diversidade humana com sua imensa pluralidade cultural, tão intensa e rica como a biodiversidade do planeta que abriga nossa espécie. Tivemos contatos com grupos como os quilombolas, indígenas, pescadores artesanais e catadores urbanos, e percebemos que nesses casos, a preservação dos recursos naturais depende da diversidade cultural, tanto quanto esta última depende do meio ambiente, do território e da paisagem para continuar existindo; portanto, associamos biodiversidade e pluralidade cultural como indissociáveis. Tais reflexões serão desenvolvidas em trabalhos posteriores, estando ainda em fase de elaboração teórica, mas foram despertadas, sem dúvida, pela vivência empírica deste projeto de pesquisa.

O método da sociopoética coloca o sujeito pesquisador em contato com os afetos produzidos nos encontros que fomenta, realizando produções coletivas. Tratam-se de dimensões singulares, que produzem diferença como nos propõe Gauthier, que tiram o sujeito do âmbito da repetição (de pensamentos e ações) e o colocam diante do questionamento e da reflexão. Continuam sendo, para fins de pesquisa acadêmica, uma forma de produção do conhecimento, mas com sua epistemologia própria, propiciando debates e análises sobre emergências contemporâneas, vindas das “vozes do mundo” – daqueles que mais sofrem e mais urgentemente necessitam das transformações sociais.

O protagonismo econômico dos pobres (Gaiger, 2009) precisa ser ativado pois demonstra ser um caminho que transforma não somente sua vida econômica, mas comunitária e pessoal. Ao inserir-se em projetos de captação de recursos, pesquisa e extensão etc., os grupos aumentam seu cabedal cognitivo e seu repertório de ação, o que por si só já demonstra esse potencial de minimizar as desigualdades, inclusive no interior do próprio grupo e em suas comunidades de entorno.

Verificamos que as próprias relações familiares são modificadas, pois leva-se o questionamento iniciado nas práticas laborais associativas para o interior dos conflitos afetivo-familiares, impactando nos seus desdobramentos.

Muitas foram as possibilidades de análise construídas nesse percurso. Apareceram diversas formas de subjetividades, interagindo com significativo conflito, mas também com potência para combater a desigualdade, a opressão e o esmagamento do sujeito, perigo sempre iminente para os periféricos do mundo; pôde-se, também, produzir subjetivação no entorno dos territórios existenciais por nós transitados, pela forma de intervenção da sociopoética.

Acreditamos e procuramos desenvolver o pluralismo metodológico, e a articulação teórico-empírica produzida persegue justamente referências que possam potencializar o protagonismo dos sujeitos em foco, tornando-os ativos no processo e fazendo da própria pesquisa um ato (também ele associativo) de combate às múltiplas desigualdades, materiais e imateriais.

Na proposta de combate às desigualdades, pensa-se em uma ética, e é estando junto daqueles que por suas condições sociais são colocados no lugar de “inferioridade”; em uma estética, que visa o caráter inventivo em valorização da vida; e de uma política, que concebe o sujeito em seus contextos históricos e culturais em busca da cidadania.

Bibliografía

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