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12 O sistema judicial em Pernambuco

Um caso de furto de escravos numa época de transição do oitocentos

Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha

No tempo que antecedeu à vinda da Corte ao Brasil, o padrão normativo imposto pela legislação portuguesa não era aplicado em todos os lugares da América colonizada por Portugal, situação que custou a ser modificada. Alguns desses limites de aplicação da lei se aprofundavam pelo estado de indigência da máquina administrativa, bem como pelo poder dos patriarcados locais e suas redes de clientelismo. Afirma-se, inclusive, que a ordem legal podia ser vista como uma ficção que se prestava muito mais para “instrumentalizar os poderosos”, servindo “como uma extensão de seus exercícios de dominação […]” (Vellasco, 2004, p. 152).

Mesmo construindo um novo arcabouço legal no período imperial, o Estado continuou mostrando-se incapaz de manter-se independente dos interesses privados do patronato. Um dos fortes motivos que contribuiu para a permanência dessa limitação foi a dependência do governo para com os integrantes dessas camadas sociais superiores que, por meio de arranjos e compromissos, viabilizavam a sua autoridade (Vellasco, 2004). Essa situação fica bem clara quando essas mesmas camadas de discurso liberal defendem a permanência da escravidão no país, dando margem à manutenção daquelas duas esferas de aplicação do Direito no Brasil, existentes antes da vigência da Constituição de 1824: o Direito costumeiro e o Direito positivo. O primeiro regia as relações entre os senhores e os escravos, enquanto o segundo servia para regular os embates relacionados aos homens livres e pobres (Cunha, 1987 apud Vellasco, 2004).

Melhor dizendo, até a publicação do Código do Processo Criminal de 1832, ainda atuavam na Justiça os juízes próprios da organização judiciária anterior à Independência. Conviviam os magistrados do sistema de Justiça da colônia com os novos cargos instituídos no período imperial, como o juiz de paz. É de se estranhar um juiz de fora à frente de um processo judicial, no contexto em que vigorava a Constituição de 1824 que determinou reformas para a administração pública, inclusive para o Judiciário. Entretanto, enquanto essas mudanças não eram regulamentadas, a Justiça não podia parar. A Constituição outorgada, no seu artigo 151, criou um Poder Judicial que chamou explicitamente de “independente”, compondo-se de Juízes do crime e do cível, que deveriam aplicar a lei. Também confirmou no Judiciário a figura do Júri, que se pronunciaria sobre os fatos (art. 152 do mesmo Diploma), apostando na criação de códigos brasileiros para normatizar o funcionamento do Poder. A regulamentação aconteceu aos poucos, ao longo das décadas de 1820 a 1830.

Dentro do processo de organização da Justiça, quatro anos depois da outorga da Constituição de 1824, foi publicada a Lei de 22 de setembro de 1828. Essa norma, além de abolir os Tribunais das Mesas do Desembargador do Paço e da Consciência e Ordens, ampliou as funções dos magistrados criminais, dando-lhes o poder de admitir fiança criminal e de dispensar da residência os réus e os acusadores, por legítimo impedimento. Todavia, mesmo depois de extintos, os antigos tribunais continuaram funcionando até a vigência da Lei de 1833, que regulamentou a atuação das Relações.

Para esse momento em que conviveram magistrados do período colonial e alguns dos novos cargos criados após a Constituição de 1824 para a Justiça, apresenta-se neste texto um processo criminal de furto de escravos. Ele foi encaminhado para ser julgado por um juiz de fora, Antônio Joaquim de Mello, já na vigência da nova ordem constitucional do império.

Juiz de fora, juiz de paz, solicitadores e advogados foram profissionais que mpulsionaram o processo criminal autuado na Justiça pernambucana, no dia 7 de agosto de 1830, no Recife. O juiz de fora Antônio Joaquim de Mello procedeu a uma devassa[1] por furto de escravos.[2] O crime de furto, já tipificado no livro V, Título LX (Dos furtos e dos que trazem artifícios para abrir portas) das Ordenações Filipinas, passou a ter vigência a partir de 1831, pelo Código Criminal brasileiro, publicado em dezembro de 1830. Numa sociedade escravocrata, mesmo não existindo tipo penal específico de furto de escravos, é de se compreender que, na prática, fosse evidenciada essa diferenciação, pois o escravo era um bem precioso, principal força de trabalho que a sustentava, tendo a lei como forte aliada no que diz respeito ao controle social, nesse caso, contribuindo diretamente para a manutenção da ordem pública e dos interesses daqueles que estavam com o poder.

O crime de furto de escravos não era incomum na colônia e nem no império e, na situação apresentada, em especial, estavam envolvidas figuras conhecidas da sociedade pernambucana. A começar pelo juiz de fora. Antônio Joaquim de Mello, bem relacionado, já com 21 anos, foi tabelião do judicial e notas e escrivão do cível no Recife, mesmo não tendo a idade mínima de 25 anos exigida pela lei (Blake, 1883). Perdeu o emprego de tabelião pelo seu envolvimento com a revolta de 1817 e foi enviado à Bahia, com outros revolucionários. Depois de anistiado, residiu em Garanhuns-PE até a proclamação da Independência (Ferreira, 2010).

Saliente-se que, devido à sua implicação na Revolução de 1817, ele foi preso, mas por pouco tempo, sendo solto por decreto de indulto. Em Garanhuns, interior de Pernambuco, foi exercer a profissão de advogado. Logo enviuvou e voltou para o Recife no ano da Proclamação da Independência e foi nomeado procurador fiscal da Tesouraria da Fazenda. Imediatamente após, foi eleito vereador da Câmara Municipal do Recife em 1823 e se envolveu na Confederação do Equador, refugiando-se no Brejo da Madre de Deus, desde a derrota do movimento até a anistia de 1825 (Blake, 1883). Foi político, historiador, poeta, crítico e biógrafo. (Ferreira, 2010). Escreveu biografias “de alguns poetas e homens ilustres de Pernambuco”, com destaque para suas obras sobre Frei Caneca e Gervásio Pires.

Com tantos cargos e atribuições, Antônio somente atuou no caso por poucos meses.

Voltando ao processo, a notícia do crime que deu origem à devassa teve pelo menos dois prejudicados diretos, logo identificados. Eles eram comerciantes em Pernambuco e proprietários, cada um deles, de um escravo, ambos encontrados sob a posse de Josefa Maria da Conceição, acusada de ter praticado o delito.

Um dos proprietários dos escravos era Francisco Ribeiro de Brito, dono do escravo Miguel, um dos principais negociantes de escravos de Pernambuco no período imperial, tendo feito pelo menos dez viagens com destino a essa província de 1822 a 1831, desembarcando aproximadamente 2.568 cativos no local (Vergolino, 2012). Tinha negócios em Angola e atuava na praça de Pernambuco junto a outros comerciantes conhecidos e parentes, como Joaquim Ribeiro de Brito.

O outro proprietário de escravo era Luís Gomes Ferreira. Negociante de grosso trato[3] em Pernambuco, auxiliou na organização das forças de cavalaria e infantaria, juntada pelo barão de Beberibe para conter a Setembrizada em 1831, movimento ocorrido no Recife envolvendo militares de baixa patente e outras camadas mais pobres da população. Ele também participou de ação para suprimir a Confederação do Equador, quando cedeu sua embarcação o Novo Paquete do Maranhão voluntariamente para bloquear o Porto do Recife, junto a outras do mesmo tipo, impedindo a saída ou entrada no local, com o objetivo de facilitar a posse de Francisco Paes Barreto, indicado para governar Pernambuco pelo Imperador, contra o eleito Manoel de Carvalho Paes de Andrade e seu grupo (Gomes, 2016).

Ressalte-se que, no contexto do 7 de abril de 1831, Pernambuco foi palco de movimentos contra a monarquia e a tendência centralizadora do governo, como aconteceu em outras províncias. Para combater tais revoltas, o governo usou a força armada e as leis tiveram um papel importante no controle social. Como tantas outras, a Lei de 6 de junho de 1831 foi uma das normas usadas nesse momento de repressão. Ela proibia o ajuntamento noturno de cinco ou mais pessoas nas ruas, exceto se houvesse “um fim justo e reconhecido”, sancionando qualquer reunião “indevida” com pena de um a três meses de prisão, passou a inadmitir fiança aos presos em flagrante e deu atribuições policiais aos magistrados criminais e aos juízes de paz, estes últimos com competência ex officio, ou seja, sem provocação de qualquer pessoa, para a punição dos crimes de polícia dos delitos contra as posturas municipais. Com a norma criavam-se meios para aumentar o controle social, ampliando a estrutura de repressão e fornecendo instrumentos para que houvesse justificativa legal para impor sanções a quem estivesse ameaçando a ordem vigente.

Dando encaminhamento à devassa, o juiz de fora realizou o corpo de delito que, nesse caso, era feito por meio de perguntas. E assim fez o magistrado, junto com um escrivão começou o procedimento para apuração do crime na sua residência, pois era rotina que na casa do juiz os atos processuais fossem realizados. Vê-se que ele exercia atividades de investigação, parte da sua competência policial. Ele buscava, nesse momento, conhecer os agressores, seus auxiliares e concorrentes, a fim de “serem punidos com as penas da lei”, tomando como base o depoimento de testemunhas.

Os escravos Miguel (de Francisco Ribeiro de Brito), José (de Luís Gomes Ferreira), Paulo, de nação Rebolo e o outro José, de nação Congo, os dois últimos de proprietários não identificados, tinham sido recolhidos em uma casa na Rua detrás da Roda,[4] no Recife, em julho de 1830.

Na verdade, tudo começou por acaso. O depositário geral[5] da cidade do Recife, José Ferreira Antunes Villaça, teve furtado de seu depósito um escravo chamado Manoel, colocado sob a sua guarda para ser penhorado pelo mesmo juízo de fora, mas referente a um outro processo, de execução de sentença.[6] O depositário, como era de sua obrigação, mandou fazer a busca do escravo Manoel e lhe foram entregues três outros diferentes, que se diziam ter sido furtados, segundo informações que lhe deu o capitão-mor e juiz de paz da vila do Cabo-PE, Manoel Thomé de Jesus, que morava no engenho novo da Noruega, em Escada-PE.

Por sua vez, o citado juiz de paz do Cabo soube, como resultado de suas averiguações, que os cativos poderiam pertencer a senhores da cidade do Recife e avisou ao depositário por carta. Interessante ressaltar alguns trechos dessa carta que mostra como eram as relações entre as pessoas que possuíam cargos na Justiça e de que modo a qualidade dessas ligações contribuíam para a manutenção da estrutura social vigente, bem como revela um pouco das movimentações dos escravos dentro da província de Pernambuco.

Inicialmente, o juiz de paz do Cabo ressaltou que agiu por provocação do depositário, que lhe enviara carta precatória para que fossem realizadas as buscas ao escravo Manoel Congo, que procurava. Em seguida, informou que foram achados três “negros” que diziam ser escravos do tal José Joaquim da Costa, parte ré naquele processo de execução já citado, que gerou a obrigação da penhora do escravo que foi furtado do depósito público. Mas o juiz de paz desconfiou das palavras dos cativos e optou por enviar os três para que o depositário visse se algum deles seria o Manoel Congo. E pediu que, se não fosse confirmada a identidade, entregasse-os ao devido proprietário. Revelou também que chamou um homem de nome Francisco à sua presença, dizendo que era conhecido em fazer serviço de transporte em sua jangada pelo litoral, e ele confessou perante várias testemunhas que

[…] trouxera uma negra do Recife numa jangada, que lhe pagou o dito José Joaquim da Costa para a trazer seiscentos e quarenta réis, e que logo que chegou à sua casa no lugar do Paiva, o mesmo José Joaquim da Costa a mandou buscar para casa de José Gomes e que estes foram os escravos que ele trouxera, e não negro macho.[7]

Nesse trecho do discurso de Francisco há fortes indícios de que José Joaquim da Costa, José Gomes e Manoel estavam associados em um negócio de venda de escravos furtados e que o ocorrido nesse processo não foi uma ação isolada. Joaquim, escravo, e Francisco, dono da jangada, que não deveriam ser os únicos contatos, levavam os escravos até a casa da Rua da Roda ou disponibilizavam os escravos para que alguém o fizesse. Os cativos eram recebidos por José Gomes e José Joaquim da Costa se encarregava de levá-los para o sítio de Manoel, no Cabo, no qual ficavam escondidos e mudavam seus nomes para não serem identificados. De lá, provavelmente, eram vendidos e encaminhados para seus futuros proprietários. Ao que tudo indica, os escravos “furtados” eram coniventes com esse esquema, motivados, quem sabe pela sensação de autonomia que teriam ao escolher seu próprio dono ou mesmo para se livrarem do antigo por algum motivo e até mesmo na esperança, talvez, de conseguirem fugir durante o transcurso da operação.

O juiz de paz concluiu a carta para o depositário declarando ser seu “muito afetuoso” amigo, revelando uma possível camaradagem entre os dois, ou mesmo enfatizando uma aproximação que, inserida no cenário oficial dessa correspondência, ajuda a entender como essas redes eram importantes e comuns na administração da Justiça.

Depois de receber a carta do juiz de paz do Cabo, José Ferreira Antunes Villaça encaminhou petição ao juiz de fora em 30 de julho de 1830, informando o ocorrido. O juiz de fora deferiu o pedido e mandou que se recolhessem os três escravos à cadeia, instaurando a devassa para apurar o crime. Os escravos foram recolhidos à prisão em 31 de julho de 1830.

Dias depois, o depositário ainda encaminhou uma réplica[8] ao juiz de fora, com um roteiro de perguntas que ele recomendava fossem feitas aos escravos, requerendo que “não omitindo as suas próprias indagações, interrogue também os ditos escravos pelos quesitos expendidos”.[9] Tamanha preocupação é de se estranhar, já que ele já havia cumprido com a sua obrigação. Como uma de suas “sugestões” de perguntas ao magistrado, ele escreveu:

[…] cumpre-lhe requisitar que nas perguntas se lhes inquira o seguinte: quais sejam os seus primitivos verdadeiros nomes e quais os seus primitivos donos ou senhores, seus nomes, moradias.[10]

Há uma ênfase, nessa réplica, que pode ser uma das razões desse cuidado do depositário quanto ao procedimento do juiz. Ele pediu que os senhores, sendo identificados, pagassem as despesas que teve com diligências, custas relativas e carceragem. O requerimento foi deferido pelo magistrado em 3 de agosto de 1830.

O relato dos escravos, que agora se verá, contribuirá muito para entender toda essa história. Ressalte-se que eles ficaram alguns dias presos num mesmo quarto, bem como na cadeia e tiveram como organizar a história que iriam contar para o juiz. Saliente-se também que os seus proprietários não iriam gostar muito de saber que eles tiveram alguma participação nesse sumiço que deram. Certamente seriam castigados por isso. Ou seja, o melhor seria que se pensasse que foram enganados e seria impossível para eles perceberem que seriam furtados de seus senhores.

Então, três dias depois da prisão dos escravos na cadeia do Recife, na casa do juiz de fora, chamado nesse momento de “ministro” – como eram tratados ainda no período colonial os magistrados –, ele e seu escrivão começaram com os procedimentos para fazer as perguntas aos escravos apreendidos. O primeiro foi o preto Miguel, que confirmou o seu nome e disse ser da nação [Cabinda] e que seu senhor era Francisco Ribeiro de Brito, da empresa de algodão estabelecida na praça do Recife. Falou ainda que era sapateiro e, estando no sítio do dito seu senhor no lugar do Manguinho e indo ao Recife comprar ¼ (um quarto) de couro, encontrara-se com um preto de nome Joaquim, escravo de um homem já velho que morava defronte do sítio de Luís Gomes. Esse preto Joaquim já muito que o “desinquietava” para levá-lo a um homem que procurava escravos, e dessa vez o levou. Foi a uma casa térrea no Mundo Novo, onde morava um pardo chamado Manoel e uma mulher também parda. E eles o meteram em uma “camarinha”, onde esteve fechado por três dias. E, depois desses dias, às quatro horas da madrugada, o mesmo “pardo” Manoel o tirou e levou-o até a Ribeira, onde estava um homem branco de jaqueta que, do lugar onde estava, ouviu chamar de “doutor José Joaquim da Costa”. E esse homem branco, pondo-o adiante de si montando a cavalo, levou-o até o sítio de José Gomes, lavrador de canas, no Cabo, onde ele foi entregue à mulher do dito José Gomes, dando a ele, o escravo, o nome de João. Para concluir, o preto Miguel disse que saíra de casa há aproximadamente dezesseis dias.

No mesmo dia e local foram realizadas as perguntas ao preto José. Disse que seu nome era José, da nação Congo e que seu primeiro senhor se chamava Cazuza Simplício, morador na Casa Forte, no Recife. Que o proprietário era branco, casado, com cinco filhos, segundo a sua lembrança. Que o mesmo seu senhor tinha um cunhado na Rua Nova da dita capital, com tenda de caldeireiro, na qual era caixeiro, e que o vendera a um homem de nome Joaquim, branco, cuja mãe se chamava dona Anna, viúva e moradora da Rua do Hospício, na mesma cidade, onde estava ele. Costumava sair à rua para o ganho e, em determinado dia, foi fazer um mandado para o seu último senhor. Nessa diligência, encontrou-se com o preto Joaquim, escravo de um homem que morava defronte do sítio de Luís Gomes Ferreira. Observe-se aí que esse escravo conhecia o negociante Luís Gomes Ferreira e que sabia quem era o dono de Joaquim, traficante de escravos que morava bem pertinho, em frente ao comerciante e proprietário do outro José, da nação Rebolo.

Ainda sobre o relato de José do Congo, continuou falando que o preto Joaquim lhe dissera que na Ribeira havia um homem que comprava escravos e eles foram ao encontro desse homem pelas oito horas da noite, no pátio da Ribeira, em uma casa térrea. Disse mais, que o mesmo preto Joaquim chamou a um pardo de nome Manoel, e eles o trancaram numa “camarinha” na casa na Rua do Mundo Novo por quase uma semana, chegando depois para a mesma “camarinha”, para lhe fazer companhia, o preto Miguel, escravo de Francisco Ribeiro de Brito. Desse local, foram conduzidos pelo mesmo pardo Manoel para o pátio da Ribeira e entregues àquele sujeito que declarou o referido preto Miguel, com o qual foi conduzido para o sítio de José Gomes, ao pé da vila do Cabo, onde ele era tratado com o nome de Antônio. José do Congo terminou relatando que tudo acontecera há quinze dias, “pouco mais ou menos”.

O último a ser inquirido foi o preto Paulo. Ele não se comunicava bem em português, por isso respondeu às perguntas por meio de uma outra pessoa. Não se falou nos autos sobre um tradutor oficial, mas funcionou como se fosse. Nota-se que as construções das frases ficaram comprometidas, mas o sentido do relato pôde ser recuperado. Disse que o seu primeiro nome era José e que chegara há pouco tempo no Brasil. Estava somente há um ano no sítio para onde foi conduzido por um homem que não conhecia. Lá foi entregue a José Gomes e ficou trabalhando com enxada. Deram-lhe o nome de Paulo. Ele chegou ao Recife por meio de uma embarcação com mais sete e foi levado para um quintal, onde o mesmo homem que os transportou na dita embarcação o encaminhou para o lugar onde “o dito cujo preto estava”.[11] E ele descreveu esse preto, dizendo que parecia “ter de idade 50 anos, de nação Rebolo, e muito boçal, estatura ordinária, testa larga e o nariz picado de bexigas”.[12]

O juiz ordenou que fosse feita diligência para prender os culpados do furto de escravos na casa indicada no auto de perguntas, que ficava na Rua por detrás da Roda dos Expostos, número 1, no Recife. O coronel Martins e o alferes Pinto, com seis ou oito soldados do corpo de Polícia, foram ao local e fizeram as diligências e as indagações de rotina. Lá encontraram só uma mulher de nome Josefa Maria da Conceição, juntamente com um escravo chamado José, que se verificou que era também furtado. A dita mulher e o escravo foram recolhidos à cadeia do Recife, em 3 de agosto de 1830, e foi recomendado ao carcereiro da mesma cadeia, de nome José Felix, que “não os soltasse sem expressa ordem do juízo”,[13] e o dito carcereiro prometeu assim cumprir, “guardando em tudo as leis do seu regimento”.[14] Assinaram um termo o carcereiro, o oficial que auxiliou na diligência e Antônio Gomes da Silva, escrivão do ministro da Provedoria do termo.

O escrivão do juízo de fora fez a juntada do termo de prisão com as perguntas aos autos.

O magistrado mandou citar os interessados na ação criminal, especificamente os indicados como proprietários dos escravos, sob pena de revelia, em 10 de novembro de 1830. As citações foram realizadas dez dias após a ordem do juiz. Até essa data, 100 dias depois de iniciado o processo, Josefa e os escravos apreendidos ainda estavam na cadeia.

Mas quem era Josefa Maria da Conceição? Raro encontrar uma mulher como protagonista de crimes no século XIX. Até mesmo para aqueles delitos em que ela tinha que ser o sujeito ativo para a sua existência.

A acusada na Justiça por ter praticado furto de escravos, Josefa foi qualificada nos autos como pobre e pediu, por requerimento ao juiz de fora, que chamou de Chanceler,[15] por não poder se defender do imputado crime que, “pelo amor de Deus”, fosse nomeado advogado e solicitador para a sua defesa. O juiz atendeu ao pedido da ré.

Dando continuidade aos trabalhos, agora na sala de audiência da cadeia, o juiz de fora, em 3 de agosto de 1830, com o escrivão assistente, Pedro Ignácio da Cunha, fez as perguntas à ré. Ela esclareceu que se chamava Josefa Maria da Conceição, era parda, não sabia escrever, era natural do Recife, filha natural de Maria de tal, solteira, moradora no beco por detrás da igreja de Nossa Senhora do Paraíso e que tinha de idade treze para quatorze anos. E logo o juiz nomeou para curador, por ser a respondente menor, o advogado Joaquim Francisco do Rego, a quem deferiu o juramento dos Santos Evangelhos, encarregando-lhe que “bem e verdadeiramente fosse bom curador da respondente”,[16] o que ele assim prometeu cumprir.

E passou o juiz a continuar com as perguntas. Josefa respondeu que morava só, pois um homem que tinha morava fora, indo só à casa dela algumas vezes; que ele se chamava José, era português, casado, e que ela não sabia onde morava, porque ele nunca quis lhe falar, e que dizia ser sapateiro ou alfaiate. Que o conhecia há uns seis meses e que ele esteve em sua casa no dia em que foi presa. Sobre se conhecia um pardo de nome Manoel, ela respondeu que não. E que não sabia de quem era o preto José que foi preso com ela e mais, que “o mesmo escravo fora posto em sua casa pelo dito europeu José há duas semanas pouco mais ou menos”.[17] Concluiu dizendo que até aquela data essa foi a primeira vez que escravos furtados estiveram presos em sua residência.

Passaram-se dois dias e Josefa foi chamada para ratificar todas as suas respostas, depois de terem sido lidas pelo próprio juiz. Observe-se que essa leitura, tarefa relativamente simples e que não envolveria decisão judicial, não foi executada pelo escrivão e sim pelo magistrado, confirmando o entendimento de que, nessa época, ao juiz incumbia atividades que não se limitava a prolatar decisões. E assim Josefa fez, confirmou as suas respostas anteriores.

O magistrado insistiu para que Josefa respondesse a verdade, provavelmente por não se ter convencido das alegações dela. Nesse momento, a ré aproveitou para demonstrar que conhecia pessoas que poderiam abonar a sua conduta e citou o nome do Dr. José Joaquim da Costa, um tal de Jerônimo, um mestre régio[18] de nome Monteiro e outros.

Quando ela falou o nome de José Joaquim da Costa, o juiz aproveitou para saber mais sobre ele, pois tinha aparecido várias vezes nas respostas dos escravos durante a inquirição. Josefa disse que conhecia José Joaquim da Costa há dois meses mais ou menos. E que a primeira vez que o viu foi “por ocasião de ter ido com uma camarada de nome Joanna Maria, [cabra] moradora na Rua do Fogo, à casa de uma tia do dito Costa, no pátio da Ribeira”,[19] onde sempre o via. Ressalte-se que a ré entrou, nesse momento, em contradição, pois no primeiro depoimento, dois dias antes, havia dito que conhecia José Joaquim há aproximadamente seis meses e, nessa ocasião, já estava dizendo que o conhecia somente há dois meses.

Imediatamente após o depoimento de Josefa foram feitas confrontações com os escravos Miguel e José. Josefa afirmou que não os conhecia. Perguntados aos ditos pretos se conheciam a ré, responderam que era a moradora da casa onde estiveram presos em uma “camarinha”, como já haviam declarado anteriormente.

O juiz, imediatamente depois, passou a fazer as perguntas ao preto José, da nação Rebolo, que também estava preso. Para realizar o procedimento também estavam presentes o escrivão titular e o assistente. José, da nação Rebolo, confirmou que era escravo de Luís Gomes Ferreira e informou que “andava fugido”, segundo palavras do juiz de fora, há duas semanas, mais ou menos. Foi à Ribeira comprar mãos de vaca e lá se encontrou com o preto Joaquim, escravo de José Tavares da Gama. Ele lhe dissera que o acompanhasse para lhe ajudar a carregar uma carga e, apesar da “repugnância” dele, o dito preto insistiu para que o acompanhasse e disse que logo o deixaria em paz. Ele foi e, quando os dois chegaram a uma casa por detrás dos quartéis, tinha um pardo que se chamava Manoel, que o fez entrar numa “camarinha”, tirando dele um gancho que tinha ao pescoço há duas semanas. Ficou nesse lugar até que fora preso com Josefa, moradora da casa em que estava. Nesse instante ele explicou por que não foi removido para a vila do Cabo, para ficar no sítio de Manoel, junto com os outros escravos furtados. Lembrou que,

em um desses dias, fora à dita casa um homem cheio do corpo, com bonitas feições, cujo nome não sabe, mas que perfeitamente o conhecia por ter sido caixeiro de seu senhor e que este o lançou fora de sua casa. E que tem ouvido dizer não ser natural desta província.

[…] abrindo-se a “camarinha”, onde ele respondente estava fixado, entrara dentro e, conhecendo logo ao respondente como cativo de seu patrão, disse ao tal pardo Manoel que não o levasse para a villa do Cabo, porque o senhor dele, respondente, podia [reconhecê-lo] do que ele isto contou a ele, respondente, o mesmo pardo Manoel. [20]

Ainda durante o seu relato José, escravo de Luís Gomes Ferreira, citou o nome de outro proprietário, o do escravo Joaquim. Era José Tavares da Gama. Negociante de escravos que, em quatro viagens com destino a Pernambuco entre 1814 e 1818, desembarcou pelo menos 868 escravos nesse período (Vergolino, 2012). Destaque-se a prática de Joaquim em aliciar escravos para que fossem vendidos para outros senhores, quando quem o escravizava vivia desse negócio.

Logo depois da acareação dos escravos Miguel e José, os comerciantes, proprietários dos dois cativos, Francisco Ribeiro de Brito e Luís Gomes Ferreira, respectivamente, pediram para passar alvará[21] de soltura para ambos. O primeiro pedido foi feito no dia 5 e o segundo no dia 6 de agosto de 1830. Os dois requerimentos foram deferidos imediatamente e o magistrado mandou passar os alvarás e que fossem pagas as custas.

E no dia 7 de agosto de 1830, o juiz mandou chamar Joaquim para fazer-lhe as perguntas. Ele disse que se chamava-se Joaquim – aquele citado por José em seu depoimento. Disse que era escravo de José Tavares da Gama, morador da Boa Vista. Que conhecia o preto José, escravo do Luís Gomes Ferreira. Note-se que os proprietários dos cativos moravam um em frente do outro. Informou que soube, por meio do preto Domingos de nação Calabar, morador na Rua do Livramento, que havia um homem que comprava escravos e que morava no Mundo Novo. Ele falou isso ao dito preto José e ele, junto com Domingos e o mesmo José, foram todos à casa do Mundo Novo, onde moravam um pardo de nome Manoel e uma mulher da “mesma qualidade”. O preto José ficou por lá e Joaquim não entrou na casa. Só no outro dia ficou sabendo que José lá ficara. Foi verificar no local, desconfiado que fosse uma “velhacada”, mas não conseguiu fazer nada. Disse que reconheceria o pardo Manoel que morava na casa com Josefa e que levou, juntamente com o preto Domingos, outros pretos à mesma residência, o outro José e Miguel, escravo de Francisco Ribeiro de Brito, mas inocentemente.

O juiz chamou atenção para que falasse a verdade. Lembrou que o preto José disse que ele, Joaquim, o chamara para ajudar num serviço e que o levara à casa do Mundo Novo, onde o recolheram. Joaquim afirmou que não era verdade, pois foi o próprio preto José, escravo de Luís Gomes, quando ouviu falar em pessoa que comprava escravos, disse querer ir ter com ele. Então, ele e o preto Domingos simplesmente o conduziram.

O juiz de fora deu por encerrado o interrogatório naquele dia. O escrivão preparou os autos e os entregou ao magistrado na mesma data. E, logo a seguir, foi prolatada a sentença que determinou que se procedesse à devassa para a inquirição das testemunhas. Esse seria o momento para produção de provas sobre a acusada, no qual o juiz observaria se havia ou não subsídios para se dar continuidade ao processo. Essa decisão do juiz se dava antes da sentença de pronúncia, que só seria proferida depois dos depoimentos das testemunhas. Elas seriam interrogadas a partir de perguntas mais aprofundadas, que dariam subsídios para o magistrado julgar se a ré seria ou não pronunciada.

Foram chamadas para depor trinta testemunhas. Saliente-se que essa quantidade de testemunhas era muito comum nas devassas do período colonial.[22] No período imperial esse número diminuiu, diante da legislação que regulamentou o processo criminal em 1832 e normas posteriores, que estabeleciam os procedimentos oficiais para a Justiça.

O juiz de fora continuou realizando as inquirições na sua residência, como era de praxe, em duas etapas. A primeira nos dias 07, 09, 11 de agosto de 1830, e a segunda em 14, 18 e 20 do mesmo mês e ano. Normalmente fazia duas ou três entrevistas por dia. Somente metade das trinta testemunhas respondeu ao chamado do juiz de fora, totalizando quinze depoimentos. Todas as pessoas eram moradoras das imediações da casa de Josefa, na Rua da Roda, no Mundo Novo. É possível perceber, por meio das qualificações disponibilizadas no processo, um certo perfil dos moradores daquela área. A começar pela cor, foram sete pretos, na sua maioria crioulos, quatro pardos, uma branca e três pessoas que não tiveram sua cor identificada.[23] Na sua totalidade, o grupo era formado por pessoas livres e pobres, grande parte profissionais autônomos, entre homens e mulheres. Havia alfaiates, costureiras, sapateiros, vendedores de peixe, carpinteiro, torneiro, seleiro e três pessoas que declararam que viviam “de suas agências” ou “de sustentação de seu marido”.

Pode ser resumido o depoimento das quinze testemunhas no relato de Maria do Livramento Vila, crioula forra, solteira, moradora nas imediações de onde residia Josefa, porque todos foram muito semelhantes:

Disse que sabe por ver em dias deste mês, pelas 4h da tarde, para mais, quando uma patrulha de polícia com meirinhos prendeu a parda Josefa em sua casa, na rua detrás da Roda, acompanhando nesta ocasião três pretos que diziam serem furtados […].[24]

As testemunhas pouco acrescentaram informações sobre o crime nesse novo momento. Os discursos discorreram basicamente sobre a diligência da polícia no local, quando chegou à casa da ré e realizou a prisão. Na verdade, não apresentaram fato novo nem mais detalhes acerca do crime.

Somente se passou um dia do término do interrogatório para que o escrivão encaminhasse o processo para o juiz, que sentenciou naquela data. Essa era a sentença de pronúncia, que iria definir se os autos seriam encaminhados para o Júri. O magistrado mandou que os dois homens que apareciam acusados de conluio com Josefa na prática do delito e a própria acusada fossem pronunciados, os seus nomes lançados no rol dos culpados e passadas as ordens de prisão. Também nomeou para advogado da ré presa aquele que já tinha sido o seu curador e, para solicitador, o mesmo José Joaquim do Espírito Santo. Imediatamente o escrivão recebeu os autos.

Três meses depois o mesmo escrivão registrou o traslado “de prisão e hábito, que torna feito a ré presa”.[25] Nesse documento, datado de 9 de outubro de 1830, Josefa foi qualificada pelo escrivão como parda, solteira, moradora no Recife, de idade que disse ter 20 anos, de pai morto. Declarou que a mãe da processada se chamava Maria da Conceição e que ela apresentava as seguintes características físicas: era baixa, seca de corpo, testa pequena, olhos grandes, boca pequena, orelhas pequenas, estava vestida de paninho, vestido encarnado e sapatos. A idade que foi declarada nesse documento será a chave para a decisão final do processo. Destaque-se como Josefa entrava em contradição, até mesmo em relação à sua idade.

O processo continuou a tramitar. Nesse momento Josefa, por meio de seu advogado, apresentou ao juiz um documento (contrariedade) em que argumentou que era inocente e contestou os depoimentos das testemunhas que depuseram contra ela. Pediu, ao final, a sua absolvição, que fosse dada baixa em sua culpa e relaxada a prisão.

Seis dias após, os autos foram entregues a outro juiz de fora, o bacharel Caetano José Ferreira de Morais, que estava na lista de advogados habilitados do Tribunal da Relação de Pernambuco (Valle, 2005), mas, naquele contexto, atuava como magistrado, no lugar de Antônio Joaquim de Mello. Saliente-se que, desde o dia 21 de agosto, data da sentença, Antônio não agiu mais no processo. Todos os registros que apareceram posteriormente foram movimentos do escrivão, para cumprir a ordem dada na sentença e a contrariedade, protocolada pelo advogado da ré. Somente em 15 de outubro o processo voltou a caminhar, mas com o novo juiz nomeado.

Em 3 de dezembro de 1830 o promotor de justiça João Francisco ofereceu libelo crime acusatório contra Josefa. O texto do libelo começa qualificando a ré, dizendo que ela era moradora em uma pequena casa na rua de trás da Roda, do Recife, onde nela “agasalhava escravos furtados”, que eram conduzidos para lá se der o destino. Afirmou que Josefa convinha nesse negócio, tanto que teve trancado em sua “camarinha”, até tomar o seu destino, os pretos Miguel, José e Paulo, sem contar o outro escravo que também se chamava José, encontrado com ela no momento das diligências. Pediu a sua condenação nas penas crimes e cíveis que competisse aos “malfeitores” que, de propósito, cometem crimes, contra as leis do império e contra a tranquilidade e sossego do público. O juiz de fora recebeu o libelo e o colocou em prova, 14 dias depois, para que a ré pudesse se defender. Para isso, o escrivão citou o advogado de Josefa, o solicitador Manoel de Amorim Lima. Ele pediu que fossem interrogadas, por um inquiridor nomeado, testemunhas indicadas pela ré, e assim foi feito.

Há indícios de que as quatro testemunhas de Josefa foram preparadas pelos seus defensores, pois apresentaram o mesmo discurso. Eram eles as testemunhas da defesa: José Ferreira de Oliveira, de 20 anos de idade, casado, morador nas Cinco Pontas, sapateiro; Francisco Xavier Ferreira, 40 anos, branco, casado, morava em Afogados e vivia “de suas agências”; Francisco Ignácio Pereira, 26 anos, pardo, solteiro, morava na rua por detrás do [Calabosse]; Francisco de Paula de Mendonça, 45 anos, pardo, casado, morava na [Cacimba]. Disseram que a ré nunca [agasalhou] negros fugidos em sua casa e vivia de suas costuras, com bom procedimento. Afirmaram que Josefa tinha um conhecido por nome José, que negociava com fazendas para o mato, e que nunca se associou com ladrões, nem negociou com furtos. Sempre viveu tão pobre que nada possuía, “nem trastes de casa” tinha, e nunca ouviram dizer que ela estivesse envolvida em crime. Também afirmaram que viram em sua casa os três pretos, mas que iam e vinham em público e à luz do dia. Tudo foi dito para derrubar as acusações. Sustentaram ainda que Josefa, por ter sido sempre honesta, era incapaz de articular a venda de escravos furtados, e isso se comprovaria pelo fato de que vivia na pobreza e seu sustento vinha de suas costuras. E a presença dos escravos na sua casa se devia a um favor que fazia a um amigo que conhecera e ela não poderia saber que eles eram parte de um crime, se chegaram normalmente à sua casa, como qualquer visita. Nesse momento, houve a troca de defensor. Assumiu o advogado Antônio da Trindade Antunes Meira, que pediu vista do processo para, com base nos relatos das testemunhas que fizeram prova, afirmar a inocência da ré.

No ano seguinte, já em janeiro de 1831, o advogado entregou os autos ao escrivão que fez a juntada, no primeiro dia de fevereiro, de outra petição do representante da ré, solicitando que se apurasse se havia algum processo criminal na Justiça contra Josefa. Vários cartórios foram consultados e todos atestaram que não havia processo contra a ré, confirmando o que disseram as testemunhas sobre esse assunto, que ela nunca tinha se envolvido em crime.

De posse de todas as informações, o juiz de fora, Caetano José Ferreira, três dias depois, deu a sua decisão, condenando a ré. Baseou-se no fato de que, pelo exame das provas, houve contradição, tanto dos pretos quanto da ré. A sentença foi publicada na mesma data. O escrivão, por sua vez, encarregou-se de intimar o advogado e a processada do resultado.

O processo foi mandado para a Relação de Pernambuco, em 26 de fevereiro de 1831, pois o advogado de Josefa apelou da decisão do juiz de fora. Os autos chegaram às mãos do desembargador de agravos e apelações crimes e cíveis, Tibúrcio Valeriano da Silva Tavares. Ele era natural da Bahia e estudou Direito em Coimbra, Portugal. Foi nomeado juiz de fora na Bahia por Decreto de 19 de outubro de 1824 e também atuou como provedor da fazenda dos defuntos e ausentes, resíduos e capelas. Quando foi juiz conservador das matas de Alagoas, recebeu a mercê de um lugar de desembargador da Relação de Pernambuco, por decreto de 12 de outubro de 1827. Depois de dez anos no Recife, foi removido para o Tribunal do Maranhão, onde se aposentaria em 1843. Voltou às suas funções, revogada a sua aposentadoria, em 1848 e, em 1857, tomou posse no Supremo Tribunal de Justiça, lugar no qual se aposentaria, em 1863. Representou Alagoas como deputado e foi distinguido por D. Pedro I com o foro de fidalgo cavaleiro (Valle, 2005).

O primeiro ato do desembargador foi dar vista à parte, na data em que recebeu os autos. O advogado iria precisar analisar o conteúdo para fazer a sua petição de apelação, que foi enviada em 12 de março do mesmo ano e, nesse mesmo dia, voltaram ao magistrado de 2ª instância, já com o recurso anexado.

O defensor argumentou que houve somente uma pequena contradição, tentando desvalorizar a motivação que levou o juiz a condenar Josefa, explícita na sentença. Justificou a dita contradição pela “miserabilidade da mulher, tímida por natureza, e nesse estado de confusão e de desordem nem sempre a língua profere o que ocorre os pensamentos”.[26] Terminou pedindo a reforma da sentença por justiça, usando para concluir expressões em latim, diretamente do Direito Romano, comum nas petições redigidas por operadores do Direito.

Depois de passado mais de um mês, o magistrado de segunda instância deu um despacho pedindo que, por ter encontrado informações imprecisas acerca da idade de Josefa, que fosse esclarecida essa questão, requerendo que se acostasse a sua “certidão de idade”. O despacho foi publicado no mesmo dia, 23 de abril de 1831.

Josefa não tinha essa certidão. Isso fica claro porque o seu advogado teve que juntar petição que fez o vigário geral e juiz de casamentos para informar a idade da ré. O resultado foi que o advogado conseguiu provar que ela era menor de idade. Talvez nem ela mesma soubesse ao certo a sua idade ou isso foi propositadamente usado a seu favor.

Como foi provado que Josefa era menor, ela precisava de um curador para acompanhá-la em todos os atos processuais, o que só foi providenciado no início dos procedimentos, e depois não foi respeitado durante o processo. Por essa razão, os desembargadores do Tribunal da Relação decidiram, em acórdão, que o processo deveria ser considerado nulo. Ressalte-se que o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciara em seus arestos sobre esse assunto. Considerava que “são nulidades insanáveis: […] 2.º a falta de curador ao menor” (Almeida, 1885, p. 12). Destaque-se que a Ord. Liv. 3 tit. 41 §§ 8 e 9 também ia no mesmo sentido, determinava que, “se o preso réu fosse menor de 25 anos e solteiro, e se não lhe nomeou curador, o processo seria nulo”.

E assim Josefa foi liberada da prisão e os outros três acusados de serem seus associados no negócio de vender escravos furtados conseguiram sair ilesos, sem nem mesmo aparecerem para responder em juízo, conforme decisão do Tribunal:

Acordão em relação julgam nulo este processo porque, sendo menor a ré, deverá infalivelmente tormar-se um curador para com ele contrariar […] a bem da ré, como lhe conviesse […]. Portanto, acordão que se dê baixa na culpa e seja relaxada a prisão em que se acha, pagas as custas […] Recife, 18 de junho de 1831. Desembargadores França, Belmont e Tibúrcio.[27]

É possível que o advogado de Josefa tenha conversado com o desembargador Tibúrcio, relator do processo e falado sobre a menoridade da ré, como um último recurso para vê-la livre, já que todas as informações constantes nos autos indicavam que o crime realmente acontecera. Mas resta saber como Josefa, mesmo tendo se declarado pobre, conseguiu ter acesso a essa defesa tão eficaz na segunda instância, que chegou a anular todo o processo por uma falha do juiz de fora, Caetano José Ferreira de Morais. Sabe-se que somente o magistrado que iniciou o processo, Antônio Joaquim de Mello, nomeou curador em todos os atos para Josefa. Uma das possibilidades é que alguém de posses, como José Joaquim da Costa, para se garantir fora da cadeia e evitar que o assunto continuasse a ser apurado, estivesse custeando as despesas da defesa de Josefa. E, quanto a esse processo, como os proprietários dos escravos puderam retirá-los da cadeia, provavelmente não tinha mais ninguém com poder do outro lado da demanda que impedisse o desfecho como se concretizou.

Até 1832 ainda atuavam, na província de Pernambuco, juízes ordinários, de fora e ouvidores, na área criminal. Os juízes de paz conviviam durante um período de tempo com os magistrados do período colonial, mas somente encaminhando queixas, autos de vistoria e fazendo conciliação. Eles começaram a ter uma maior participação na Justiça Criminal depois da publicação do Código do Processo Criminal de 1832. Essa lei estruturou não só os procedimentos relacionados aos julgamentos da Justiça na área criminal, como também organizou a Justiça Civil.

Dos doze processos do Tribunal da Relação de Pernambuco disponíveis para pesquisa, até a vigência do Código do Processo Criminal de 1832, encaminhados das comarcas do Recife e de Olinda, cinco foram de crime de furto, sendo três de furto de escravos. Apesar de inexistir o tipo penal furto de escravos no Código Criminal de 1830, nos processos ele é assim descrito pelos operadores do direito. Pode-se perceber que, junto com o furto de cavalos, eram os únicos especificados nos autos para esse tipo penal. O furto de outros “bens” não parecia ter tanto significado para a sociedade do período imperial que valessem a descrição pormenorizada nos processos. Observe-se que, mesmo o legislador não tendo inserido explicitamente no Código Criminal de 1830 qualquer pena mais grave para quem furtasse escravos, em nenhum dos casos encontrados essa informação foi tratada como irrelevante pelos advogados, promotores, juízes, testemunhas ou partes interessadas.

Saliente-se que o delito de furto foi inserido no Código Criminal de 1830 no capítulo pertinente aos crimes contra a propriedade e, como o escravo era classificado como um patrimônio, seria reconhecido como incurso no artigo 257 e seguintes aquele que praticasse o ato ilícito de retirar um escravo do seu proprietário, contra a sua vontade.

Somente em 1835, com Decreto de 18 de outubro, o delito de furto de escravos foi tipificado pelo legislador, estendendo a esse tipo penal as penas e disposições legislativas estabelecidas para o crime de roubo, que eram mais pesadas.

Referências

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  1. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1.
  2. Para Perdigão Malheiro, “o furto de escravos nem é simples furto, é pela lei qualificado, roubo” (1866, p. 40).
  3. ‘[…] alguns negociantes da praça comercial do Recife já tomavam para si a denominação de representantes do corpo de comércio. Em coluna publicada no jornal Diário de Pernambuco e anunciado um “festim […]”, entre eles Luís Gomes Ferreira, um dos fundadores da futura Associação Comercial de Pernambuco (Dourado, 2015, p. 86 e p. 95-96). Todos os membros da mesa diretora da ACP eram negociantes de grosso trato. Para José da Silva Lisboa, negociantes de grosso trato ou homens de negócio “são aqueles que empregam grandes fundos em tráficos e manufatores, pondo em rápido movimento e extensão a indústria nacional, salariando e mantendo muitas pessoas, e assim indireta mais eficazmente promovendo a agricultura, original fonte de riquezas nacionais” (Lisboa,1819, p. 69).
  4. Atualmente chamada Rua Conselheiro Peretti, fica situada no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. O nome original foi dado por se localizar atrás da Casa dos Expostos, onde funcionava a “Roda”, onde eram deixadas crianças abandonadas (Cavalcanti, 1977, p. 207-208).
  5. Responsável pelo Depósito Público, a quem competia guardar os cabedais dos vassalos que fossem pertencentes a sequestro, penhora ou embargo, sem perigo de fuga ou falência (Camargo & Cabral, 2017, p. 81).
  6. Partes do processo de execução de sentença: Manoel Alves Machado por execução de sentença contra José Joaquim da Costa.
  7. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 9v-10.
  8. Representação feita ao juiz sobre algum requerimento que se lhe fez (Pinto, 1832. p. 924).
  9. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 9v.
  10. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 9.
  11. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 14.
  12. Idem.
  13. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 15.
  14. Idem.
  15. Essa palavra entre os antigos designava um oficial de pouca consideração. Era uma espécie de Porteiro ou Alcaide, que estava a uma porta de grades, que separava o imperador ou o magistrado do povo, quando ele dava audiência. Consistia o seu ofício em tomar requerimento, apresentá-los e impedir que se fizesse motim. O chanceler foi adquirindo autoridade e veio a fazer as vezes de secretários dos príncipes e referendários. Finalmente se estendeu este nome aos que formavam o Conselho privativo do príncipe. Mais tarde a palavra Chanceler seria um título comum a muitas dignidades e ofícios. Em Portugal, havia o Chanceler-Mor, Chanceler da Casa da Suplicação, Chanceler da Relação do Porto e das outras Relações. O chanceler do Estado do Brasil foi criado pelo Alvará de 22 de abril de 1808 para atuar na Casa da Suplicação (Sousa, 1825, p. 197-198). Também havia o cargo de chanceler nos tribunais da Relação, responsáveis pela administração do órgão. Ao ser instalado, o Tribunal da Relação de Pernambuco também contava com um Chanceler, que atuava no topo da hierarquia do órgão, exercendo atividades de direção administrativa e de corregedoria, deveria também conhecer de suspeição contra o governador, magistrados, oficiais da Relação e ouvidor da comarca (Neves, 2007. p. 173).
  16. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 16.
  17. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 16v.
  18. Enquanto o professor régio era responsável pelo ensino dos estudos maiores, como as disciplinas de Retórica e Gramática, o mestre régio alfabetizava, era responsável pelas classes de ler e escrever. (Cunha, 2009, p. 15).
  19. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 17v-18.
  20. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 19-19v.
  21. Qualquer escritura autêntica, que contém ordens, obrigações, quitações, etc. (Pinto, 1832. p. 70).
  22. Livro V das Ordenações Filipinas. Devassas, p. 1270. Disponível em: https://bit.ly/3HJlm10
  23. Normalmente nos processos encaminhados à Justiça após a publicação do Código do Processo Criminal de 1832 há identificação da cor para todas as testemunhas, que não são mais tão numerosas.
  24. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 29v-30.
  25. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 33.
  26. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 50v.
  27. IAHGP. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação crime vinda do Juízo de Fora desta cidade do Recife. Apelante: Josefa Maria da Conceição. Apelada: a Justiça. 1831. Cx. 1. p. 56.


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