Luiz Augusto Estrella Faria
“I am leaving you tonight with great regret. There is one thing, however, that I shall remember, and that is that it was two people who invented the New Deal—the President of Brazil and the President of the United States. So I am going to ask you to rise with me and drink to the health of my good friend President Vargas and to the great Republic of Brazil, our sister Nation”
Franklin D. Roosevelt, Remarks at a Banquet Given by President Getúlio Vargas of Brazil at Rio de Janeiro. November 27, 1936.
1. Introdução
Os brasileiros têm um sentimento profundamente arraigado que percebe seu país como uma construção sempre inacabada. Invariavelmente avaliam qualquer vicissitude negativa na vida nacional a partir de comparações em que há sempre a mesma conclusão: se fossem em outro país, seria diferente. A beleza deslumbrante e a natureza luxuriante de sua terra, costumam contrastar com uma percepção negativa de si mesmos. Afinal, como explicar que num recanto tão excepcionalmente rico do mundo tenha se formado uma sociedade marcada por fealdades. Pobreza, fome, exploração, racismo, violência e outras tantas iniquidades fizeram do Brasil um lugar onde a busca da felicidade, um valor fundamental da Era Moderna, esteve sempre interditado para uma grande maioria do seu povo.
Formada desde a colonização portuguesa sob a necessidade de produzir riqueza em tempo mínimo e quantidade máxima, a sociedade brasileira é, até os dias atuais, marcada pelo signo da expropriação e da escravidão. Mais ainda, é um caso raro de transformismo no sentido de Gramsci, que se repete e perdura há séculos. Todos os episódios históricos de turbulência e bifurcação (Arrighi, 1994) se resolveram sem rupturas significativas. Numa variante do conceito de Aufhebung em Hegel, o novo se materializa em pequenas transformações do velho, que recorrentemente permanece e se impõe de forma dominante.
Na segunda década do século XXI o país viveu mais um desses momentos turbulentos em que o novo se enfrenta com a resistência titânica do velho. Por 13 anos um governo popular instaurou novas políticas de inclusão social como o aumento real dos salários puxado pela valorização do salário mínimo, a extensão de benefícios previdenciários e programas de transferência de renda, alcançando uma redução da pobreza e da desigualdade e a extinção da fome. Também os planos da política econômica e das relações exteriores passaram por significativa mudança na tentativa de instituir uma nova modalidade de adesão do país ao regime internacional. Entretanto, uma reação violenta das classes dominantes associadas ao segmento bem remunerado da burocracia pública – em especial no Poder Judiciário e Ministério Público, mas também e de forma decisiva entre militares – e articulada com seus representantes com posição majoritária no Parlamento e contando com o apoio nas classes médias, conseguiu depor por meio de um golpe branco a Presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Ao assumir o poder o vice-presidente Temer, de imediato, realiza uma inflexão radical na orientação política do governo do qual ele fizera parte por seis anos. Os gastos sociais são reduzidos, a política econômica é modificada de forma radical assim como as relações exteriores e a defesa. Materializa-se um neoliberalismo à outrance na economia, um servilismo americanófilo na diplomacia e uma tentativa de impor a prioridade de segurança interna à estratégia de defesa. As eleições de 2018 confirmaram essa direção com a vitória de Jair Bolsonaro. Se a forma de governo é outra, o autoritarismo de um pastiche neofascista, a orientação programática é a mesma, a destruição das instituições que organizavam o pacto democrático acordado na Constituição de 1988, o qual, pela primeira vez na história do país, adjetivara o desenvolvimento econômico com inclusão e bem-estar social.
Um projeto nacional de desenvolvimento é sempre, em seu conteúdo, a expressão de um determinado arranjo de interesses contraditórios das diferentes forças sociais atuantes na cena política interna de um país. Este arranjo é condicionado pelo ambiente internacional em relação ao qual uma determinada forma de adesão também faz parte e se materializa em um pacto que de fine os termos em que se estabiliza um regime de acumulação e seu modo de regulação (Boyer e Saillard, 1995). Vou analisar aqui a trajetória dos conflitos de interesse e sua forma de resolução através de vários movimentos de ruptura e repactuação no Brasil desde o começo do século XXI e como resultaram em diferentes diretrizes de sua política externa conformes aos interesses predominantes nos acordos vigentes em cada conjuntura. Para tanto, será necessária uma incursão na história imediatamente anterior como forma de desvendar as origens dos processos contemporâneos. Como irei mostrar, as forças sociais e os interesses que se formaram no período desenvolvimentista vão permanecer no epicentro da história brasileira até o presente.
2. Uma inserção externa entre dependente e inconformada
O episódio referido na epígrafe deste texto marca um momento importante de reafirmação de uma tradição diplomática brasileira, tão antiga quanto a República, de alinhamento aos Estados Unidos da América. A visita de Franklin Roosevelt em 1936[1] foi precursora de um compromisso militar de combater na Europa contra o nazifascismo ao lado dos Aliados e de um acordo de investimento decisivo para a criação da indústria siderúrgica nacional. Nos 15 anos seguintes, o Brasil pode contar com investimento, financiamento e outras formas de apoio a seu processo de industrialização por parte da nação irmã do norte. E também pode contar com sua proteção para as necessidades de defesa.
Na sequência, o segundo governo de Getúlio Vargas e a presidência de Juscelino Kubitschek puseram em xeque esse alinhamento. Se, num primeiro momento, o crescimento econômico brasileiro pode ser assemelhado a uma forma de “desenvolvimento a convite”, como foi também o caso de países do Leste Asiático, como a Coréia do Sul, algumas iniciativas adotadas naquela década resultaram na configuração de um poderoso setor produtivo estatal nas áreas de energia, comunicações, matérias-primas e infraestrutura e, também, na expansão do crédito controlado pelo Estado e na construção de Brasília, e foram motivo de reação contrária da nação norte-americana. Na visão dos EUA, o nacionalismo econômico que fora aceitável no sudeste asiático, era absolutamente intolerável no que eles chamam “hemisfério ocidental”, especialmente na parcela depreciativamente apelidada “pátio dos fundos”.
O período compreendido entre 31 de janeiro de 1951 e 1 de abril de 1964 inaugurou uma nova fase nas políticas do Estado brasileiro voltadas à promoção do desenvolvimento socioeconômico. Foi nesse momento que se evidenciou, para uma fração então majoritária da burocracia estatal e da representação política, assim como para um emergente movimento da classe trabalhadora, o conflito entre o projeto de desenvolvimento em curso com os interesses dos EUA. Entre a Carta Testamento de Getúlio Vargas de 24 de agosto de 1954 e o discurso de Jango Goulart na Central do Brasil em 15 de março de 1964, tendo em seu interregno um peremptório não de Juscelino Kubitschek à recomendação do FMI de paralisação da construção de Brasília em nome do equilíbrio fiscal, uma sequência de episódios confrontou a doutrina americana e sua recomendação do que era bom para o Brasil. Para as forças sociais e atores políticos engajados no projeto desenvolvimentista (Fonseca, 2015), foi-se revelando de forma cada vez mais clara a necessidade de afirmação de uma política externa que pudesse dar suporte ao desenvolvimento econômico nacional. Santiago Dantas deu-lhe conteúdo, traduzido no adjetivo independente e, ele mesmo, tentou harmonizá-la com a política econômica no Ministério da Fazenda de Jango Goulart.
A instituição de uma doutrina de segurança nacional encontrou terreno fértil na tradicional politização das Forças Armadas e acabou por ser inspiradora do golpe de 1964 e da implantação de uma ditadura longeva em 21 anos. Diferentemente das congêneres impostas na maior parte da América Latina entre os anos 1960 e o começo dos anos 1980, a ditadura brasileira foi a única a preservar o desenvolvimentismo no seu núcleo comum principal, dando continuidade à industrialização, ao intervencionismo dirigista estatal e a um projeto nacional desenhado intencionalmente.
A sedição militar e o golpe tinham o objetivo de impedir as propostas que visavam dar um conteúdo popular ao desenvolvimento econômico, através da reforma agrária[2] e da redistribuição de renda. Em seu discurso aos trabalhadores no comício organizado pelos sindicatos no Rio de Janeiro, na Estação Férrea Central do Brasil em 15 de março de 1964, Jango Goulart apresentou um conjunto de propostas que encaminhara ao Congresso Nacional, as Reformas de Base, que tinham um caráter democratizante, inclusivo e redistributivo em diversos aspectos da vida nacional, da educação à organização urbana, à estrutura tributária e à propriedade da terra. O veto das classes proprietárias, secundadas pela classe média, à distribuição de renda e propriedade se manifestou então e mais uma vez, interditando uma maior redução da desigualdade, através do apoio e participação na conspiração que depôs o Presidente da República.
A gestão dirigida pelos militares inicialmente reconciliou-se com os EUA, fazendo oscilar o pêndulo da política externa para o alinhamento anticomunista (Faria, 2007) e assumindo, num primeiro momento, uma política econômica ortodoxa, de ajuste fiscal. Se a diplomacia adotou uma postura seguidora das posições norte-americanas, a política de defesa foi na mesma direção, sendo redefinida pela prioridade da segurança interna. Em 1969 a ditadura se consolida, radicalizando seu autoritarismo. Na sequência, uma retórica de “Brasil potência” foi sendo materializada em decisões de governo que, para surpresa de muitos, iam na direção da estratégia de desenvolvimento nacional de orientação “desenvolvimentista”, o que implicou divergências e contradições que se acumularam na relação com os EUA. A busca de autossuficiência industrial, tecnológica, energética e de produção da infraestrutura feria interesses da nação do norte, especialmente no que tocava a temas sensíveis como energia nuclear ou comunicações. A bússola do projeto nacional mais uma vez voltou a apontar para a direção do desenvolvimentismo nacionalista.
Diferente do nacionalismo popular de Getúlio ou Jango, um outro nacionalismo, de direita, foi adotado e veio a ter como consequência novo balançar do pêndulo da política externa na direção da independência, rebatizada de “pragmatismo responsável” na formulação do então chanceler Azeredo da Silveira. Se esse movimento não foi inédito, o foi o que aconteceu no âmbito da política de defesa. Sob a continuidade da doutrina de segurança nacional e seu foco no inimigo interno, bem como na rivalidade com a Argentina, uma nova estratégia para a produção das capacidades militares e de meios de defesa se consolidou, a busca da autossuficiência.
A criação do programa nuclear brasileiro foi seguida da ruptura do acordo militar com os EUA e de um projeto de nacionalização do equipamento das forças armadas que alcançou objetivos bastante ousados. Não apenas a produção de armas leves, mas blindados, aeronaves e embarcações de combate entraram para a pauta diversificada da indústria nacional. Um primeiro passo na direção de uma nova política de defesa começava a ser trilhado. Da mesma forma, a continuidade do desenvolvimento industrial exigiu a busca de, num primeiro momento novos fornecedores e, logo em seguida, autossuficiência na produção de energia. Essas necessidades cobraram a aproximação com os países árabes e com a África, em tudo contrária à posição dos EUA nessas regiões. Por paradoxal que possa parecer, a ditadura militar anticomunista do Brasil não apenas reconheceu de imediato os governos de Angola, Moçambique e da então Guiné e Cabo Verde, como foi importante para romper o bloqueio norte-americano contra as jovens nações. Na mesma direção foram estabelecidos fortes laços com Iraque, Líbia e Síria, bem como mantidas as boas relações com o Irã depois da revolução.
Os militares deram sequência a um projeto de desenvolvimento que tinha na burguesia industrial seu maior beneficiário. Entretanto, a evolução e consequente amadurecimento dessa nova economia urbano-industrial veio oportunizar o empoderamento de uma fração financeira dentro do bloco no poder, que já contava com a burguesia rural, herdeira das oligarquias da República Velha, como força subalterna. Essa fração financeira da burguesia brasileira, que nascera da relação com a produção rural e o desenvolvimento do comércio, logo ganha autonomia e poder maior em razão da componente inflacionária permanente do sistema econômico nacional e de sua frágil instituição monetária. O sistema financeiro não só é capaz de fugir da depreciação do capital pela variação dos preços como de auferir renda além da taxa de juros por administrar os mecanismos de indexação. Essa habilidade abre espaço à capacidade de vender proteção anti-inflacionária aos demais segmentos da sociedade, as outras frações burguesas e até a classe média na forma de depósitos à vista remunerados, uma moeda que paga juros (Faria, 1991). A função de capital financeiro no sentido clássico de Hilferding, de fusão dos capitais bancário e industrial, no caso brasileiro foi assumida pelo Estado através da ação dos grandes bancos públicos, da criação de fundos fiscais, agências e outros instrumentos de financiamento do investimento em associação com um poderoso setor produtivo estatal, núcleo duro do setor de bens de produção da economia.
O crescimento econômico, como necessariamente ocorre no capitalismo, produz sua negação, na forma da ampliação do regime de assalariamento e, consequentemente, do aumento em número e força da classe trabalhadora e de sua fração mais importante, o operariado industrial. E foi essa fração dos trabalhadores que, liderada pelos metalúrgicos empregados no núcleo dinâmico da estrutura produtiva recém construída, a indústria automobilística, veio a constituir a espinha dorsal da oposição à ditadura reivindicando redistribuição da renda e inclusão social. Muitas de suas lideranças de então permaneceram à frente do movimento popular brasileiro até o presente, a exemplo de Lula da Silva.
Em 1981 a economia brasileira entrou em recessão, fenômeno que marcou o fim do longo ciclo desenvolvimentista iniciado em 1930. As razões da crise que se instaurou então foram múltiplas mas tiveram por causa imediata o avolumar-se de dois problemas crônicos de todo o período e que ultrapassaram os limites do que podia ser superado com os instrumentos de políticas públicas então disponíveis: os recorrentes déficits no balanço de pagamentos que produziam um crescimento da dívida externa cada vez mais difícil de manejar e a crônica insuficiência dos mecanismos de financiamento dos investimentos necessários ao crescimento econômico. Daí decorreram a crise cambial e o longo e tortuoso processo de renegociação, repactuação e refinanciamento da dívida externa e, também, o crescimento dos déficits e da dívida pública e seu corolário, a inflação elevada.
Um movimento mais profundo, entretanto, foi na realidade o fenômeno dominante, a concentração da renda. Tida pelos ideólogos do regime militar como funcional ao crescimento por aumentar a poupança, foi a causa central da crise na medida em que gerava uma defasagem da demanda efetiva em relação ao ritmo da acumulação de capital. Voltada para o mercado interno, a produção brasileira encontrara consumidores através do acelerado processo de migração rural-urbana que se efetivou ao longo do período e que se esgotou em 1980[3]. Como será visto mais adiante, o neoliberalismo que dominou a condução do Estado a partir de 1990 anunciou uma impossível alternativa de crescimento puxado pelas exportações, imaginando emular a experiência do sudeste asiático. Seu raciocínio deixou de considerar uma variável chave, o tamanho.
Se estruturalmente a insuficiência de demanda efetiva e a queda da taxa de lucro causaram a estagnação que perdurou até 2003, foram a inflação, a dívida externa e a crise fiscal, sintomas do desequilíbrio externo e das deformações do sistema financeiro que precipitaram o desajuste conjuntural da economia (Faria, 1996). Num primeiro momento, a reação à crise reforçou a convergência iniciada na década anterior entre as políticas econômica e externa. A busca de um ajuste macroeconômico tinha em vista manter as bases do desenvolvimentismo. Para tanto, a continuidade da política externa independente vinha a ser decisiva tendo em vista a necessidade de arrancar concessões aos credores externos coordenados pelos EUA e também para auxiliar na imperiosidade de instituir novas parcerias econômicas internacionais no mundo árabe, na África e na Ásia.
3. A identidade perdida e o interesse nacional extraviado
Com o fim da ditadura em 1985, a política de segurança nacional tornou-se anacrônica, já que o “inimigo comunista” recuperou seus direitos políticos e foi incorporado à vida legal das organizações partidárias.[4] Sua revisão foi objeto de um longo período de discussões iniciado no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, à época com parcos resultados, sendo o mais significativo a proposta de subordinação das Forças Armadas ao poder civil com a criação do Ministério da Defesa, o que só veio a ocorrer 11 anos depois, em 1999.
Havia a expectativa, que se mostrou frustrada, de que o controle da inflação e uma combinação de aumento das exportações e redução dos pagamentos da dívida seriam suficientes para a retomada do crescimento econômico. O fracasso do governo Sarney derrubou de vez a coalisão desenvolvimentista hegemonizada pela burguesia industrial e apoiada pela burocracia estatal e demais parcelas da classe média. Um rearranjo no bloco no poder abriu lugar a uma nova hegemonia, a do segmento internacionalizado da burguesia e sua fração dominante, a financeira com seu modo de apropriação do excedente, o rentismo. De Collor a FHC, entre 1990 e 2002 uma nova estratégia econômica foi implantada a partir de três movimentos principais. O primeiro, ainda no final da gestão Sarney em 1989, foi a adesão ao Plano Brady, a proposta de refinanciamento da dívida externa formulada pelo Tesouro dos EUA. O segundo foi a decisão unilateral de Collor de desmontar todo o sistema de proteção à economia nacional baseado em barreiras tarifárias e não-tarifárias, subsídios, financiamento público e incentivos fiscais. E o terceiro se efetivou com a abertura do mercado financeiro e da conta de capitais. Além disso, outros pontos importantes da agenda neoliberal foram adotados, como privatizações, desregulação e, principalmente, um processo de reforma constitucional por sucessivas emendas com vistas a extinguir ou reduzir direitos, muitos deles recém-criados em 1988 – e diversos ainda não postos em prática por falta de regulamentação –, com vistas a aumentar o grau de exploração do trabalho e ampliar o horizonte de lucratividade do capital. O pêndulo da política externa moveu-se para a esfera de influência dos EUA, enquanto a política de defesa foi relegada à desimportância sob o sonho da globalização, do desaparecimento da União Soviética e do fim dos Estados nacionais. O projeto de desenvolvimento perdera completamente sua bússola e a coalizão que o sustentara se desfez com a deserção da burguesia industrial.
Como mostra a história, o neoliberalismo brasileiro foi um fracasso. Se entre 1981 e 1989, nos estertores finais do colapso do projeto desenvolvimentista, a taxa média de crescimento do PIB foi de 2,3% ao ano, entre 1990 e 2002, primeiro período do neoliberalismo no governo brasileiro, a taxa média de crescimento econômico caiu para 1,9% ao ano. O resultado pífio não foi surpresa, na medida em que a crença neoliberal prevê o crescimento como resultado necessário e automático da baixa inflação e da austeridade fiscal. Entretanto, para manter a inflação baixa, a moeda nacional foi valorizada, tirando competitividade da indústria, já desprotegida pela iniciativa unilateral de abertura comercial. O instrumento usado para assegurar a valorização da moeda nacional foi a atração de capitais externos via uma taxa de juros real elevadíssima. A alta taxa de juros, por sua vez, fez crescer a dívida pública, trazendo dificuldades para o ajuste fiscal e obrigando o governo a cortar os demais gastos, mormente investimentos, que caíram a praticamente zero. Câmbio valorizado, juros elevados, gasto público reduzido e a produção nacional sem competitividade pela valorização do real e pela ausência de mecanismos da proteção foram as causas do baixo crescimento.
Essa opção política parece contraditória com o fato de ter a burguesia industrial se constituído na fração hegemônica das classes dominantes desde os anos 1940, organizada na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, FIESP. O que explica esse fenômeno é a forma precoce de financeirização brasileira (Faria, 1991). A inflação permanente tornara o circuito de valorização do capital dependente da intermediação financeira pois obrigava a forma dinheiro do valor a se metamorfosear mais uma vez, de moeda a depósitos bancários remunerados. Esse tipo de dinheiro bancário era protegido da desvalorização inflacionária porque pagava juros reais positivos. A inflação só atingia a moeda em poder do público, isto é, fundamentalmente a remuneração do trabalho, os salários pagos em notas de cruzeiro, a moeda da época. A burguesia e a classe média podiam converter instantaneamente seus ganhos monetários em dinheiro bancário, pois até depósitos a vista pagavam juros. Não por outra razão, as primeiras manifestações populares contra a ditadura, ainda nos anos 1970, se organizaram no Movimento Contra a Carestia, isto é, contra a desvalorização inflacionária da renda das classes populares que à época não tinham acesso ao sistema financeiro, não eram bancarizadas.
Uma nova forma de financeirização foi inaugurada quando as classes dominantes nacionais em associação com o imperialismo norte-americano forçaram o governo a abraçar o programa do neoliberalismo. Nesse momento já se havia operado a mudança no bloco no poder em que a fração financeira subordinara as demais camadas da burguesia e dera um passo além se internacionalizando para auferir rendas de capital fictício em operações cambiais, já que a inflação tornara-se disfuncional e precisava ser debelada. E da mesma forma como ocorreu nos espaços do capitalismo maduro, no centro da ordem internacional, o próprio capital produtivo amplia numa segunda etapa seu processo de financeirização, com a continuidade e aprofundamento da prevalência dos ganhos extraoperacionais sobre as vendas de produtos e serviços.
O resultado mais deletério do desastre econômico neoliberal foi a desindustrialização do Brasil, medida na redução da participação da indústria de transformação no PIB, de 21,6% em 1985 para 14,5% em 2002, último ano do mandato de FHC, e 12,4% em 2016, um percentual pouco superior ao de 1947 (11,9%), quando a industrialização dava seus primeiros passos. Mais ainda, as cadeias de valor se desfizeram em inúmeros ramos substituindo fornecedores locais por compras no exterior, numa inversão do processo de industrialização por substituição de importações. Muitas empresas estratégicas para a dinâmica econômica foram à falência ou passaram à propriedade estrangeira. O retrocesso industrial teve outro resultado deletério, ao reforçar a financeirização da economia, pois uma parcela significativa da burguesia industrial se desfez de suas empresas e se tornou rentista. E aqueles que não o fizeram, numa estratégia defensiva, reduziram seus níveis de produção ou tornam-se meros revendedores de produtos importados e direcionaram sua busca de lucros para atividades extraoperacionais no mercado financeiro, ampliando a grau de internacionalização desta classe.
4. Uma vontade segura o leme
Entre 2003 e 2014, na esteira de uma “onda rosa” que atravessou a América do Sul e a América Central e que foi iniciada com a presidência de Hugo Chaves na Venezuela em 1999, o Brasil experimentou uma profunda mudança política com uma sequência de quatro mandatos presidenciais vencidos pelo Partido dos Trabalhadores. Desde o primeiro momento, embora a manutenção do arranjo institucional da política macroeconômica – preservando o câmbio valorizado para segurar a inflação, os juros elevados e as metas fiscais bastante rígidas – três esferas das políticas públicas foram transformadas. Se a política econômica permaneceu nas mãos de representantes da “porta giratória” pela qual altos funcionários transitam em ida e volta do sistema financeiro privado para o Banco Central e o Ministério da Fazenda, o governo de coalisão de Lula tratou de manter sob controle do PT e dos partidos de esquerda os ministérios da área da seguridade social (previdência, saúde e assistência), da educação, da infraestrutura, das relações exteriores e do planejamento, além daqueles com interlocução com os movimentos sociais (trabalho, desenvolvimento agrário, meio-ambiente, casa civil, desenvolvimento social, etc.). Esses ministérios e mais o da defesa formaram o núcleo estruturante das três políticas transformadoras então iniciadas: a redistribuição de renda via aumento do salário mínimo e transferências como as do Bolsa Família; a retomada da política externa independente, agora sob o título de “altiva e ativa” (Amorim, 2015) e a formulação de uma estratégia de defesa concatenada com a retomada do desenvolvimentismo em novas bases e articulada com o processo de integração da América do Sul, a UNASUL.
A inflexão política posta em marcha por Lula estava voltada para um projeto de desenvolvimento baseado num mercado interno de massa em crescimento em razão de um processo de aumento de renda mais acelerado para as camadas inferiores da pirâmide distributiva. Era uma mudança por dentro do antigo modelo do fordismo tropical completado durante a ditadura militar (Faria, 1996). À semelhança do fordismo vigente nos países desenvolvidos, o modelo brasileiro também crescia para um mercado interno de massa, no caso formado por uma classe média ascendente composta de profissionais universitários e quadros intermediários das administrações pública e privada, uma nascente aristocracia operária e uma população urbana em expansão em razão da migração do campo. Essa massa de consumidores compensava, sob a perspectiva da demanda, um mercado interno muito menor do que o potencial de um quadro demográfico com escassas comparações no mundo[5], mas num país onde a proporção de muito pobres permanecia imensa e a desigualdade crescia. Era um mercado “de massa mas não da massa”, na feliz expressão de Lipietz (1988).
A experiência do que se poderia chamar um “desenvolvimentismo lulista” produziu ganhos de renda significativos nas duas pontas da pirâmide distributiva, aquela dos muito ricos, beneficiários da continuidade do arranjo macroeconômico neoliberal brasileiro (juros elevados e real valorizado), garantidor de gorda remuneração aos rentistas, e a ponta de baixo, beneficiária das políticas de redistribuição e de ampliação dos serviços públicos (educação, saúde, cobertura previdenciária, transferências assistenciais, elevação do salário mínimo, etc.) e da ampliação do mercado interno e, por consequência, do emprego. Ficou relegada desses benefícios a classe média que, a partir de 2013, vai assumir o protagonismo da luta de massa contra o governo de Dilma Rousseff.
Dois aspectos do velho desenvolvimentismo foram revividos, o apoio estatal ao investimento industrial e na agropecuária e a programação de um conjunto de investimentos estatais em infraestrutura, o chamado PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, com ações nas áreas de transporte, comunicação, energia, habitação, urbanismo, etc. Algumas diretrizes de política industrial se estabeleceram, retomando definições pregressas como a prioridade ao conteúdo nacional (ou regional, em razão dos compromissos com o MERCOSUL) e a eleição de ramos prioritários da estrutura produtiva nos quais a economia brasileira apresentasse melhor potencial de desenvolvimento. O exemplo emblemático foi a cadeia do petróleo, desde a produção de equipamentos e tecnologia nacional de exploração em águas profundas (o recém-descoberto Pré-sal) até o refino e a petroquímica, resinas, polímeros e plásticos. Um impulso ao acordo automotivo do MERCOSUL e ao programa nuclear, também regionalizado, bem como projetos na indústria de defesa e no setor de comunicações foram outras áreas priorizadas. Central para esse programa foram os investimentos na construção civil, seja residencial (Programa Minha Casa Minha Vida) seja, e principalmente, na construção pesada dos investimentos em infraestrutura do PAC.
Uma terceira iniciativa que tinha suas raízes na década de 1970, e que foi objeto de muita crítica, visou replicar a experiência asiática de promoção de exportações e de investimento direto no exterior por meio da eleição de “campeões nacionais”, empresas oligopolistas consolidadas e competitivas no mercado interno com potencial de se internacionalizarem. O apoio estatal via crédito e ação diplomática e de agências de fomento deu grande impulso ao investimento no exterior de grupos de engenharia, energia, alimentação e bebidas, aeronáutica e armamentos (Valdez, 2017).
O crescimento acelerou, de 1,9% ao ano entre 1990 e 2002 para 3,5% de 2003 a 2014. Esse desenvolvimentismo revisitado buscava consolidar uma aliança com a burguesia interna, principalmente suas frações industrial e agrária, cujo símbolo foi a presença do vice-presidente José Alencar, um industrial do setor têxtil, nos dois mandatos de Lula. Paralelamente, os ministérios da agricultura e da indústria também tiveram representantes dos empresários em seu comando.
Muito além da distribuição da renda, da eliminação da fome e da redução da pobreza, a nova orientação política do governo brasileiro teve a acertada compreensão, e adotou iniciativas compatíveis com essa ideia, de que o projeto nacional de desenvolvimento em construção, ainda que com traços pouco claros e objetivos específicos insuficientemente definidos, não poderia prescindir de iniciativas nas áreas das políticas externa e de defesa completamente diferentes do que fora a orientação durante o período 1990 – 2002. Embora houvesse no país um predomínio da ideologia neoliberal e uma vontade de submissão aos interesses dos EUA por parte das classes dominantes hegemonizadas pela finança, o Estado – apoiado numa fração da burocracia estatal e da academia e numa parcela da burguesia interna rural e urbana, e contando com a adesão crítica dos movimentos populares como os sem-terra, MST, os sem-teto, MTST, os sindicatos de trabalhadores e ONGs voltadas aos temas dos direitos humanos e ambientais – assumiu uma posição de autonomia relativa e levou adiante uma mudança profunda em suas políticas externa e de defesa.
O fracasso do neoliberalismo de adesão ao projeto norte-americano já havia forçado o Brasil, ainda no segundo mandato de FHC, a adotar uma postura de priorizar as relações sul-sul, pois nenhum ganho adveio da tentativa de integração subalterna à nação do norte. Uma vez que já havia um espaço de integração consolidado no MERCOSUL, o passo seguinte foi ampliar a base geográfica da integração para a totalidade do continente.[6] Uma primeira cúpula das nações sul-americanas, ainda em 2000, aprovou a IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana), um programa ambicioso com projetos transnacionais nas áreas de energia, transporte e comunicações. Dessa iniciativa nasceu a UNASUL, cuja pauta se ampliou para além da integração econômica, incluindo os temas da defesa e segurança, educação, saúde, direitos dos povos originários e minorias, migrações, meio- ambiente, etc.
A nova política externa brasileira estabeleceu quatro prioridades na seguinte ordem de importância, seguindo a orientação de uma nova bússola que apontava na direção do “nosso norte é o sul”: primeiro, as relações especiais com a Argentina; segundo, o entorno sul americano; terceiro, o Atlântico Sul e a África e quarto, a Ásia, em especial seus grandes países incluindo a eurasiana Rússia. As históricas relações com o centro capitalista no Atlântico Norte, EUA e UE, passaram a ser reelaboradas sob o signo da contradição entre o interesse nacional e os desígnios daqueles parceiros, daí o qualificativo “altiva e ativa” dado pelo ministro Celso Amorim para essa nova política. Embora a reconhecida tradição pacífica do Brasil, essa nova formulação não deixa de representar uma “vontade de poder” (Fioiri, 2014) e, obrigatoriamente, precisou enfrentar a oposição do país dominante em sua necessária ação preventiva voltada para impedir a ascensão de novos polos desafiadores do status quo e de sua posição hegemônica.
Na medida em que o Brasil progredia na consolidação das relações diplomáticas sob a perspectiva de seus quatro objetivos estratégicos apoiado pela convergência de posições e interesses com Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Venezuela, os EUA avançavam sua proposta de formação de uma zona de livre comércio pan-americana, a ALCA, com objetivo de estabelecer controle sobre o processo de integração sul-americano e neutralizar outras iniciativas como a da Venezuela em torno da ALBA. Entretanto, a onda de governos populares formou uma maioria de resistência às posições norte-americanas. Isso somado ao envolvimento daquele país nas guerras do Oriente Médio e no movimento de cerco à Rússia, e depois à China, levaram a política americana a um período de aparente indiferença em relação ao continente latino-americano.[7]
5. Regionalismo sul-americano e multilateralismo global
Foi durante o segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma que uma até então errática relação entre política de desenvolvimento e política externa passou a convergir com grande consistência para a definição dos contornos de um projeto nacional. Para tanto, foi decisiva a superação da ortodoxia que predominara na política econômica anteriormente e que se materializou na substituição do médico Antônio Palocci e sua equipe neoliberal pelo economista Guido Mantega, ainda no final do primeiro mandato de Lula, em 2006. A precaução fiscal foi mantida, mas subordinada a uma estratégia de desenvolvimento que tinha no Estado um ator fundamental e se concentrou em reconstruir os instrumentos de planejamento da administração pública na formulação de planos e projetos de investimento para dar suporte ao desenvolvimento econômico. Como forma de prevenir a oposição da alta finança, a política de juros elevados foi mantida. Como o crescimento resultava em aumento da arrecadação fiscal, a relação dívida pública – PIB tornou-se declinante em que pese o nível da taxa de juros.
Ao mesmo tempo em que a política econômica se reorganizava na direção de dar suporte ao PAC através da política fiscal de expansão do investimento e do gasto públicos e, também, da política monetária na gestão expansionista da moeda e do crédito, a política externa consolidava suas diretrizes e vinha colhendo os frutos de suas iniciativas bem-sucedidas sob a consigna de “nosso Norte é o Sul”. Nas palavras do ex-ministro Antônio Patriota:
No início deste século, o mundo mudou, e o Brasil mudou com ele. Mais importante é notar como o Brasil passou a influenciar essas transformações e formatar os termos dos debates nos principais foros internacionais. Integrando um pequeno grupo de países, não mais do que quinze, que possui relações diplomáticas com todos os Estados reconhecidos pela Organização das Nações Unidas, além da Palestina e da Santa Sé, o Brasil possui hoje uma política externa de alcance verdadeiramente global e uma ação diplomática criativa e com uma visão própria do mundo (Patriota, 2013, p. 6)
Esta ação era norteada por alguns valores que foram se consolidando ao longo do século XX, desde a gestão do Barão do Rio Branco na chancelaria brasileira e que se inscreveram na Constituição de 1988. O embaixador assim os descreveu:
A ação diplomática brasileira zela por aqueles valores específicos que nos definem como sociedade. Comprometido internamente com a valorização da democracia, a promoção e proteção dos direitos humanos e o desenvolvimento sustentável, o Brasil atua para conformar, em sua ação externa, um sistema multipolar sustentado na cooperação e na legitimidade (Patriota, 2013, p. 6)
Explicando as prioridades da política externa dirigida por esses princípios, o autor afirma:
Sendo assim, não há dúvida de que a América do Sul constitui prioridade estratégica. A gente tem na América do Sul uma oportunidade histórica excepcional. É uma região de democracia, de cooperação, com potencial energético e agrícola e cada vez mais competitiva. E sabemos que, para se projetar internacionalmente, como tem feito, o Brasil se beneficiará enormemente se dispuser de uma América do Sul coordenada, com melhor infraestrutura (Patriota, 2013, p. 7)
Na sequência lembra que
A região destaca-se por representar, hoje, um espaço de paz, democracia, cooperação e de crescimento econômico com justiça social. Credita-se ao processo de democratização do continente uma das principais razões para a aproximação entre os países sul-americanos. (Patriota, 2013, p. 7)[8]
Ao qualificar a prioridade definida em direção à África, após mencionar os laços históricos, étnicos e culturais do Brasil com o continente de além-mar e a percepção do Atlântico Sul como área de interesse estratégico, do que é significativo o tratado que criou a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), o embaixador Patriota disse o seguinte:
Nesse contexto de importantes mudanças, o Brasil pretende continuar a ser percebido pela África como um amigo para o desenvolvimento. Temos objetivos comuns, amplos recursos humanos e naturais, e muita disposição. Nossos laços, tanto os históricos como os recentemente constituídos, representam a trama que nos dá segurança para pensar com ousadia e agir com otimismo (Patriota, 2013, p. 245)
Cabe mencionar um episódio significativo da política africana adotada pelo Brasil sob a inspiração dos valores mencionados. Em 14 de abril de 2005, em visita à Ilha de Gorée no Senegal, que foi um porto de partida de navios que traficavam escravos para o Brasil, o presidente Lula pronunciou um discurso com as seguintes palavras: “Queria dizer ao presidente Wade e ao povo do Senegal e da África que não tenho nenhuma responsabilidade com o que aconteceu no século 18, nos séculos 16 e 17. Mas penso que é uma boa política dizer ao povo do Senegal e ao povo da África: perdão pelo que fizemos aos negros.” Em resposta, o presidente senegalês o qualificou como “o primeiro presidente negro do Brasil”.[9]
O país também definiu uma prioridade para suas relações globais e uma visão própria da ordem mundial que o aproximou de outras nações com liderança regional e importância internacional por seu peso geográfico, econômico e demográfico. A luta por uma reforma do sistema internacional no sentido da construção de um mundo multipolar e a defesa do multilateralismo.
A diplomacia brasileira está igualmente atenta à necessidade de reforma das estruturas de governança global, de forma a torná-las mais representativas das transformações geopolíticas em curso e sintonizadas com as demandas por participação democrática nos processos decisórios sobre temas de interesse global. Houve algum avanço nos planos da governança comercial e financeira […] O Brasil acredita no multilateralismo – uma necessidade incontornável em um mundo multipolar (Patriota, 2016, p. 25)
Nessa direção é possível compreender a participação do Brasil na iniciativa IBAS, um fórum de diálogo composto com a Índia e África do Sul, a Rota da Boa Esperança, como disse Fiori (2014), um espaço de concertação e diálogo entre lideranças não hegemônicas de seus respectivos continentes. Um passo mais adiante foi dado com a consolidação do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), uma articulação de evidente peso geopolítico e que tem o declarado propósito de mudar o sistema internacional. Mesmo que tradicionalmente Brasil e África do Sul tenham boas relações com os EUA, este não é o caso de Rússia e, principalmente China, depois que a nova estratégia de defesa dos norte-americanos adotou como objetivo central impedir o desenvolvimento desse país. Embora a tensão militar com os EUA permaneça alta, a estratégia do grupo é a da ascensão pacífica. Entretanto, seu feito mais importante até agora, a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, foi um ataque direto ao poder americano baseado na internacionalização do dólar. O novo banco tem por objetivo operar fora da zona de influência norte-americana e financiar programas e projetos do chamado mundo em desenvolvimento, denominados em moeda dos seus membros fundadores.
É importante considerar que foi realizada também uma mudança significativa da política de defesa em conformidade com a nova realidade internacional depois da queda do Muro de Berlin e do desaparecimento do “inimigo interno” diante da redemocratização e da consequente legalização de todas as correntes políticas existentes no país. Sua discussão e definição partem do mandato da Lei Complementar nº 97 de 1999. Um longo debate produziu uma visão estratégica atualizada e coerente com as necessidades nacionais, aprovada pelo Parlamento em três documentos A Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional (Brasil, 2012a; Brasil, 2012b). Na formulação deste pensamento, a necessária convergência entre política econômica e defesa é reivindicada nos seguintes termos:
1. Estratégia nacional de defesa é inseparável de estratégia nacional de desenvolvimento. Esta motiva aquela. Aquela fornece escudo para esta. Cada uma reforça as razões da outra. Em ambas, se desperta para a nacionalidade e constrói-se a Nação. Defendido, o Brasil terá como dizer não, quando tiver que dizer não. Terá capacidade para construir seu próprio modelo de desenvolvimento (Brasil, 2012 a, p. 43)
O desenvolvimento da capacidade de defesa é requisito necessário à afirmação do interesse nacional, que muitas vezes obriga uma nação a dizer não ao lidar com interesses contrários de outra ou outras. Reivindicando a tradição pacifista do Brasil que remonta ao final do século XIX, a Estratégia Nacional de Defesa afirma a necessidade da preparação para a guerra e da criação de capacidade dissuasiva.
2. Não é evidente para um País que pouco trato teve com guerras, convencer-se da necessidade de defender-se para poder construir-se. Não bastam, ainda que sejam proveitosos e até mesmo indispensáveis, os argumentos que invocam as utilidades das tecnologias e dos conhecimentos da defesa para o desenvolvimento do País. Os recursos demandados pela defesa exigem uma transformação de consciências, para que se constitua uma estratégia de defesa para o Brasil (Brasil, 2012 a, p. 43)
A vontade de levar adiante uma estratégia de desenvolvimento nacional só pode se efetivar se tiver a proteção do braço armado da sociedade. E mais ainda, além da defesa, faz parte da estratégia brasileira a criação de sinergias tecnológicas e produtivas que beneficiam o desenvolvimento da economia. O enriquecimento de urânio, a produção de reatores, a indústria aeroespacial, as tecnologias de informação e comunicação são alguns ramos da estrutura produtiva brasileira desenvolvidos em larga medida por demanda das necessidades da defesa.
O outro lado dessa articulação responde pela política externa e está assim definido no Livro Branco da Defesa Nacional.
As políticas externa e de defesa são complementares e indissociáveis. A manutenção da estabilidade regional e a construção de um ambiente internacional mais cooperativo, de grande interesse para o Brasil, serão favorecidos pela ação conjunta dos Ministérios da Defesa (MD) e das Relações Exteriores (MRE) […] A Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) representam marcos históricos no sentido da afirmação e divulgação dos fundamentos e parâmetros da defesa. A Política e a Estratégia assinalam responsabilidades na promoção do interesse nacional, em particular nos temas afetos a desenvolvimento e segurança do País. Evidenciam a necessidade de fortalecimento dos mecanismos de diálogo entre o MD e o MRE, no sentido de aproximação de suas inteligências e no planejamento conjunto.” (Brasil, 2012 b, p. 51)
A definição do entorno estratégico do Brasil e a identificação das vulnerabilidades foram resultado desse diálogo entre os ministérios das relações exteriores e da defesa, coordenados pela Presidência da República. O entorno estratégico imediato é a América do Sul e o Atlântico Sul; as boas relações com os vizinhos do continente e, especialmente com a Argentina, são centrais nesse ponto. Da mesma forma, a amizade e cooperação com os países africanos na outra margem do Atlântico são vitais para a segurança e estabilidade do Brasil. Também são desafios à nossa diplomacia e às nossas forças armadas a proteção e o aproveitamento sustentável da Amazônia e da “Amazônia Azul”, como são chamados o mar territorial e a zona econômica exclusiva no Atlântico. A utilização do patrimônio dessas enormes reservas da biosfera e de recursos naturais não prescinde de uma política de desenvolvimento voltada para o progresso social do povo brasileiro com crescimento da renda e do bem-estar e redistribuição de seus resultados de forma equânime. Foi para esta direção que passou a apontar a bússola do desenvolvimento.
6. O golpe de Estado e depois
As administrações de Lula e Dilma haviam tentado efetivar a convergência das políticas estratégicas do Estado brasileiro. A iniciativa dessa efetivação vinha sendo um processo bastante longo, efetuado de forma democrática com a participação da sociedade através de diversas conferências temáticas que discutiram e aprovaram planos para um grande número de propostas de ação em políticas públicas como meio-ambiente, saúde, educação, negros, mulheres, povos indígenas, e outros. Além disso, foi criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social com representantes dos trabalhadores da cidade e do campo e de diversas frações da burguesia, cujas discussões foram iniciadas em 2003. Diferentemente da defesa, as políticas de desenvolvimento e externa não houve uma formalização materializada em um documento síntese. As diretrizes das relações exteriores aparecem nas obras de alguns seus protagonistas, como Amorim (2015), Bustani (2004) e Patriota (2013 e 2016), onde fica bastante evidenciada uma unidade coerente de princípios e objetivos que permaneceram ao longo de todo o período. Essas diretrizes representaram em larga medida uma continuidade, adaptada ao momento histórico do sistema internacional, da mesma postura independente adotada em conjunturas anteriores. Aquilo que Amorim (2015) chamou Política Externa Altiva e Ativa articulou um conjunto de iniciativas voltadas a mudar a modalidade de inserção do Brasil na ordem internacional através da afirmação de sua liderança na América Latina e no Caribe, da promoção de uma a aproximação com países da África e da Ásia e da tentativa de elevar sua posição de poder através de movimentos em direção à reforma das instituições internacionais e das novas alianças materializadas no BRICS, no G20 e outros fóruns.
Já a política econômica, diferentemente do que ocorrera no período desenvolvimentista com seus Plano de Metas, PAEG e II PND, desde a redemocratização passou a ser formalizada nos planos plurianuais os quais se constituíam em pouco mais que um rol de intenções de obras e despesas sem necessariamente estarem vinculadas a um projeto consolidado. Em 2007, no começo de seu segundo mandato, Lula anunciou o PAC numa tentativa de dar unidade e organicidade à política de desenvolvimento e que previa um conjunto de investimentos em infraestrutura a ser realizado até 2010, momento em que foi substituído pelo PAC 2. Embora o grau de execução dos projetos tenha sido em geral baixo, algumas iniciativas como abastecimento de água, habitação e energia foram bastante bem-sucedidas, reduzindo em muito o déficit desses serviços em várias regiões do país. Associado a isso, o resultado dos programas sociais de aumento dos salários, transferência de renda e redução da pobreza acabaram por produzir o surto de crescimento puxado pelo consumo iniciado em 2004. Necessariamente, a taxa de investimento subiu[10] dando sustentação ao crescimento da demanda efetiva (Faria, 2016).
Entretanto, ainda com poucos objetivos atingidos – talvez o mais emblemático tenha sido a exclusão do Brasil do Mapa da Fome da FAO – esse ainda pouco discernível projeto de desenvolvimento foi abruptamente interrompido em 2014 quando a taxa de crescimento desacelerou para apenas 0,9%, o consumo das famílias se reduziu para meros 1,1% de variação e o investimento caiu -4,4%. Os fatores que dinamizavam a economia deixaram de estar presentes. Este foi o ano do término do primeiro mandato da então presidenta que se encontrava sob enorme pressão dos partidos de oposição, em que pese ter vencido as eleições então ocorridas.
Inconformados com a derrota, já que haviam apoiado a candidatura da oposição, organizações patronais lideradas pela Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) e pela Federação Nacional dos Bancos (FEBRABAN) além da maior parte dos meios de comunicação comerciais assumiram a direção do movimento de contestação ao governo. A pauta dessa mobilização era o interesse dos rentistas e do capital financeiro internacionalizados na mudança da política econômica e da política externa. Sua estratégia foi, inicialmente, impedir Dilma de governar pela sistemática obstrução de suas iniciativas no parlamento e pela aprovação de leis que comprometiam a consecução dos objetivos do governo.
Num primeiro momento fica pouco compreensível essa oposição burguesa aos governos do PT, afinal a ponta de cima da pirâmide social teve expressivos aumentos de renda ao longo dos mandatos de Lula e Dilma. Uma explicação foi proposta por mim em Faria (2016) considerando a hipótese de as iniciativas de política social terem aumentado o valor do trabalho, comprimindo a taxa de lucro. Os resultados[11] mostraram entre 1990 e 1999 uma queda do rendimento dos trabalhadores de -18,9%, enquanto a produtividade cresceu 10,1%. A margem de lucro se ampliou durante o neoliberalismo. Já no período seguinte, entre 2000 e 2004 o rendimento dos trabalhadores cresceu 2,1% e a produtividade do trabalho 4,5%. Os anos de 2005-17, entretanto, viram os ganhos dos salários reais superarem o aumento da produtividade pois aqueles variaram 93,5% e estes 71,2%. A rentabilidade do capital produtivo se reduziu no período do “desenvolvimentismo” do PT.
A essa realidade veio se somar a iniciativa de Dilma Rousseff de reduzir o valor da apropriação rentista sobre o produto nacional através da redução da taxa de juros. Entre 2011 e 2012 o Banco Central reduziu a taxa básica que referencia a remuneração da dívida pública, enquanto os bancos controlados pela União (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES) adotaram uma postura competitiva agressiva em relação aos bancos privados, diminuindo o spread em seus empréstimos e com isso fazendo cair a lucratividade da oferta de crédito. Obrigadas a pagar uma parte da conta da redistribuição da renda no país, as diferentes frações da burguesia convergiram para uma posição de crescente animosidade para com o governo.
No ano de 2013, uma série de manifestações de descontentamento social teve lugar nas principais cidades do país. A motivação desses movimentos era relacionada à insatisfação com a precariedade de alguns serviços públicos, em especial o transporte urbano e a educação. Inicialmente mobilizados por grupos de jovens estudantes, as manifestações foram mudando não apenas sua composição social como sua pauta reivindicativa. Em pouco tempo passaram a ser convocadas e articuladas por empresas de rádio, televisão e jornais da imprensa comercial, por representações da burguesia como a poderosa FIESP e por organizações políticas financiadas e vinculadas, seja a entidades direitistas dos EUA (Students for Liberty e os conhecidos irmãos Koch), seja a organizações neoliberais brasileiras, como o Instituto Millenium e os partidos políticos de direita, que organizaram grupos militantes pela Internet como o Movimento Brasil Livre (MBL) ou o Vem Prá Rua.
A nova composição social das manifestações era uma expressão da classe média tradicional (médicos, advogados, gerentes, administradores e pequenos burgueses) e da grande burguesia (empresários do campo e da cidade), mas também foi composta por militantes dos partidos de direita (PSDB, DEM, PMDB) e dos novos grupos de jovens neoliberais inicialmente apartidários. A pauta também mudou radicalmente. Da reivindicação por serviços públicos melhores e gratuitos houve um giro de 180 graus que adotou como eixo a denúncia da corrupção na política, puerilmente identificada como a causa maior dos problemas da administração pública. Nessa reorientação dos objetivos das manifestações multitudinárias os think tanks da direita e os meios de comunicação tiveram papel decisivo tanto na convocação das ações de rua como na direção do discurso político dos manifestantes.[12]
Para surpresa de muitos, mesmo acuada pela mobilização da classe média e da burguesia e com sua popularidade em declínio, Dilma Rousseff venceu as eleições em 2014, liderando a mesma coligação partidária que sustentara seu primeiro mandato, cuja pedra angular era o PMDB. Mal se inicia seu segundo mandato e um grande número de congressistas filhados a representações políticas formalmente coligadas ao governo veio se associar à oposição, rompendo com o governo mesmo estando nele representado por diversos ministros e pelo próprio vice-presidente da república, Michel Temer. Antes mesmo da posse em janeiro de 2015, teve início a conspiração que em poucos mais de um ano, maio de 2016, alcançou o afastamento da presidenta. O conluio que produziu o golpe de Estado foi conduzido por uma aliança entre o PSDB, partido derrotado por Dilma em 2014 e o PMDB que adotou o caminho da traição liderada pelo então vice-presidente. O grupo de “traíras”[13] contava com o sólido apoio da grande burguesia em todas as suas frações – financeira, rural e industrial, interna ou internacionalizada como será visto mais abaixo – e das mobilizações de rua massivas da classe média.
A conjuração seguiu adiante com o apoio decisivo do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal que se valeram de uma investigação sobre a relação da Petrobras com grandes empresas de engenharia associadas à petroleira em diversos projetos de produção, refino e fornecimento de equipamentos e obras.[14] Tanto os procuradores e policiais quanto o juiz responsáveis pelos processos do caso eram reconhecida e declaradamente adversários políticos do PT e eleitores do derrotado Aécio Neves, candidato do PSDB, além de terem vínculos fortemente estabelecidos com organizações do Estado norte-americano. O cronograma das investigações e da revelação de supostos crimes e dos nomes dos investigados ou suspeitos foi habilmente conduzido para coincidir com os momentos mais importantes do processo que tramitava no Congresso tendo em vista o impeachment da Presidenta Dilma.
A acusação que deu motivo ao impedimento por violação da legislação fiscal foi uma completa fraude. Atos administrativos rotineiros, relacionados a contratos de benefícios sociais e crédito a agricultores entre o Tesouro Nacional e a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil através de uma conta única em que eventualmente um ou outro lado ficava devedor foram criminalizados. Consumada a traição numa série de episódios escabrosos protagonizados por deputados e senadores ao longo desse processo viciado desde a origem, Dilma perdeu seu mandato e assumiu o vice Michel Temer. O mesmo já anunciara muito antes sua linha política, quando o PMDB divulgou em outubro de 2015 um documento (Uma Ponte para o Futuro) em que propunha a retomada radicalizada ao extremo do fracassado projeto neoliberal da década de 1990.
Ainda em sua interinidade, durante o processo de julgamento do impeachment, as primeiras medidas de mudança radical nas políticas públicas começaram a ser tomadas com a troca de ministros. O que veio depois foi um conjunto de iniciativas respaldadas pela maioria congressual que promoveu o golpe e passou a apoiar o governo oriundo do mesmo. A política externa de “altiva e ativa” passou, em novo giro do pêndulo, a ser “submissa e passiva”. Não só pela subordinação aos interesses dos EUA como pelo desmonte das iniciativas bem-sucedidas das gestões do PT, de que são exemplares o esvaziamento do MERCOSUL e da UNASUL, o apoio à tentativa de mudança de regime na Venezuela, o fechamento de embaixadas na África e a suspensão de diversos projetos de apoio à construção de infraestrutura naquele continente. Da mesma forma, assumiu uma tentativa apressada de concluir acordos de livre comércio como o que vinha sendo negociado entre MERCOSUL e UE há mais de dez anos. Além disso, a falta de legitimidade do regime golpista esvaziou o peso do Brasil na cena internacional. Sua presença em fóruns como o BRICS ou o G20 financeiro tornou-se meramente protocolar e irrelevante.
No plano da política econômica a mudança foi ainda mais violenta. A austeridade fiscal do início da segunda gestão de Dilma, pensada para ser passageira, foi transformada em objetivo permanente. O Congresso adotou uma absurda emenda constitucional congelando os gastos públicos de investimento, pessoal e manutenção dos serviços por 20 anos. Desse limite ficaram, por evidente em razão de seus compromissos com a alta finança, excluídos os pagamentos de juros da dívida pública. Todas as obras e investimentos públicos foram paralisados e os valores de custeio drasticamente reduzidos. Programas sociais como o Bolsa Família, o pagamento de benefícios previdenciários, auxílio doença, merenda escolar, distribuição de medicamentos ou foram extintos ou tiveram cortes de milhões de beneficiários. Mesmo o salário mínimo teve sua política de valorização real mudada. No seu pacote de maldades, o governo usurpador conseguiu alterar mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho que, além de tornarem possíveis a terceirização, inclusive de atividades fim das empresas, permitem a celebração de contratos de trabalho em desacordo com a lei, criam tarifas punitivas para o trabalhador que recorrer ao judiciário contra seu patrão, autorizam a jornada de trabalho intermitente e, no que é mais ultrajante, possibilitaram que as mulheres grávidas trabalhem em ambientes insalubres, entre outras reduções de direitos vigentes desde 1930.
A pauta da vingança dos ricos contra os pobres com vistas a destruir as instituições criadas pelo pacto democrático de 1988 ainda avançou uma proposta de reforma do sistema previdenciário com objetivo de aumentar o tempo de trabalho e reduzir o valor dos benefícios de aposentadoria e pensão. E também um projeto de desestatização e desnacionalização de empresas, da qual a gigante petroleira Petrobras vem sendo uma das vítimas com a venda de refinarias e poços de petróleo, mas que inclui aeroportos, a grande empresa de energia Eletrobrás, estradas, portos, ferrovias, entre outros. O resultado dessa política foi a maior crise da história econômica brasileira, com redução do PIB entre 2015 e 2016 às taxas de -3,5% e -3,3% respectivamente e um desemprego que alcançou em 2017 a taxa de 13,6%, um total de 14 milhões de trabalhadores num contingente total de 103 milhões.
Por fim, no que diz respeito à política de defesa, muito embora o governo ilegítimo tenha buscado agradar os comandos das Forças Armadas nomeando um general para ministro da pasta, o corte de gastos e investimentos reduziu significativamente os projetos de produção de capacidades, especialmente a construção do submarino nuclear, os sistemas de comunicação, o programa aeroespacial e o de blindados. Além disso, o emprego de tropas federais em missões de segurança interna tornou-se uma prática recorrente. Da mesma forma que a política externa, a política de defesa foi alterada na direção do alinhamento subalterno aos EUA e do foco no inimigo interno, agora o crime organizado.[15]
O apoio a essas mudanças era uma unanimidade da burguesia em todas as suas frações e encontrava eco tanto na classe média tradicional quanto numa pequena burguesia que crescera em número e renda durante os anos de bonança econômica. Essa coalizão social tinha receio da interrupção dessas políticas nas eleições de 2018. Sua opção foi dobrar a aposta na perseguição judicial ao PT e seus líderes, especialmente Lula, que foi preso e perdeu seus direitos políticos. O que não se percebia então era um movimento discreto de articulação de uma candidatura de extrema direita competitiva para o cenário eleitoral em torno do farsesco deputado Jair Bolsonaro, um protofascista corrupto, envolvido com membros de organizações criminosas no Rio de Janeiro, admirador da ditadura e da tortura, há 28 anos uma presença irrelevante e caricata na Câmara dos Deputados. Uma articulação de comandantes militares, grupos de mídia, religiosos neopentecostais, associações empresariais de diversos setores e grupos neofascistas que emergiram da clandestinidade e se tornaram militantes, além do apoio dos EUA, acabou por esvaziar completamente os partidos burgueses tradicionais, como PSDB e MDB, e ainda angariou, inclusive, o apoio de uma parcela de trabalhadores, decepcionados com o PT porque cativados pelo discurso anticorrupção, levou Bolsonaro à vitória.
O novo governo adotou um grau muito maior de radicalidade, conduzindo um programa de destruição de todo o arranjo institucional que regulava a economia e a sociedade brasileira desde os anos 1930, consolidado e atualizado na Constituição de 1988. Sua preocupação central foi o engajamento em uma luta ideológica contra o “gramscismo” e o “politicamente correto” ao qual buscou contrapor valores conservadores de Deus, pátria e família. Foram aprovadas mais uma reforma do sistema de previdência e algumas mudanças a mais na legislação trabalhista, que incluíam um desmonte do mecanismo de financiamento dos sindicatos de trabalhadores. Como decorrência da submissão aos EUA, a diplomacia brasileira destruiu o mecanismo de integração continental, a UNASUL, passou a agredir a Venezuela e adotou um discurso hostil em relação à China, maior destino das exportações nacionais. Em relação à defesa, além do foco nas operações de garantia da lei e da ordem contra a criminalidade, um novo inimigo interno foi apontado por próceres do governo, o “marxismo cultural”, a ser combatido na forma de guerra híbrida através tanto de uma intensa luta ideológica como econômica via restrição financeira a ser travada dentro dos sistemas de ensino, de ciência e tecnologia e da produção cultural. [16]Por sua vez, a revisão da Política Nacional de Defesa, encaminhada ao Congresso em julho de 2020, pela primeira vez menciona a possibilidade de que tensões e crises no entorno estratégico (no caso, América do Sul) possam levar ao emprego das Forças Armadas para “contribuir para a solução de eventuais controvérsias ou mesmo para defender seus interesses. ” Além dessa passagem ameaçadora para nossos vizinhos, quando se refere à proteção da Amazônia, o texto traz de volta um fantasma da ditadura, a suposta possibilidade de que “entidades exógenas influenciem as comunidades locais” (Brasil, 2020).
7. Do neoliberalismo ao fascismo?
A oscilação do pêndulo alternando entre autonomia e dependência da inserção externa do Brasil foi, como visto, condicionada por outras mudanças, aquelas da direção da bússola que aponta o rumo da nação, uma eleição repetida mais de uma vez entre neoliberalismo e desenvolvimentismo e entre autoritarismo e democracia. Essas escolhas foram decididas pelo desenrolar da luta de classes na sociedade brasileira ao longo de todo o período, que tem seu resultado dado pelas posições de poder relativo dessas classes e que é atravessado pelo processo de mudança na própria configuração destas. Para tanto, dois fenômenos foram centrais: a financeirização, transformando a relação da burguesia com a estrutura econômica, e a precarização, modificando a relação dos trabalhadores com sua ocupação produtiva (Tauile; Faria, 2004). Esse é um tema que precisa ser revisitado para dar conta de suas novas determinações, o que não cabe neste espaço. Ao concluir essas reflexões, entretanto, é necessário fazer três ponderações.
Em primeiro lugar, os interesses contidos na opção neoliberal contemplam, como em todo o mundo, a fração financeira da classe dominante. Não obstante, essa fração não é apenas o contingente proprietário e gestor das instituições financeiras, que seria protagonista de uma contradição histórica com a chamada burguesia produtiva (principalmente o empresariado industrial). Acontece que o processo de financeirização subsumiu a maior parte das grandes empresas produtivas, que passaram a ser controladas por bancos e fundos de investimento e tiveram modificadas as próprias práticas gerencias com o chamado primado do acionista (shareholder value), através do qual a valorização do capital fictício se sobrepõe à criação de valor na produção. Apenas os pequenos e médios capitais permaneceram dependentes da valorização pelo trabalho produtivo. Mas esses capitais são, tanto do ponto de vista da acumulação quanto em sua perspectiva política, caudatários do grande capital que os lidera.
E há mais, uma economia dependente, mas que tenha dimensões continentais como o Brasil, muitas vezes vê emergir uma outra contradição interna à burguesia, entre a fração internacionalizada e aquela que se volta à produção para o mercado interno. O debate histórico do desenvolvimentismo e sua crítica pela teoria da dependência, mormente em sua versão marxista herdeira da teoria do imperialismo, teve como um de seus pontos centrais a avaliação dessa contradição e da possibilidade de a burguesia interna ser capaz de liderar o processo de desenvolvimento (Boito, 2018, 2020; Singer, 2012, 2015). A hipótese que presidiu as considerações aqui feitas, como foi notado, é a de que os dois recortes se sobrepõem. A força social dominante e principal beneficiária do neoliberalismo seria a fração financeirizada e internacionalizada da burguesia, o que inclui a maior parte do grande capital produtivo, inclusive de situação rural. A burguesia interna tem um segmento financeirizado que converge com os interesses da fração dominante, embora tenha mantido, como de fato aconteceu durante o surto de crescimento promovido pelos governos do PT, a capacidade de valorizar seu capital através do investimento na produção.
A segunda ponderação é a respeito da classe média. Seu segmento tradicional tem, na história brasileira, sido conduzido pela burguesia, com quem identifica o interesse comum de preservar privilégios de renda e status, sendo por isso refratária a qualquer processo redistributivo que implique ascensão das classes populares (Souza, 2019). Ora, é comum no desenvolvimento capitalista que seja acompanhado de expansão do emprego e crescimento dos salários e, por conseguinte, elevação do padrão de vida de ao menos uma parcela dos trabalhadores, como ocorreu no Brasil entre 2004 e 2014. A adesão entusiasmada de uma fração significativa dessa classe média ao golpe em 2016 e depois à candidatura de Bolsonaro em 2018 é compreensível tendo em vista sua recusa a aceitar a ascensão dos de baixo. Existe, entretanto, um segundo segmento das camadas médias beneficiário do próprio crescimento econômico que são os donos de pequenos negócios e empreendedores individuais e que obtiveram significativo incremento de renda. Essa fração ficou, em grande medida, prisioneira da ideologia da prosperidade, sem alcançar a compreensão de que seu progresso material era decorrente das políticas do governo (Souza, 2016).
Já a terceira ponderação é sobre a classe trabalhadora e demais setores populares. O Partido dos Trabalhadores contou historicamente com o apoio de uma expressiva parcela dessa classe formada pela industrialização e urbanização do país, operários industriais (metalúrgicos, petroleiros, …) e trabalhadores de serviços (bancários, professores, servidores públicos, …), inseridos formalmente no mercado de trabalho. A esse segmento veio se somar o que alguns autores nomeiam precariado, trabalhadores de vínculo de emprego informal ou por conta própria, justamente o contingente mais beneficiado pelas políticas sociais dos governos do PT. O que Singer (2012) chamou lulismo foi o movimento de reconstrução da base social do partido por efeito da política de desenvolvimento econômico e social, com a dissidência de uma parte da classe média tocada pelo tema da corrupção e a adesão dessa fração muito pobre dos trabalhadores. Os resultados eleitorais do Nordeste seriam uma evidência desse movimento.
Este quadro mutante das relações de classe foi redefinindo as posições assumidas pela direção do Estado nas políticas aqui analisadas que definiram o modo de desenvolvimento e o tipo de adesão ao regime internacional. O que o último período veio presenciando é a redefinição da fração dominante da burguesia em direção à internacionalização e financeirização que a fez abandonar o pacto da redemocratização e intentar, através das “reformas”, destruir as instituições dele decorrentes, garantidoras dos direitos políticos, socias e difusos inscritos na Constituição de 1988. Para tanto, alcançou disseminar o discurso de ataque às conquistas das classes populares apontadas como entraves ao progresso, atraindo a classe média e mesmo uma parte dos despossuídos para a aventura autoritária neofascista, cujos resultados são uma economia estagnada, um povo empobrecido, uma política externa subalterna e uma estratégia de defesa voltada a combater inimigos fantasiosos.
Num discurso para a turma de formandos do Instituto Rio Branco de 2012, a escola da diplomacia brasileira, a presidenta Dilma Rousseff afirmou: “O lugar que um país ocupa no mundo está prioritariamente vinculado ao papel que esse país ocupa em relação ao seu povo” (Rousseff, 2012). Capturado pela tentação totalitária de um governo de extrema direita que tem por objetivo a destruição de seus adversários à esquerda, está envolvido com organizações criminosas e corrupção e administra exclusivamente para aumentar a riqueza dos bilionários nacionais e de alhures, o país só pode ocupar um lugar desprezível.
Referências Bibliográficas
Amorim, C. (2015) Teerã, Ramalá e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva. São Paulo: Benvirá.
Arrighi, G. (1996) O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto e São Paulo, Editora UNESP.
Boito, A. (2018) Reforma e Crise Política no Brasil: os Conflitos de Classe nos Governos do PT. São Paulo: Unicamp/Unesp.
Boito, A. (18 de junho de 2020) “O papel da burguesia no golpe de 2016”. A Terra é Redonda. Recuperado de https://bit.ly/2RT0VDS.
Boyer, R. y Saillard, Y. (1995) “Un précis de la régulation”. R. Boyer, Y. Saillard (orgs) Théorie de la régulation : l’état des savoirs. Paris: La Découverte.
Brasil. (2012a) Política Nacional de Defesa – Estratégia Nacional de Defesa. Brasília.
Brasil. (2012b) Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília.
Brasil. (2020) Política Nacional de Defesa – Estratégia Nacional de Defesa (projeto do Ministério da Defesa enviado ao Congresso Nacional).
Bustani, J. M. (9 de setembro de 2004) “Mitos e desafios da política externa”. Folha de São Paulo. São Paulo.
Faria, L. A. E. (1991) “Quem corre mais: notas sobre a moeda e a formação de preços no Brasil”. Ensaios FEE (12)2, 308-322.
Faria, L. A. E. (1996) “Fordismo periférico, fordismo tropical y posfordismo: el camino brasileño de acumulación y crisis”. Ciclos en la Historia, la Economía y la Sociedad (6)10, 73-101. Recuperado de https://bit.ly/301jF8F.
Faria, L. A. E. (2007) “Back from the future? Brazil’s international trade in the early XXI century”. W. Blaas; J. Becker (orgs) Strategic Arena Switching in International Trade Negotiations. Londres: Ashgate.
Faria, L. A. E. (2016) “Más allá de la estanflación: el ciclo de crecimiento y crisis de Brasil, 2004-2015”. Ciclos en la Historia, la Economía y la Sociedad (24)46. Recuperado de https://bit.ly/3mNzt8E.
Fiori, J. L. (2014) História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo.
Fonseca, P. C. D. (2015) “Desenvolvimentismo: a construção de um conceito”. R. Datheim (org.) Desenvolvimentismo: o conceito, as bases teóricas e as políticas. Porto Alegre, Editora da UFRGS.
Lipietz, A. (1988) Miragens e milagres: problemas da industrialização no Terceiro Mundo. São Paulo: Nobel.
Lula pede perdão por negros que foram escravos no Brasil. (15 de abril de 2005). Folha de São Paulo.
Patriota, A. A. (2013) “Política externa brasileira: discursos, artigos e entrevistas (2011-2012)”. A. A. Patriota Coleção política externa brasileira. Brasília: FUNAG.
Patriota, A. A. (2016) “Política externa brasileira II: discursos, artigos e entrevistas (2011-2012)”. A. A. Patriota Coleção política externa brasileira. Brasília: FUNAG.
Rousseff, D. (20 de abril de 2012) “Discurso da Presidenta da República na cerimônia de formatura da Turma de 2010-2012 do Instituto Rio Branco”. Brasília.
Singer, A. (2012) Os Sentidos do Lulismo. São Paulo: Companhia das Letras.
Singer, A. (2015) “Cutucando Onças com Varas Curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)”. Novos Estudos, 102, 39-67. Recuperado de https://bit.ly/32VM16f.
Souza, J. (2016) A Radiografia do golpe: entenda como e porque você foi enganado. São Paulo: LeYa.
Souza, J. (2019). A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil.
Tauile, J. R. e Faria, L. A. E. (2004) “A Acumulação Produtiva no Capitalismo Contemporâneo”. Revista de Economia Política (24)2, 288-305. Recuperado de https://bit.ly/35YPenm.
Valdez, R. C. C. (2016) A consolidação do aparato de apoio estatal à internacionalização de empresas nacionais no governo Lula (2003-2010) Tese de Doutoramento em Estudos Estratégicos Internacionais. Porto Alegre: UFRGS.
- Algo notável na fala de despedida do presidente americano foi sua sugestão ao Brasil para aprender com os erros cometidos pela nação do norte. Fazendo referência à circunstância de, naquela época, o país ter uma parcela grande de seu território desabitada, Roosevelt fez uma subliminar mea culpa das atrocidades cometidas contra os povos originários para a conquista do oeste em seu país.↵
- É importante lembrar que o Censo de 1960 ainda contou mais de 56% da população brasileira no meio rural. Para essa maioria, a terra ainda era o meio de produção principal e o maior ativo de propriedade.↵
- Em 1940, 31,2% dos brasileiros viviam nas cidades, em 1980 esse percentual chegou a 67,8 e reduziu seu valor incremental para atingir 85,1% apenas em 2010.↵
- No seu segundo mandato, em 2015 e 2016, a Presidenta Dilma, que fora, ela mesma, engajada no movimento de esquerda armado contra a ditadura, teve como ministro da defesa e, portanto, chefe das Forças Armadas, Aldo Rabelo, um político filhado ao Partido Comunista do Brasil.↵
- A população brasileira era estimada pelo IBGE em 211.774.472 habitantes às 18 h e 29 min de 13 de julho de 2020.↵
- Foi quando o discurso diplomático brasileiro passou a falar em América do Sul em substituição à referência tradicional à América Latina. A razão disso era a adesão do México ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte, que o distanciou do restante da região.↵
- Como se viu com o tempo, essa indiferença não passava de uma ilusão. De maneira discreta os EUA mantiveram uma permanente mobilização de esforços, principalmente em operações secretas como ficou evidenciado nos episódios da espionagem à presidenta Dilma ou da colaboração com a iniciativa de lawfare da Lava Jato, objetivando assegurar seus interesses na região. Essas iniciativas tinham e têm em vista retomar e preservar sua dominação sobre toda a América Latina e o Caribe.↵
- Como será visto mais adiante, a interferência dos Estados Unidos na região lançando mão de instrumentos de guerra híbrida com o objetivo de causar mudanças políticas na América do Sul destruiu esse “espaço de paz, democracia, cooperação e crescimento econômico”. Cerco e sansões contra a Venezuela, apoio aos golpes de estado no Brasil, Bolívia, Equador e Peru e uso de pressões e chantagem são parte das ações que fizeram degenerar o ambiente de amizade vigente anteriormente.↵
- Lula pede perdão por negros que foram escravos no Brasil, 2005.↵
- Segundo as estimativas do IBGE, a formação bruta de capital fixo como percentual do PIB foi de 16,1% ao final de 2003 para 20,7% no primeiro trimestre de 2014, valor próximo aos 21,9% na média de 1971-80, a década de maior crescimento da economia brasileira desde 1900.↵
- Para uma aproximação estatística da lucratividade dos negócios foi feita uma comparação entre evolução da produtividade do trabalho e do valor do rendimento médio dos trabalhadores em todo o setor produtivo da economia brasileira, agropecuária, indústria e serviços, com dados das Contas Nacionais do IBGE.↵
- Também não pode ser menosprezado o importante papel dos EUA seguindo sua doutrina de guerra assimétrica e regime change. Financiamento, informação e cooptação de agentes do Estado como juízes, procuradores e policiais fizeram parte desta estratégia, como ficou comprovado no caso da operação Lava Jato.↵
- Na linguagem popular brasileira o traidor é comparado, por analogia fonética com o verbo trair, a este peixe da família dos caracídeos, muito comum nas águas doces do país, com dentes extremamente afiados e cuja mordida é temida pelos pescadores.↵
- É interessante lembrar que todos os diretores e gerentes da Petrobras envolvidos nos delitos, quando os fatos se tornaram conhecidos, já haviam sido demitidos da empresa por iniciativa de Graça Foster, a presidente escolhida por Dilma Rousseff. Graça sofreu uma perseguição feroz pela mídia, acusada de má gestora, e acabou renunciando, num dos tantos episódios de injustiça nesse processo tenebroso. ↵
- Para os EUA, o papel das forças armadas dos países latino-americanos deveria ser o de empreender o combate a organizações criminosas e dar suporte a regimes políticos amigos. O caso da Colômbia é exemplar nesse sentido.↵
- Os cargos nos ministérios foram sendo preenchidos não por pessoas habilitadas nos assuntos de cada pasta ou organismo, mas pela disposição em livrar essa guerra cultural. Isso explica a incompetência e desqualificação da equipe governamental: não foram nomeados para administrar, mas para desconstruir.↵