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16 Crime, coerção e mobilidades

As mulheres nas rotas transamazônicas de indígenas no século XVIII

André Luís Bezerra Ferreira

Em 8 de junho de 1739, na cidade de São Luís – Maranhão, o Tribunal da Junta das Missões deliberou sobre a petição da índia Antônia que alegava estar “reduzida a injusto cativeiro por Diogo Freire”. A pleiteante era procedente dos sertões amazônicos, precisamente do aldeamento de Jaguari, onde nasceu “livre de sua natureza”. Ali, Antônia “era tida por mulher ou concubina de um mameluco chamado Teodósio”, o qual “se reputava por um dos principais da aldeia”. Por ser uma liderança, o mameluco esteve inserido nas redes de negócios do tráfico transamazônico de indígenas que, até a primeira metade do século XVIII, foi a principal rota que forneceu a mão de obra, forra ou cativa, para os espaços coloniais da Amazônia portuguesa. Ao que parece, o relacionamento do casal estava desgastado, tanto que “o dito principal por estar desgostoso dela em razão de ser de perversos costumes” resolveu entregá-la para Diogo Freire. Esta concessão serviu para amortizar uma dívida de Teodósio com seu parceiro comercial a quem devia “dezoito [peças de] resgates” e com “esta conta lhe dera a dita índia”.[1]

Sendo assim, Antônia foi submetida a um processo de mobilidade coercitiva dos sertões amazônicos para São Luís, onde viveu sob os ilícitos domínios de Diogo Freire. Após alguns anos, a índia foi novamente inserida em uma rede de negócios. Desta vez, Diogo Freire a vendeu pelo valor equivalente a sete rolos de pano para Antônio Vieira, morador em Tapuitapera, que em seu “poder se conservou a suplicante sem repugnância pelo bom tratamento que ele dava”. Porém, após a doação feita por este senhor a Sipriano Pavão, residente na mesma vila, “o qual a tratava em crueldade”, Antônia “se viu precisada a requerer o direito da sua liberdade”.[2]

Para tanto, o Tribunal da Junta das Missões que tinha como uma de suas incumbências auxiliar na aplicação da justiça referente à (i)legalidade dos cativeiros e das liberdades dos índios,[3] intimou, com exceção do mameluco Teodósio, os demais envolvidos na escravização ilícita da pleiteante. Após os denunciados serem ouvidos “sumariamente o fundamento que podiam ter para o direito de escravidão que pretendiam”, os deputados do tribunal despacharam que “a índia suplicante é forra e livre de cativeiro e que assim se devia declarar no despacho de sua petição, por não aparecer fundamento algum para que conforme as leis e ordens de S. Mag. se possa julgar por justo o seu cativeiro”.[4]

A trajetória da índia Antônia é um pertinente exemplo que demonstra como as populações indígenas, sobretudo, as mulheres nativas, estiveram submetidas às práticas coercitivas na Amazônia colonial.[5] Desde o início do século XVII, as tropas de aprisionamento (i)lícito de indígenas realizavam incursões pelos sertões amazônicos. Na transição entre os séculos XVII e XVIII, a coroa portuguesa implantou um conjunto de dispositivos jurídicos – Lei de Liberdade dos Índios (1680), Regimento das Missões (1686), Alvará dos Resgates (1688) – visando normatizar as práticas de arregimentação da mão de obra, forra ou cativa, dos indígenas. Estas medidas estavam atreladas ao plano da efetiva inserção dos produtos amazônicos na economia global que, consequentemente, necessitava dos braços indígenas para o seu desenvolvimento. Várias expedições de descimentos, resgates e tropas de guerras partiram das cidades de São Luís e Belém rumo às rotas fluviais transamazônicas para a obtenção de indígenas. As expedições adentravam em diversas zonas geográficas compostas por sociedades indígenas estruturadas que estabeleciam relações de interdependências através de intercâmbios matrimoniais, pelo comércio e, sobretudo, pelas guerras. Por sua vez, os grupos indígenas, com o intuito de diversificar suas práticas comerciais e estabelecer possíveis alianças para combater seus inimigos, vendiam ou concediam para estas tropas, principalmente, as mulheres e as crianças que poderiam ser prisioneiras dos conflitos nativos. Este fator resultou que o tráfico transamazônico de escravos indígenas tivesse sua demografia marcada pela superioridade de mulheres resgatadas, descidas ou aprisionadas. Em vista deste cenário, o presente trabalho tem como objetivo analisar práticas criminais e coercitivas – assassinatos, crimes de ordem moral e escravizações ilícitas – que resultaram nas mobilidades das mulheres dos sertões para as vilas através das rotas transamazônicas de indígenas durante a primeira metade do século XVIII.

A formação das rotas transamazônicas

As rotas transamazônicas de escravos indígenas se desenvolveram em uma rede fluvial que teve como seu principal rio o Amazonas e mais dez afluentes que, na atualidade, é transversal a oito países que compõem porção equatorial do continente americano. Ainda que no período colonial os diversos agentes sociais se reportassem aos “sertões do rio Amazonas”, inclusive, os próprios indígenas e seus descendentes para se referirem sobre suas procedências, não se deve tratar esse território de dimensões continentais de forma genérica, homogênea e, tampouco, entendê-lo como um espaço periférico que estava à mercê dos europeus para sua exploração econômica. Isto porque, ao longo das terras e várzeas amazônicas, havia sociedades indígenas altamente estruturadas com suas próprias organizações políticas, econômicas e dinâmicas de escravização que, geralmente, eram os prisioneiros dos conflitos interétnicos.

Estes prisioneiros eram inseridos dentro das práticas socioculturais permeadas pelas relações de dependências assimétricas que os indígenas mantinham através de instituições como memória, vingança, antropofagismo, matrimônio, parentesco e poligamia. Para Julia Winnebeck et al (2021), as dependências assimétricas abrangidas como intercessão e interdependências são uma possibilidade para compreendermos as interações entre as ações humanas e suas tradições culturais, observando, principalmente, como as entidades se tornam agentes dentro destas relações. Os autores indicam uma distinção teórica entre os órgãos humanos e as entidades não humanas no conjunto de intermediações das relações sociais de dependências assimétricas. Nesta perspectiva, “deuses e espíritos, que em alguns contextos assumem os papéis dos atores nas relações assimétricas, também poderiam ser entendidos como mediadores, pois não são apenas articulados em sermões e orações, escritos ou ações físicas, como performances ritualizadas”. Concluem, “mas também muitas vezes retratados e materializados em templos, esculturas e outros artefatos, ou considerados como manifestos na natureza, ou seja, em árvores ou montanhas” (p. 12).

Nas sociedades indígenas, a memória e a vingança foram instituições com as quais os nativos mantinham fortes relações de dependências. Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (2017) apontam que, entre os tupinambás, a vingança era o núcleo que organizava a vida social, sendo o elemento regulador entre a vida e a morte. Logo, a vingança era o elo entre o passado e o futuro, garantindo a fluidez daquelas sociedades ao ser transmitida e herdada por cada geração através da memória. Esta, por sua vez, consistia no eminente desejo de vingança dos inimigos através das guerras e, assim, honrar as memórias dos seus antepassados mortos.

O padre João Daniel (2004), ao se referir aos costumes e notícias gerais dos índios do rio Amazonas, observou que dentre as tradições culturais que mais se conservavam estavam “das suas guerras e batalhas que têm tido com os seus inimigos e nações contrárias”. De tempo em tempo, “se põem a pregá-las e contá-las aos mais, ou entre si, quais pregadores nos púlpitos, especialmente quando se querem animar para alguma nova batalha” (p. 269). Um importante fator que resultava nas guerras nativas eram os raptos de mulheres e crianças das nações inimigas. Isto poderia ser uma estratégia adotada por um povo indígena para assaltar seus inimigos. Os indígenas quando percorriam os caminhos fluviais com suas canoas, corriqueiramente se deparavam com as nações inimigas. Por vezes, estes encontros repentinos deixavam mulheres e crianças mais vulneráveis às investidas inimigas. Assim, “não podem fugir, e não só ficam prisioneiros, mas ordinariamente pagam o pato, porque ficam objeto de ira e vingança do inimigo”. De forma ordinária, o padre Daniel chama atenção para a astúcia e predileção das nações pelo sequestro de mulheres, “porque em toda parte há Helenas formosas, que com o fogo da concupiscência acendem o da guerra, e não satisfeitos com as das suas povoações querem roubar as dos seus contrários” (pp. 318-319).

A poligamia é também outro aspecto fundamental para compreendermos como as sociedades indígenas se estruturavam. Embora a poligamia seja retratada como um dos símbolos socioculturais das populações indígenas, faz-se necessário matizar sua excessiva associação com as questões bélicas. Ao contrário disso, Eduardo Viveiros de Castro, analisando as sociedades Tupinambás, compreende as práticas poligâmicas dentro de uma lógica da “brideservice societies” (sociedade de noivas), onde “o laço entre poligamia e proficiência bélica é mais ideológico que objetivo, nesse tipo de sociedade”. Para o autor, “não se pode nem se quer ignorar as inúmeras informações que sublinham o alto valor atribuído à proeza guerreira, a onipresença do tema da vingança, a natureza iniciatória do homicídio, e as conexões entre guerra e casamento”. Mas, complementa Viveiros, “rotular os Tupinambá de extremamente belicosos, seria muito difícil considerá-los particularmente violentos”.

Em muitas sociedades indígenas do rio Amazonas, a poligamia resultou em constantes crimes contra as mulheres indígenas. João Daniel (2004) observou que um dos “vícios” destas populações era “o costume ou lei de alguns sobre a castidade conjugal, castigando com pena de morte o crime de adultério” (p. 284). No entanto, as penalidades eram impostas estritamente para as mulheres. Segundo Daniel, as penalidades eram “ainda mais agravante que de modo ordinário os mais zelosos (maridos) das próprias esposas são os mais mal procedidos” (p. 285). Em contraponto a poligamia, chamou a atenção do missionário o fato das lideranças de algumas nações indígenas serem cautelosas quanto a castidade das filhas até o casamento. Todavia, o contraste entre poligamia e castidade resultava em certas aversões dos pretensos maridos para aquelas mulheres indígenas. Isto porque os homens repudiavam “a mulher ao achá-la virgem, e intacta: porque, diz o marido, é tal, que ninguém a quis, e assim também eu a não quero. E as mesmas tem como por desdouro seu o não ser buscadas” (p. 285).

Este breve contexto nos possibilita compreender aspectos culturais bem pontuais que tangenciaram as relações das sociedades nativas no período pré-colonial. Para inserirem nas diversas zonas geográficas da Amazônia, os europeus, antes de tudo, tiveram que conhecer a estrutura e a lógica de funcionamento das sociedades indígenas. Décio Guzmán (1997) afere que o significativo comércio existente entre as diversas sociedades indígenas e a escravidão advinda das guerras, “constituía densas redes políticas formadas de alianças mantidas com o comércio e guerras que, de modo algum, escaparam à atenção vigilantes das cinco potências europeias presentes no grande vale que ligava o rio Amazonas ao litoral Atlântico das Guianas”. De tal modo que “holandeses, ingleses, franceses, espanhóis e portugueses estavam embrenhados no emaranhado das relações intertribais de toda a zona de fronteira do território português, na parte setentrional da colônia” (p. 23).

Quanto aos domínios lusitanos, no último quartel do século XVII, o império português passava por um processo de (re)estruturação em escala global, onde houve uma maior centralização dos interesses metropolitanos nas conquistas americanas. O monarca D. Pedro II adotou medidas políticas e econômicas visando atribuir um maior dinamismo para o Estado do Maranhão e Grão-Pará com as explorações dos seus sertões (Arenz e Mattos, 2015). Neste contexto, nos vetores convergentes ao rio Amazonas, o desenvolvimento da atividade extrativista tendo como carro chefe o cacau foi uma das soluções encontrada pela coroa portuguesa para inserir a região dentro da economia global. Para isso, houve fortes dependências dos saberes venatórios e da mão de obra nativa. Segundo Rafael Chambouleyron e Karl Arenz (2017), “os produtos florestais (incluindo o cacau), bem como o trabalho compulsório indígena, desempenharam um papel crucial na abertura de novos territórios para os portugueses”. Concluem, “ambos faziam parte de uma sociedade centrífuga, que começou a se expandir no final do séc. XVII, e especialmente durante as primeiras décadas do século XVIII” (p. 4-5).

Nessa conjuntura, o desenvolvimento da atividade missionária foi um elemento trivial para o estabelecimento de alianças entre indígenas e europeus, pois, antes de tudo, a colonização era um ato legitimado pela expansão religiosa que visava a salvação dos nativos dos “ritos gentílicos” através de suas conversões em cristãos, tornando-se vassalos de Deus e aptos para os serviços dos reis. Assim, a formação dos índios cristãos foi uma das principais estratégias utilizada para inserir os nativos na sociedade colonial que se encontrava em vias de constituição. Todavia, o processo de cristianização não ocorreu de forma impositiva e unilateral, mas, sim, por um processo de intermediações culturais.[6] Isto porque, os indígenas também tinham suas percepções cosmológicas sobre os códigos da evangelização e seus interesses políticos para construírem as alianças fundadas no cristianismo (Montero, 2006). Segundo Almir Diniz Carvalho Júnior (2005), as populações indígenas eram cientes do “jogo de forças políticas, fruto do enfrentamento entre portugueses, outras nações europeias e entre os grupos políticos internos”. Logo, “o conhecimento dos códigos do invasor dava-lhes vantagem neste jogo. O novo panorama político e social no qual iam aos poucos se inserindo obrigava-os a uma apropriação dos códigos e do modus vivendi do mundo cristão e europeu”. Assim, “formas tradicionais alimentadas por suas cosmologias entravam em embate com o novo universo simbólico e político que deveriam adotar” (p. 55).

Em vista da necessidade da mão de obra indígena, nos anos seguintes a 1680, houve uma transformação na experiência do mundo do trabalho com a implantação dos dispositivos jurídicos e o estabelecimento da Junta das Missões (1681). Em um primeiro momento, tendeu-se a normatizar o trabalho forro e assalariado dos indígenas que viviam nos aldeamentos com a Lei de Liberdade dos Índios (1680) e o Regimento das Missões (1686). Nesse momento, as ordens religiosas eram as reguladoras da concessão dos índios forros aos moradores que dependiam de trabalhadores para os seus negócios. Todavia, com a erupção da Revolta de Beckman (1684), cujo um dos principais motivos era o monopólio jesuítico sobre o governo dos índios, a coroa portuguesa, em 1688, passou a flexibilizar as legislações indigenistas com o restabelecimento das práticas dos resgates e dos descimentos privados (Dias e Bombardi, 2016). A partir de então, a Junta das Missões, sob os desígnios de propagar a fé através da missionação, foi o principal órgão que efetivou as expansões das rotas transamazônicas de indígenas através das deliberações das expedições de resgates, descimentos e guerras justas, que arregimentaram os nativos em diversas zonas escravistas do rio Amazonas (Ferreira, 2021).

A tutela missionária e o cotidiano nos aldeamentos

Nos aldeamentos, junto dos missionários, aos indígenas foi garantido o tempo para sua evangelização, para construir famílias, para trabalhar dentro de um enquadramento legal bem definido pela repartição anual. Havia também os direitos dos missionários quanto à exclusividade de exercer a administração espiritual e temporal sobre os índios aldeados. Com isto, buscava-se evitar as infrações da lei e se precaver contra supostos atos ilegais e ilícitos praticados pelos moradores das vilas. Estes, desde o início da ocupação europeia na Amazônia, se constituíram em um grupo heterogêneo e estiveram adeptos às dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais.[7] Segundo Karl Arenz (2007), os moradores, para se adaptarem ao cotidiano amazônico, logo adotaram técnicas e costumes dos nativos. “De fato, a falta de mulheres brancas implicava uma presença constante de homens e mulheres indígenas nas casas dos colonos; uma presença supostamente prestadora de serviços cotidianos, mas que logo se transformou em “escola” de transmissão de saberes indígenas aos Brancos” (p. 36).

Entretanto, por muitas vezes, os missionários mantinham sua postura incisiva quanto às relações entre indígenas e moradores, principalmente, sobre a concessão e repartição das mulheres. Isto porque eram constantemente solicitadas para exercerem o ofício de enfermeiras ou para os serviços domésticos, tal como amas de leite. Mas acabavam estabelecendo relações de afetividades, como a sexualidade, com os requisitantes (Arenz, 2007, p. 62). Desta feita, Arenz aponta que a proteção das mulheres e meninas indígenas, sobretudo, contra as ações dos soldados, se constituiu como um dos elementos-chave para manutenção da “tolerância autônoma” que tecia as complexas relações entre os índios e missionários nos aldeamentos.

Ainda que houvesse a aversão dos missionários, o poder metropolitano não hesitou em normatizar a concessão das mulheres indígenas para os serviços domésticos. Isto porque, no capítulo 21 do Regimento das Missões, embora fosse restrito a repartição dos índios que fossem menores de treze anos e de algumas mulheres, “são necessárias aos moradores algumas Índias, que se chamam farinheiras, e também necessitam os mesmos moradores de Índias para lhe criarem seus filhos”. Para tanto, os Reitores dos Colégios e os Prelados das Missões tinham como incumbência conceder “as tais Índias Farinheiras, e de leite a aquelas pessoas que as houverem de tratar bem no espiritual, e temporal”. Por serem índias forras, cabia aos religiosos arbitrar os salários “que devem vencer ao tempo de serviço, para que consigam o justo interesse dele, e não possam exceder o dito tempo, sem que as tais pessoas recorram aos ditos Padres, a quem lhes pedir”.[8]

Não obstante a regulamentação real, os missionários continuavam a agir em contrariedade à concessão das índias para os serviços domésticos. Algumas vezes, os moradores viram-se obrigados a enviar requerimentos à corte para que houvesse a entrega das índias. Este foi o caso de Joseph Mogo de Bulhões, que necessitava de uma índia para ser ama de leite dos seus filhos, supostamente gêmeos, que tinham acabado de nascer. Em 1732, na esfera local, o requerente, ciente que a mãe não tinha leite suficiente sequer para o provimento de uma das crianças, solicitou uma índia ao Padre Provincial da Companhia de Jesus, José Vidigal. Prontamente o padre lhe socorreu e “com efeito lhe despachou sua petição mandando-lhe dar uma índia leiteira” da aldeia de Mortigura. Todavia, indo Bulhões ao aldeamento, o missionário Luiz Maria colocou impedimentos para entrega da índia sob a alegação de que “não havia, mas sim só raparigas de dezesseis e dezoito anos, e que estas se não podiam dar por correrem risco”. O risco ao qual o padre se referia eram os concubinatos e as possíveis violências decorrentes deles que as mulheres indígenas sofriam nos espaços domésticos. Diante do exposto, Bulhões replicou ao missionário dizendo-o que o concubinato nada mais era do que uma “desculpa sem fundamento, pois na sua própria aldeia tem as ocasiões mais prontas para semelhantes actos, por estarem [as índias] livres e desimpedidas para todas as vezes”. Ademais, a entrega da índia era pela necessidade que os seus filhos tinham da “falta de alimentos natural” e, assim, vivendo em sua casa, a dita índia estaria envolvida com a criação dos recém-nascidos e “nunca lhes sobre muito tempo para as ocasiões libidinosas”. No dia 18 de novembro de 1732, o despacho real foi favorável ao requerente, ficando determinando que “se servirá o dito Reverendo Missionário mandar dar a mulher de leite pedida pelo suplicante por me constar que a sua casa é honrada por qualquer princípio que se imagine”.[9]

Além das típicas contendas entre missionários e moradores, outra possível motivação para o padre recusar a entrega da índia solicitada seria a manutenção dos acordos firmados com as lideranças indígenas para proteção das mulheres nos aldeamentos. Associada a essa proteção, esteve a preservação de um dos traços culturais da cosmologia indígena, o matrimônio poligâmico, porém, ressignificado sob os desígnios dos preceitos cristãos. A poligamia, considerado crime de ordem moral pela igreja, foi um aspecto sensível e sinuoso na conversão dos indígenas pelos missionários, principalmente, por ser uma prática em que os nativos tinham fortes dependências. Os religiosos tiveram a difícil incumbência de convencer os chefes indígenas da importância de abdicarem da poligamia para levarem uma vida monogâmica sobre os preceitos dos dogmas cristãos. Todavia, isto não ocorreu de forma impositiva, mas, sim, pelo convencimento das práticas evangelizadoras. Para Arenz (2014), a solução encontrada pelos missionários foi que as chefias pudessem escolher “a favorita” entre suas concubinas, onde as demais poderiam contrair matrimônio com outros índios dos aldeamentos. Assim, aponta o autor, “ao invés de exigir o cumprimento incondicional de um preceito dogmático, o discurso catequético projeta uma solução pragmática com consequências simbólicas (casamento cristão) e sociais (famílias nucleares) sem, aparentemente, maiores rupturas”) (p. 82).

Na década de 1680, com o processo de reformulação da repartição dos índios forros, ficou determinado que houvesse a reintegração das mulheres indígenas que estavam vivendo nos ambientes domésticos aos seus aldeamentos de origem. Supostamente, nas vilas, essas mulheres eram concubinas dos senhores. Ao retornarem para as aldeias passaram a ser consideradas como adúlteras e sofriam práticas de violências pelos seus maridos indígenas, chegando ao ponto de matá-las. No dia 7 de outubro de 1688, o ex-governador do Estado do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, enviou uma carta ao rei D. Pedro II visando remediar estes crimes. O remetente era enfático sobre as inconveniências “que se lhe oferecem para poder dar cumprimento ao capítulo do nosso regimento que dispõe que ele entregue as índias adúlteras ao superior das missões para que as restitua aos seus maridos”. Isto porque, estas restituições resultaram em quatro mortes de mulheres indígenas. Sendo assim, o poder real deveria intervir nas restituições ordenando aos missionários certificar se os maridos tinham a pretensão e a capacidade de receber as adúlteras “sem terem aquela moral certeza de que por aquela causa não ande ficar regulares”. Caso fosse reconhecida a capacidade dos maridos, “que as entregarem”. Mas, se houvesse a recusa, “era de se lhes considerar perigo nas vidas expressas o mesmo capítulo que se ordena e seu castigo e segurança pela Junta das Missões”. Em vista disso, caberia também ao ouvidor geral prover as justiças referente ao risco das vidas das índias adúlteras.[10]

No cotidiano dos aldeamentos, os crimes cometidos contra as mulheres indígenas tiveram também a participação dos próprios missionários. Na carta de 15 de fevereiro de 1710, o governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Cristóvão da Costa Freire informava ao rei sobre um crime cometido a três índias da Aldeia de Arapijó. O governador tomou conhecimento desta situação a partir do requerimento do padre Inácio Roiz de Távora, Visitador Geral do Rio Amazonas, para “mandar examinar que pessoa havia posto o fogo” nas sobreditas indígenas, “de cujo castigo estavam duas em perigo de vida”. O principal suspeito do crime era o Padre Fr. João de Marvão, religioso da Piedade que exercia a sua atividade missionária naquele aldeamento. Na missiva, não são apresentadas as razões pelas quais o missionário cometeu este crime. Entretanto, o Conselho Ultramarino incumbiu ao Governador do Maranhão de investigar este “tão escandaloso e abominável crime”, tendo em vista “o dano que dela se segue ao serviço de Deus, pois nenhuma Fé terão aqueles neófitos e ainda os que não são na doutrina de semelhantes missionários a quem vem de obrar semelhantes excessos”. Prontamente, foi ordenado ao Governador que “diga ao prelado deste religião para logo o mande tirar da missão”, pois ao invés da edificação, sua conduta estava arruinando e destruindo a fé plantada. Por fim, uma vez certificada a veracidade do crime, caberia ao Governador enviar o autor do delito para o reino onde todas as providências seriam tomadas.[11]

As práticas de mobilidades coercitivas nos sertões amazônicos

As três principais formas de arregimentação da mão de obra, forra ou cativa, dos povos indígenas ocorriam através das tropas de descimentos, resgates e guerras justas. Mas, além das demandas dos colonizadores, as tramas das negociações e intermediações destas tropas com os indígenas podem ser compreendidas a partir do prisma da native autonomy. Segundo Heather Roller (2021), ao mesmo tempo que os indígenas não eram “povos inatos ou instintivamente resistentes” eles também não foram vítimas inocentes e inconscientes dos perigos que corriam. “De fato, os grupos indígenas adquiriram muitas informações sobre o mundo colonial e os riscos e possibilidades que ele oferecia”. Complementa a autora, “muitos procuraram conhecer partes desse mundo – muitas vezes à distância, mas às vezes de perto – por meio de reconhecimento, invasões ou encontros violentos e visitas ao comércio ou trabalho” (p. 24).

Os descimentos foram uma modalidade de arregimentação da mão de obra nativa que teve a persuasão como seu principal alicerce. Nesta prática, através de um religioso, os indígenas eram convencidos a deixar suas povoações para, literalmente, descerem os rios nas canoas em direção a algum aldeamento missionário. Tendo como base o “diálogo” e perante a necessidade do estabelecimento de contato, aliança e de braços para o trabalho, o poder metropolitano tinha grande afeição pelos descimentos. Todavia, a presença de um missionário era necessária para conferir legitimidade a esta prática. Isto porque os missionários tinham conhecimento das línguas indígenas, fator que viabilizava a comunicação entre os grupos, além dos religiosos serem responsáveis por levarem os ensinamentos cristãos a esses “pagãos”. É crucial apontar que a garantia da liberdade era o principal aspecto que poderia celebrar os acordos e assegurar os descimentos. Uma vez descidos, os indígenas eram batizados, submetidos ao processo de evangelização nos aldeamentos e tinham seu status jurídico definido como forro. Esta condição significava também uma distinção entre os índios cristãos dos bárbaros, gentios e infiéis. Viver como forro nos aldeamentos implicava no acesso à terra, à proteção, ao pagamento de salários, entre outros direitos (Almeida, 2013).

Embora a maioria das negociações entre as lideranças indígenas e os colonos culminaram nos descimentos coletivos, as mulheres também tinham sua native autonomy para decidirem sobre seus próprios destinos e, assim, poderiam optar pela mobilidade voluntária dos sertões para as vilas amazônicas. Este foi o caso da índia Inês que, possivelmente, no alvorecer do século XVIII, desceu por vontade própria da aldeia de “Yuruça Mirim”, missões dos padres carmelitas, para a vila de Tapuitapera na Capitania do Maranhão.[12] Naquele aldeamento, Inês foi casada por muito tempo e, após a morte do seu marido, ela se deslocou para a missão de Santana de Paratari. Esta era situada em uma região de várzea e servia como ancoradouro para as canoas que estavam em trânsito para a coleta das drogas e para a arregimentação da mão de obra nativa. Certo dia, Thomaz Marques, “que naquele tempo se achava naqueles sertões fazendo cacau”, ao ancorar naquela missão se deparou com a índia Inês que logo manifestou seu interesse em deixar aquela localidade. Juntamente com a canoa de Thomaz Marques vinha a canoa dos missionários liderada pelo Fr. Timotheo de Santa Bárbara. Assim, o colono chamou o missionário para que pudesse averiguar as reais motivações que levariam Inês deixar o aldeamento. Ao ser indagada, a índia prontamente respondeu ao missionário que “ainda que ali pertencia, não queria ali estar”, principalmente, por estar “desenganada pelas tiranas mortes que viu fazer ao Irmão Fr. Manoel de Santa Tereza, ao Principal Manutâ” e, possivelmente, ao seu marido. Tendo ciência que aquela expedição iria em direção ao Pará, a índia “queria que a trouxesse”. Para tanto, o Fr. Manoel buscou se informar com o índio principal e os demais índios aldeados sobre a veracidade dos fatos relatados por Inês. Todos que foram ouvidos “disseram que a conhecia por ter ali sido casada muitos anos e que por morte de seu marido dali se fora para a missão de Santa Anna de Paratari”.[13]

Antes que a expedição partisse, Inês fez um último pedido ao Fr. Timotheo: “que lhe fosse buscar um seu irmão pequeno chamado Pedro que um secular tinha apanhado da Missão de Paratari onde ela o tinha deixado e de presente se achava na feitoria do dito secular”. Sem muito hesitar, o missionário atendeu ao pedido da índia e foi buscar seu irmão e lhe entregou. Por fim, foi feito um último ajuste. Desta vez, tratava-se de uma demanda legislativa que proibia que os missionários trouxessem peças nas suas canoas e, assim, Inês e Pedro vieram na embarcação de Thomaz Marques.[14]

No decorrer da sua viagem pelos sertões amazônicos, a expedição ancorou em um aldeamento localizado no rio Japurá que era liderado pelo índio Marauari. Ao que parece, tratava-se de uma aldeia que ainda não tinha se convertido ao cristianismo. Para tanto, o próprio Marauari manifestou ao Fr. Timotheo “que nas suas mesmas terras queria que lhe fizesse missão”. O pedido da liderança foi prontamente aceito pelo padre que logo “adoçou semente para onde levantar cruz dizer missa uma vez e passar-lhe carta de missionados”. Como não podia estender sua estadia na nova missão, a expedição logo partiria. Mas, no último instante, o índio Marauari entregou publicamente uma menina de quatro ou cinco anos ao missionário, dizendo que a “entregava por lhe parecer que tinha sangue de branco”, e, assim, a mandava “ensinar para viver nas terras dos brancos”. Sem saber a real procedência daquela criança que, inclusive, poderia ser uma prisioneira advinda de uma guerra nativa, o padre a “batizou” pelo nome de Germana. Ao se dirigir às canoas da expedição, Fr. Manoel deliberadamente entregou Germana a Inês e a designou como sua “mãe postiça”.[15]

Desde então, Inês passou a liderar uma família que foi formada em contrariedade aos desígnios cristãos e que iria de encontro ao próprio patriarcado da sociedade colonial. De fato, esta nova família que foi formada pelas circunstâncias das dinâmicas dos contatos entre os colonizadores foi fruto principalmente da autonomy native desempenhada, de um lado, por Inês que manifestou seu interesse em descer para vilas coloniais junto com seu irmão Pedro, e, por outro, pela liderança indígena Marauri que entregou a índia Germana para o Fr. Timotheo. Ao percorrerem grande parte do curso transamazônico, Inês Pedro e Germana passaram a viver na vila de Tapuitapera – Maranhão. Pelo fato de suas mobilidades terem sido voluntárias, os três indígenas tiveram seu status jurídico definido como forro e, consequentemente, isentos de todo o cativeiro. Sendo assim, para prover suas vidas passavam a negociar seus salários com quem lhes interessava.

No entanto, na década de 1720, iniciou-se uma contenda judicial sobre a legitimidade da liberdade daquela família. Inês, Pedro e Germana, através das suas articulações nas esferas administrativas locais, enviaram um requerimento ao rei D. João V a fim do soberano confirmar suas liberdades. Sendo assim, o rei expediu um parecer para que fosse averiguado a situação dos requerentes. O padre Fr. Timotheo foi intimado a relatar sobre sua possível participação na ilicitude do possível cativeiro daqueles indígenas. Sendo assim, em 6 de junho de 1726 enviou uma missiva a D. João V afirmando que conhecia “o índio Pedro também as índias Germanas e Ignes, os quais todos sei bem diretamente que são todos forros, livres e isentos de todo o cativeiro”. O missionário reconhecia que foi o responsável por atestar a legitimidade daqueles descimentos, mas, que os tinham feito em conformidade com as leis vigentes. Tanto que ao se referir a índia Inês apontou que ela “veio não na canoa da missão por ser proibido aos missionários trazerem peças nas suas canoas, mas em companhia de Thomas Marques e na mesma monção em que vim, trazendo consigo seu irmão Pedro”. Após alguns anos de litígio, em 20 de junho de 1729, D. João V incumbiu ao Governador do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire, para conservar os requerentes em suas liberdades. Esta ordem foi executada e confirmada na carta do próprio governador no dia 13 de maio de 1730.[16]

No que tange aos resgates, estes foram uma prática de arregimentação da mão de obra cativa através da comercialização dos prisioneiros das guerras nativas entre os colonos e as lideranças indígenas. Cabe enfatizar que estes prisioneiros não eram escravos e suas inserções dentro das sociedades indígenas estavam condicionadas aos elementos políticos e socioculturais que os nativos tinham fortes dependências. Nos estudos sobre a Amazônia, os resgates têm sido um dos principais objetos de análises referentes às práticas de arregimentação da mão de obra nativa. A vasta historiografia, além dos aspectos legislativos relativos ao mundo do trabalho, já elucidou como a referida prática esteve diretamente relacionadas às expansões das fronteiras, ao desenvolvimento econômico das drogas dos sertões, às epidemias, ao desencadeamento de guerras, às questões demográficas e, principalmente, aos conflitos entre os poderes coloniais para a organização das tropas de resgates.

Para o período em análise, no alvará de 28 de abril de 1688, D. Pedro II estabeleceu as práticas dos resgates dos índios “que achares captivos em guerras de outros Índios ou sejam presos a corda para os comerem ou cativos para os venderem ou quaisquer nacoes”. O fato é que, com ou sem a presença das tropas de resgates, os indígenas não deixavam de fazer guerras com seus inimigos, de manter suas tradições culturais, além de negociarem com as outras nações europeias que tinham suas conquistas na Amazônia. Sendo assim, o rei passava a admitir as tropas de resgates. Para tanto, a Fazenda Real passaria a financiar estas expedições, depositando “dois mil cruzados para a Cidade de Belém do Pará, e mil cruzados para a São Luiz do Maranhão”. Os jesuítas faziam parte das expedições, sendo “obrigados a fazer resgates não só nas Missões ordinárias de suas residências, mas para este efeito entraram todos os anos em diversos tempos pelos sertões”.[17] Todavia, os jesuítas eram reticentes ao estabelecimento das expedições e as próprias autoridades cientes dos custos não as organizavam. Seja como for, os moradores agiram deliberadamente indo aos sertões traficar cativos diretamente com as lideranças indígenas.

No dia 4 de setembro de 1692, Miguel da Roza Pimentel, após exercer a função de ouvidor-geral no Maranhão, apresentou um documento a coroa portuguesa intitulado “Informação do Estado do Maranhão” em que apresentava suas percepções sobre as transformações que vinham ocorrendo na região após a implantação das medidas metropolitanas. O ex-ouvidor relatava sobre as práticas coercitivas dos moradores do Maranhão e Pará que iam “todos os anos as drogas trinta quarenta canoas com outros tantos e mais brancos”. Nas palavras do relator, após cruzarem a fortaleza do Gurupá, estes sujeitos com suas respectivas canoas “se constituem Rei do Sertão”. Ao ancorarem nas várzeas se direcionavam às aldeias chamando “ao principal intimidam-o, para que lhe tragam à sua presença todos os índios, e índias, tomão os que lhes parecem levam-os consigo”. Além do mais, violentavam as mulheres indígenas “e as levam para o mato, para estas sensuallidades”. Enfim, afirma Pimentel, “usam de violências e tiranias e fazem pouco escrúpulo de matar só a fim de que por aquele meio lhe deem as drogas”. Mas, os indígenas não ficavam a mercê das coerções e violências, pois “não poderem suportar o rigor” destas práticas, acabavam por matar os moradores. Em vista deste cenário de coerções, violências e transgressões das leis, a coroa portuguesa proibiu os resgates em 1699, mas, no mesmo ano a decisão foi revogada.

Quanto aos percentuais demográficos por gênero dos índios resgatados e descidos no Estado do Maranhão e Grão-Pará, Rafael Ale Rocha (2005) sinaliza que, desde a transição do século XVII para o XVIII, as práticas de aquisição de indígenas tiveram como uma de suas tendências a superioridade do contingente feminino em relação ao masculino, ao menos no que se refere aos índios que foram distribuídos no Maranhão. Segundo o autor, esse aspecto “não se restringe apenas aos resgates (e distribuições) ocorridos durante o período estudado (1689-1714), também em épocas posteriores, mais especificamente entre os anos de 1745 e 1746, e ainda no momento da arrecadação (ou seja, nos arraiais) tal característica é uma realidade” (p. 43).

Por fim, as guerras justas foram um mecanismo aplicado para levar a doutrina cristã aos povos “bárbaros” que rejeitavam a conversão ao cristianismo, impossibilitavam a propagação da fé, empreendiam constantes ações de hostilidades contra os vassalos e aliados dos portugueses e contra aqueles que rompiam os pactos de vassalagem com a coroa portuguesa. Todavia, cabe apontar que o fato de a guerra justa ser uma prática legítima, muitos colonos tinham um latente interesse em realizá-las contra os índios no intuito de arregimentar a mão de obra cativa. Desta feita, o poder metropolitano, visando impossibilitar conflitos sem concisas justificativas, determinou por meio de leis que as guerras só seriam realizadas com o seu consentimento. Na Amazônia portuguesa, tal como os resgates, o alvará de 28 de abril de 1688 normatizou as práticas destas guerras.

No dito alvará ficou especificado que as guerras pudessem ocorrer de forma defensiva e ofensiva. Por um lado, uma guerra defensiva “se entenderá somente no ato da invasão que os Índios inimigos e infiéis fizerem nas aldeias e terras do Estado do Maranhão”, sobretudo, “quando os ditos Índios impedirem com mão armada e força de armas os Missionários as entradas dos Sertões e a doutrina do santo evangelho”, além das suas hostilidades. Por outro lado, uma guerra ofensiva seria realizada quando índios inimigos invadissem as áreas já conquistadas pelos portugueses e tivessem cometido “hostilidades graves e notórias e não deram satisfação condigna dela[s], sujeitando-se receber aquele castigo que for conveniente ao decoro de minhas armas, e necessário para a conservação do dito Estado”.[18]

As guerras justas foram constantemente praticadas ilicitamente e resultou no aprisionamento injustos de mulheres e crianças indígenas que foram comercializadas nas vilas amazônicas. Este foi o caso da índia Margarida e seus filhos que estavam submetidos aos injustos cativeiros por Maria Pereira. No dia 18 de dezembro de 1751, na audiência do Tribunal da Junta das Missões houve a deliberação do auto de liberdade proposto pela instância do Juízo das Liberdades. Margarida e seus filhos alegavam que não foram submetidos ao exame do cativeiro após uma guerra ofensiva, supostamente injusta, contra a nação dos Aruans, a qual faziam parte.[19]

Após o caso se estender por seis meses, o tribunal expediu seu parecer no dia 17 de junho de 1752. Pelo que se evidencia, “o fundamento jurídico pelo qual se possa dizer e menos sustentar” a legitimidade da guerra contra os Aruans foi a principal questão analisada pelos deputados da Junta das Missões para assentarem sobre a referida causa. Segundo a apreciação feita, a guerra ofensiva contra os Aruans era de natureza injusta, uma vez que o súdito que a realizou não tinha autoridade legal do monarca e tampouco apresentava fundamentos suficientes e credíveis para justificar a execução da campanha.

Ao que parece, o motivo para guerrear os índios Aruans era o assassinato de alguns religiosos, no entanto, não era legitimo que se “procedesse [guerra] contra uma nacao inteira para toda ser castigada por um crime que podia ser cometido por duas ou quatro pessoas dela devendo somente proceder contra os homicidas”. Além disso, a caracterização da ilegalidade do referido conflito endossou-se pelo fato de os Aruans supostamente serem índios aliados dos portugueses, uma vez que já viviam sobre o governo espiritual dos missionários e, por conseguinte, “metidos no grêmio da Igreja”.[20]

Somado a caracterização do contexto da guerra ofensiva, que resultou na escravização de índios Aruans, dentre os quais a índia Margarida e seus filhos, os deputados da Junta das Missões levaram em consideração que o próprio tribunal não havia julgado como escravos os prisioneiros oriundos da dita guerra. Outro aspecto preponderante para a deliberação desse processo foi à falta de registro oficial sobre a natureza da escravidão dos índios posterior ao conflito.

Considerações finais

O desenvolvimento das rotas transamazônicas de escravos teve como uma de suas principais características as práticas coercitivas e atos de violências – morais e físicos – contra as mulheres indígenas. Deve-se apontar que estas práticas ocorriam anteriormente à colonização europeia na região, pois as mulheres nativas eram fundamentais para preservação de elementos sociossimbólicos que as sociedades indígenas tinham fortes dependências, tais como: vingança, guerras, matrimônios e poligamia. Com a gradativa inserção dos colonos europeus na região, as próprias lideranças indígenas, gozando de sua autonomia, utilizaram as mulheres dos seus próprios grupos para o estabelecimento de alianças e também para a venda de indígenas que poderiam ser transformados em escravos. A coroa portuguesa perante a necessidade de atrelar as populações indígenas à empreitada colonial instituiu um conjunto de leis visando normatizar e sistematizar as práticas de arregimentação da mão de obra, forra ou cativa, dos indígenas na Amazônia. No entanto, colonos, autoridades administrativas, e, até mesmo, os missionários, que tanto defendiam a liberdade dos índios, infringiram as leis ao contrabandear os nativos, principalmente, as mulheres, como também praticavam diversos crimes contra elas.

Nesse cenário, o Tribunal da Junta das Missões, teve a difícil incumbência de aplicar a legislação referente às injustiças dos cativeiros dos indígenas. Observa-se que a maior parte dos casos deliberados pelo órgão envolveram mulheres nativas que foram aprisionadas nos sertões amazônicos ou que foram coagidas, direta ou indiretamente, a se deslocarem das suas aldeias de origem para as vilas coloniais. Todavia, muito além da letra da lei, a aplicação da justiça referente ao cativeiro das mulheres nativas esteve condicionada a diversas práticas políticas e sociais, como o corporativismo e o clientelismo que envolveram os deputados do tribunal e os senhores que possuíam injustamente as mulheres nativas. Embora estas mulheres estivessem submetidas às violências do cativeiro, elas também foram protagonistas das suas trajetórias ao fazerem uso dos mecanismos do colonizador a seu favor para conquistarem suas liberdades. Mas, deve-se ressaltar que os sentidos e significados das liberdades não foram únicos, pois estava diretamente relacionado aos anseios de cada pleiteante. Para a índia Antônia, ser livre significava a possibilidade de se livrar dos maus-tratos do cativeiro infligido pelo seu senhor. Por sua vez, no caso da índia Inês junto com sua filha Germana e seu irmão Pedro, o sentido da liberdade estava condicionado ao reconhecimento da sua condição de forro, pois haviam descido como livres para a capitania do Maranhão. Já para a índia Margarida, que lutou pela sua liberdade e dos seus filhos, esta poderia ter sido uma estratégia para manter a família reunida em um mesmo local. Independente de qual fosse a argumentação e o sentido das liberdades, ser livre não implicava a ausência de trabalho compulsório, mas, possibilitava às mulheres nativas negociarem com quem tivesse interesse de dispor da sua mão de obra e que lhes fossem assegurados seus direitos e pagamento dos seus salários.

Referências

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  2. APEM. Livro de Assentos da Junta das Missões. Fl. 4v.-5.
  3. Ver Ferreira (2021); Mello (2009).
  4. APEM. Livro de Assentos da Junta das Missões. Fl. 4v-5.
  5. O acesso da índia Antônia às esferas da justiça colonial não foi excepcionalidade. Desde a década de 1980, a historiografia sobre a escravidão indígena na Amazônia demonstra como os indígenas, sobretudo, as mulheres nativas empreenderam significativas agências nas esferas administrativa na busca dos seus direitos, principalmente, suas liberdades. Ver Sweet (1987, p. 198-214); Mello (2005, p. 1-16); Ferreira, (2021); Prado (2019).
  6. Sobre o conceito de intermediação cultural, ver Montero (2006).
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  8. Biblioteca Pública de Évora. Cód. CXV/2-12. Regimento & Leys das Missoens do Estado do Maranham, & Pará. Lisboa: Oficina de Antonio Manescal, 1724. Fls. 2-3 e 11-12.
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  10. Andrade, Gomes Freira (7 de outubro de 1688). Carta para o rei D. Pedro II, sobre a carta do ouvidor-geral do Estado do Maranhão, relativa aos inconvenientes na execução da norma do regimento que o obriga a entregar as índias adúlteras ao superior das Missões, para que este as restitua aos seus maridos. AHU. Avulsos, Pará, D. 273.
  11. Freire, Cristóvao da Costa (15 de fevereiro de 1710). Carta para o rei D. João V, sobre um sumário das testemunhas que acusam o missionário da aldeia de Arãjipô, padre fr. João de Marvão, de ter incendiado três índias da referida aldeia. AHU. Avulsos Pará, D. 450.
  12. Anterior a 18 de janeiro de 1727. Despacho do Conselho Ultramarino para o procurador da Coroa, em que informa da resposta à carta do governador do Maranhão, sobre a conservação da liberdade de Pedro, Inês e Germana, naturais dos sertões do rio das Amazonas e moradores na vila de Santo António de Alcântara. AHU, Avulsos Maranhão, D. 1551.
  13. AHU. Avulsos, Maranhão, D. 1551.
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  15. AHU. Avulsos, Maranhão, D. 1551.
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  17. Associação da Biblioteca Nacional (ABN). Livro Grosso do Maranhão. Vol. 66, 1948, p. 98.
  18. ABN. Divisão de obras raras e publicações. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66, 1948, p. 98.
  19. APEM. Livro de Assentos da Junta das Missões. Fls. 31-32v.
  20. APEM. Livro de Assentos da Junta das Missões. Fls. 31-32v.


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