Outras publicações:

12-2382t

12-3882t

Outras publicações:

9789877230383-frontcover

9789877230215-frontcover

Criminalidades no mundo ibérico:
uma introdução

José Subtil[1], Cláudia C. Azeredo Atallah e Maria Sarita Mota

A questão da segurança e da paz social foi sempre fundamental para consolidar qualquer poder dominante e, bem assim, a panóplia e a tipologia de recursos materiais e humanos para assegurar a tranquilidade constituíram signos para definir o modelo do exercício do poder. Desde o século XVI até ao século XIX, a doutrina e a justificação para o uso da violência legítima evoluiu, por isso, de acordo com o avanço da modernidade.

Do ponto de vista da regulação social, o tema da criminalidade, da justiça e do direito nas vésperas do Estado Liberal, pode servir como um momento oportuno para enfrentarmos o imaginário “estadualista” que catapultou a lei como a solução ideal para a resolução dos conflitos o que significa, também, pensar o Direito como o recurso privilegiado, quase exclusivo por vezes, do poder dominante do Estado. O tema interessa, por isso, às ciências sociais, em particular à história, sociologia, ciência jurídica.[2]

O legalismo, ou seja, o apogeu da imposição da lei e a relação que esta teve com a dogmática da teoria do Estado, é, portanto, uma visão sobre os mecanismos oficiais e judiciais, da justiça oficial sobre as justiças periféricas e tecnologias disciplinares diferentes.

O certo é que a crise da justiça e do Estado dos nossos tempos, inquestionáveis, e para a qual é possível escrutinar projetos alternativos como, por exemplo, forçar a ordem, dando mais poder às polícias, multiplicar o sistema penitenciário e a prisão controlada, desenvolver a moral e regenerar os costumes, apurar a técnica legislativa para melhor compreensão e aplicação, dotar os tribunais de recursos humanos e tecnológicos ou incrementar a comunicação da justiça para anular os sintomas de desobediência à lei, da não aplicação da lei ou inoperacionalidade dos mecanismos coercitivos.

No fundo, esta crise do Estado é, também, a inadaptação do direito às sociedades contemporâneas onde se multiplica a corrupção, morosidade processual, burocratização excessiva, desigualdade na defesa dos direitos humanos pelos custos da advocacia, natureza hermenêutica do mundo judiciário e inacessibilidade aos tribunais. Numa palavra, assistimos, desde o surgimento do Estado à crise da lei e à formulação de novos direitos porque a intenção de regular a sociedade a partir do Estado obrigou a um aumento da sua ação e recursos e, em contrapartida, a sociedade forçou a variedade e a garantia de direitos contra os abusos dos mecanismos de controlo e repressão.

A ilusão e a fantasia do paradigma legalista ao supor que os comportamentos sociais seriam legitimados pela lei, obedecendo, por conseguinte, a um quadro abstrato definido pelos seus produtores – o governo ou o parlamento – enfatizou a lei como única e exclusiva tecnologia de poder, para além de exigir a sua observância através de muitos e dispendiosos recursos humanos e materiais como polícia, tribunais, prisões, vigilâncias, investigação criminal, etc.

Este modelo “estadualista” não corresponde, até é paradoxal, com o conhecimento do passado do Antigo Regime onde os dispositivos de dominação, para além da violência e da repressão, recorreram a uma pluralidade de tecnologias positivas como simbólicas, morais, culturais e depositárias do amor e da amizade. O que a história nos diz é que a lei, como manifestação oficial do poder dominante, não foi sempre nem exclusiva nem maioritária e, mais do que os procedimentos dos tribunais, a interpretação dos juristas era fundamental e decisiva, ou seja, o mesmo que dizer que “o direito consistia na interpretação dos juristas” mais do que na objetivação da lei.

Mas, no Antigo Regime, as limitações da lei não ficavam só por aqui, a lei provinha de vários corpos sociais e não dos órgãos oficiais do poder, como era o caso da família, da igreja, das comunidades, das corporações, ou seja, a fonte de produção do direito era plural e, em muitos casos, a norma particular derrogava a norma geral. O chamado “direito dos rústicos”, maioritário numa sociedade iletrada, era um universo jurídico maioritário que corria à margem do direito escrito.

Atualmente, nas sociedades contemporâneas, o debate sobre o condicionalismo sem recurso à lei é hoje objeto de reflexão, como alternativa ao legalismo, o que pressupõe, indiscutivelmente, um longo e aturado processo de negociação política e jurídica para “deslegalizar” e racionalizar a “relegalização”, ou seja, reinventar a relação da lei com o poder oficial.

A intencionalidade desta obra coletiva, que acaba de ser posta à leitura pública, foi reunir um acervo de análises sobre a criminalidade em diferentes horizontes geográficos do mundo ibérico, tendo por objetivo uma compreensão da interseção entre a criminalidade, a justiça e o Direito na relação com a ordem em que se inserem e com caraterísticas históricas próprias.

São, por isso, atendidas várias dimensões e a sua validade em reciprocidade com o ordenamento jurídico num dado momento e, nas ulteriores transformações sociais, políticas e económicas. O processo histórico, o seu desenvolvimento e inteligibilidade, resulta do concurso, em cada espaço geográfico, das opções fundamentais sobre a organização social, política e económica e, inclusivamente, da perceção e compreensão, diacrónica e sincrónica do sujeito de direito.

A obra contribui, assim, para a compreensão das bases fundamentais dos sistemas jurídicos ibéricos e das distintas projeções que foram conhecendo neste eixo interseccional. Esta circunstância é apreendida pelo reconhecimento da personificação jurídica do ser humano, mas é herdeira de uma historicidade que, não conhecendo hoje contestação, não foi sempre tão explícita como seria expectável e desejável na ordem social.

O Direito, enquanto ordem objetiva, na qual se encontra a projeção da dignidade ética do ser humano, é o resultado de considerações axiológicas, e não tanto lógicas, que pretendem alcançar uma intencionalidade de justiça nas relações sociais, em função das quais existe. Tal é o sentido dos vários textos que compõem esta obra conjunta de investigadores de várias nacionalidades.

A criminalidade, enquanto fenómeno evolutivo, acompanha estes vetores ao longo dos vários textos do livro, convocando uma dimensão técnico-jurídica e uma dimensão histórica sem a qual ficaria esvaziada de conteúdo.

A igualdade, como princípio ou direito, dando sentido jurídico útil ao reconhecimento de um conjunto de direitos inalienáveis ao ser humano, expressa um sentido de igual dignidade social e igualdade perante a lei que não se reconheceu sempre nas relações entre pessoas singulares ou naturais e entre estas e o Estado. Trata-se de uma igualdade contingente que se projetou, por fatores de ordem histórica e razões concretas e objetivas, nas conceções de criminalidade, justiça e direito.


Esta obra coletiva, beneficiando-se da contribuição de pesquisas consolidadas, evidencia, na Parte I, a legislação criminal no mundo ibérico e a intencionalidade própria das épocas em que se analisa; na Parte II, a influência dos poderes locais e administração da justiça, com o substrato social e político que lhe subjazem; na Parte III, a correspondência das perceções em relação à criminalidade e às atividades das polícias; e nas Partes IV, V e VI, a influência da perceção que se foi edificando sobre o que é ser pessoa, as práticas de justiça em épocas e geografias diferenciadas.

O texto de José Subtil sobre a alteridade entre as Luzes e o Liberalismo no que ao crime e ao castigo dizem respeito, distingue o paradigma penal do período iluminista do modelo tradicional do Antigo Regime para, nesta comparação, aproximar as reformas pombalinas e mariano-joaninas do período constitucional depois da revolução liberal (1820). Para acentuar esta aproximação entre o Estado de Polícia e o Estado Liberal, o autor prolongou a sua análise até o ano de 1841, vésperas da imposição definitiva da Carta Constitucional. Para um inventário das políticas penais foram três selecionados momentos. O período das Ordenações Filipinas, marcadamente tradicional, os reinados de D. José, D. Maria e D. João VI como correspondendo à emergência de um novo paradigma penal e, por fim, a fase liberal nas versões constitucionais vintista, setembrista e cartista.

O capítulo de María Angélica Corva acompanha o processo de territorialização da justiça e de codificação penal na Argentina a partir das pautas da Constituição de 1873 para a Província de Buenos Aires, analisando os seus efeitos no funcionamento do poder judicial e nas práticas jurídicas no campo criminal. A Suprema Corte de Justiça instaurada em 1875, herdeira da estrutura institucional espanhola, foi alçada ao topo da nova estrutura judicial, composta por departamentos judiciais equipados com tribunal recursal de segunda instância, juizados de primeira instância civil e criminal e juízes de paz. Na prática, essa configuração marcava a descentralização da integridade territorial da província. Até então, os governos nacional e provincial localizavam-se na mesma cidade, mas a federalização de Buenos Aires deixará a província sem capital em 1880, afetando a tradicional estrutura da administração da justiça. Entretanto, a sanção do Código Penal em 1878 também implicará alterações no sistema jurídico penal. Utilizando a pesquisa em julgamentos de processos-crimes que tramitaram na Corte Suprema neste período, a autora apresenta um estudo abrangente sobre a modernidade jurídica. Permite conhecer a complexidade do funcionamento da justiça penal na Argentina, as continuidades e mudanças na prática jurídica, no uso da legislação e da doutrina, sobretudo a circulação do conhecimento dentro e fora do mundo ibérico.

Um primeiro conjunto de questões sobre a administração da justiça civil e criminal e a atuação dos poderes locais diz respeito às relações estabelecidas por esses agentes e os conflitos políticos surgidos entre as instituições judiciais e as diferentes elites políticas em Portugal e no Brasil, e permite traçar padrões ou identificar peculiaridades a partir dos estudos de caso.

Neste sentido, o trabalho de Maria Luísa Gama versa sobre a Intendência Geral da Polícia, no tempo de Diogo Inácio Pina Manique, abordando os temas de prevenção, controle e punição da criminalidade na cidade de Lisboa. Depois de sumariar, em traços gerais, a obra política do famoso intendente, desenhou a estratégia de gestão e prevenção da criminalidade com o apoio da ação dos magistrados letrados encarregados da administração dos bairros, em particular a organização das rondas sistemáticas e o incremento da iluminação na cidade. Mas, também, a política de castigo e repressão, com prisões e condenações exemplares. No encalce das políticas iluministas que preconizavam grandes reformas penais por toda a Europa, a Intendência Geral da Polícia adotou, também, uma política de regeneração do criminoso quando, através do trabalho e da educação, procurou recuperar os putativos condenados para uma integração na vida ativa, como foi o caso das práticas assumidas pela Casa Pia e da ambição de alargar estes institutos por todo o Reino.

Wellington Barbosa, em seu capítulo, estuda as transformações operadas no ordenamento jurídico nas três décadas pós-independência. Tendo como foco a criação do juizado de paz pela constituição outorgada em 1824 e sua regulamentação em 1827, o autor nos chama a atenção para o processo que delegou funções de polícia a esses agentes da justiça. As demandas por ordem e controle social impostas pelo liberalismo exigiram estratégias que, no Brasil recém-independente, cotejaram, de perto, temas como a moral pública, escravidão e Estado de polícia. Esse cenário há muito exige, da historiografia a respeito, análises atentas que consideram as heranças jurídico-políticas do antigo regime português em diálogo com as reformas então empreendidas e a instalação de um Estado representativo. Wellington Barbosa segue esse caminho. Ademais, problematiza as nuances populares e regionais que o cargo sugeria, apontando as críticas e preocupações das elites com a fragmentação política e os conflitos locais que a condição de um cargo eletivo (e sem a exigência de letramento) poderia provocar.

O capítulo de Ivan Vellasco é um trabalho que aborda um dos temas mais utópicos que foram imaginados pelos liberais, precisamente, a adoção dos jurados como formas populares de justiça, uma alternativa aos juízes letrados dominados pelas elites do poder. Na doutrina liberal, o poder da justiça marcava a diferença política e acentuava o objetivo democrático da revolução. O autor decidiu, por isso, escolher o longo período entre 1830 e 1930 e selecionar os municípios da província de Minas Gerais, entre o Império e a República Velha. Se a instituição do júri se consolidou no Brasil, em Portugal não passou da fase panfletária da revolução e nem sequer entrou em funcionamento. Ivan Vellasco reconstrói as práticas e os padrões das sentenças dos “conselhos de jurados” para justificar a sua perduração no Brasil devido, sobretudo, à escassez de juízes letrados. A escravidão dos africanos e a escassez de indígenas no espaço da cidadania urbana, permitiram, também, a participação dos homens comuns no aparelho judiciário.

Um terceiro eixo de questões que circunda as relações entre a criminalidade, a polícia, o cotidiano e o adensamento das populações evidenciam os problemas da segurança pública de grandes cidades representativas do mundo ibero-americano. Estratégias traçadas pelas instituições policiais e penais com o objetivo de manter o controle social e impor a ordem pretendida podem ser percebidas nos estudos desta seção.

Carlos Eduardo Moreira de Araújo, com um trabalho intitulado “Labor e criminalidade, a pena de prisão com trabalho no Brasil, século XIX”, quis realçar a instituição prisional moderna no encalce dos propósitos definidos pela Constituição de 1824, tomando como exemplo a Casa de Correção do Rio de Janeiro concebida de acordo com o modelo panótico e a adoção das penas de prisão à custa do trabalho regenerador. Embora a Casa de Correção do Rio de Janeiro seja uma exceção no Brasil do século XIX, o certo é que se tornou num emblema para a mudança das políticas criminais, copiando, desta forma, a modernidade europeia e americana, sobretudo para obter o controlo social dos escravos, pobres e libertos. Carlos Moreira de Araújo irá chamar a atenção para o facto de, apesar destas inovações, e da adoção da pena de prisão, a criminalidade ter aumentado ao longo do século, ou seja, as reformas não resolveram o problema da segurança pública porque as causas da criminalidade não foram resolvidas.

Policiamento, cidadania e vida urbana no Recife de fins do século XIX constituem a temática do texto de Jeffrey Aislan de Souza Silva. As complexidades de uma sociedade com profundos índices de desigualdade e de criminalidade, onde as práticas do corpo policial eram consideradas violentas e insuficientes, geravam a necessidade de buscar formas mais “civilizadas” de se impor a ordem na cidade. Nesse contexto, o autor analisa a formação da Guarda Cívica em 1876 e todo simbolismo civil e urbano que a instituição deveria representar no combate e, mais especialmente, na prevenção de crimes e infrações. Referências europeias foram utilizadas na idealização de uma polícia desmilitarizada e na configuração do “homem de bem”, tão cara ao discurso capitalista e civilizatório da época. Jeffrey de Souza analisa ainda as reflexões que essa duplicidade de policiamento suscitou nas elites políticas recifenses e as leituras feitas, nesse ambiente, dos conflitos e revoltas então surgidas.

Maria João Vaz com um trabalho sobre “Lei, ordem e crime em Lisboa no final da Monarquia”, justamente na cidade capital do Reino onde uns elevados números de práticas criminais dominavam a vida quotidiana, chama a atenção para a importância da relação entre a história do crime, a história urbana, o carácter disciplinador da cidade, o papel do ensino e a sociologia dos espaços. Depois de fazer um balanco do que de mais revelador caracteriza as cidades na Europa e das opções historiográficas para interpretarem o fenómeno da criminalidade, a autora concentra a sua análise na criminalidade da cidade de Lisboa entre meados de Oitocentos e inícios do século XX. A construção social do crime, as suas tipologias e dimensão da criminalidade são opções da investigação sobre as práticas de policiamento por causa do pequeno crime urbano e, por isso, são essenciais para explicar as diferenças de criminalidade entre a grande cidade e as zonas rurais que as estatísticas evidenciam.

Na parte V, os estudos reunidos apresentam uma abordagem da escravidão a partir dos arquivos judiciais desvelando os sentidos da liberdade para sujeitos que ensaiaram várias formas de resistências cotidianas.

O capítulo de María Verónica Secreto “La fuga de esclavizados en el Rio de la Plata” centra-se nas dinâmicas da dominação e da resistência nos territórios da colonização ibérica das Américas, partindo da evidência de que nos lugares nos quais a escravidão se instalou também se instaram diversas formas de escapar à sujeição. Diversas fontes judiciais, ações criminais, petições de presos, editais dos vice-reis e diálogos profundos com a tradição de estudos sobre a escravidão na região do Rio da Prata permitem à autora tratar o tema das fugas de pessoas escravizadas em espaços transfronteiriços do mundo ibero-americano. As formas de escape cotidianas dependiam de diversas circunstâncias históricas, e eram condicionadas pela existência de fronteiras, também ecológicas, entre os impérios ibéricos. Pode-se dizer que o relativo sucesso na formação de comunidades de fugitivos (palenques e quilombos) nas matas e florestas do Panamá, Porto Rico, Santo Domingo, Colômbia, Equador, Peru e Brasil não ocorreu na região do Rio da Prata, onde predominou a petit marronage. O deserto pampeano permitia uma vigilância panóptica sobre as populações, e a cor da pele denunciava possíveis fugitivos, justificando prisões e investigações. Contudo, em matéria penal, na ausência de acordos internacionais de extradição e repatriação no período imediato do pós-independência do Brasil, as fugas transfronteiriças assumem outros significados relacionados com as experiências de escravidão e liberdade. A circulação de negros libertos, escravizados, contrabandeados e fugitivos na região do Rio da Prata não faz da fronteira um espaço de ausência de direitos e justiças. Manter-se temporariamente foragido/a recusando-se a voltar para antigos amos dependia da cumplicidade de outras pessoas que acolhiam e davam asilo, reproduzindo relações de camaradagem e de clientelismo.

Na sequência, o texto “Criminalidade escrava e precarização da liberdade em Minas Gerais no século XIX” de Caio da Silva Batista mostra que as fugas de escravos tinham a ver também com as formas de escapar das reprimendas da justiça e de seus senhores por haver cometido algum delito. Com foco na cidade mineira de Juiz de Fora em meados do século XIX, o autor analisa uma série de processos criminais e elabora uma tipologia dos crimes recorrentes envolvendo pessoas escravizadas na condição de vítimas, réus e testemunhas informantes, desvelando as motivações e as penas. A estatística sobre os principais delitos – roubo, furto, ameaças, crimes contra a pessoa e a propriedade e crimes de sangue tipificados no Código Criminal de 1830 – não evidencia um aumento da violência no meio urbano. Segundo o autor, era baixo o índice de criminalidade escrava em Juiz de Fora, cidade polo da Zona da Mata mineira. No seu conjunto, os processos-crimes analisados permitem recuperar algumas trajetórias negras em momentos de tensões e conflitos, mas também redes de solidariedade constituídas em contextos de precarização da liberdade. O roubo, um dos delitos mais cometidos por cativas e cativos fugitivos, prende-se com a necessidade de sobrevivência e formas de amealhar mercadorias que alimentavam um comércio ilícito muitas vezes consentido pelas autoridades. A comutação da pena de prisão por castigos físicos resguardava o proprietário de maiores prejuízos, mas as experiências do cativeiro também moldaram o poder judiciário fazendo avançar a ideia do “cativeiro justo”.

Maria da Vitória Barbosa Lima, no capítulo “Liberdade interditada: gente livre negra em cativeiro ilícito na Paraíba do Norte, século XIX” analisa trajetórias de reescravização de mulheres livres “pretas”, “pardas” e “mulatas”, denunciando a precarização da liberdade. A suspeição recaía sobre pessoas livres, pobres e negras, alcançando também as mestiças e ameríndias em menor proporção, tornando-as vítimas preferenciais do crime de reduzir pessoa à escravidão. Para a autora, o cativeiro ilícito explicaria, a partir de 1850, o aumento da população escravizada numa conjuntura marcada pelo fim do tráfico transatlântico e por períodos intermitentes de epidemias (cólera morbus e febre amarela) e secas no Nordeste, no qual o tráfico interprovincial não conseguia atender a demanda de mão obra escrava na Paraíba. Recorrendo às correspondências dos chefes de polícia, do vice-presidente da província com o ministro da justiça do Império, ações cíveis e ainda às notícias na imprensa, a autora revela as astúcias jurídicas dos proprietários de escravos para reverter alforrias, e os modos pelos quais a população negra, livre e liberta, especialmente as mulheres, acionava a cultura jurisdicional para manter a liberdade. Elas enfrentaram os tribunais do passado e participaram ativamente de rebeliões como o Ronco da Abelha, uma vez que a obrigatoriedade de registro de nascimentos e óbitos e o recenseamento populacional podia reiterar as práticas de escravização de seus filhos e pessoas pobres na região.

O capítulo de Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha intitulado “O sistema judicial em Pernambuco: um caso de furto de escravos numa época de transição do Oitocentos” traz uma contribuição para a história da justiça ao analisar a ação de juízes ordinários e ouvidores dando seguimento e decisões aos processos da área criminal no contexto de transição da criação do Código do Processo Criminal de 1832 e a publicação do Regulamento das Relações de 1833. O tema do cativeiro ilícito é discutido por meio de um processo criminal de furto de escravos assim tipificado pelos operadores do Direito a despeito de inexistir no Código Criminal de 1830. A excecionalidade desse processo, no qual figura uma mulher acusada de crime de furto, permite à autora descrever o funcionamento do Judiciário de Pernambuco bem como o de toda a estrutura jurídico-administrativa do Império do Brasil. A autora desemaranha as redes de amizade ou influência no qual advogados e magistrados estavam inseridos. Mas também a própria ação de sujeitos escravizados muitas vezes cúmplices do comércio ilegal de cativos, na tentativa de alcançar algum controle sobre suas vidas.

Na Parte V, dedicada aos estudos sobre crime, honra e relações de gênero, Mariana Flores da Cunha Thompson Flores com trabalho sobre “Práticas de justiça privada, os duelos de honra no Brasil e a retórica de legitimidade”, identifica a sociedade Oitocentista como uma sociedade da virilidade o que justifica a disseminação invulgar da prática de duelos como meios de resolver conflitos de honra, portanto, tanto os duelos como as narrativas em torno dos mesmos, sejam os desafios e insultos na imprensa, constituíram as opções de análise da autora. Contudo, a grande maioria ficava, precisamente, pela escusa, de facto, dos duelos e o ajuste era, efetivamente, concretizado através da imprensa e das ofensas escritas que eram, depois, resgatadas pelos padrinhos. Esta particularidade servia à política de inclusão e exclusão social na medida em que os intervenientes chamavam à liça outros atores com quem se identificavam ou odiavam. Estes duelos seriam “fitas” para realçar o protagonismo dos intervenientes, expondo os motivos da honra e do deboche, contextualizados aos interesses dos protagonistas.

A partir da segunda metade do século XX, importantes diálogos foram estabelecidos entre criminalidade e capitalismo, história das instituições jurídicas e história da mulher, sob profunda influência das teorias marxistas. O conjunto da obra de Michele Perrot é estruturante para tal avanço historiográfico. A chamada história vista de baixo abriu caminho para novos e diversos estudos sobre o protagonismo da mulher na História, ainda que subjugada pelo patriarcado ocidental. Nesse contexto, e acompanhando essa tradição de estudos, os capítulos de Marinete Rodrigues e Ana Luiza Lopes revelam recentes abordagens sobre as mulheres na sociedade oitocentista no Brasil.

Relacionando vida nos sertões, violência contra a mulher livre e pobre e legislação penal, Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues no capítulo “Justiça criminal e relações de gênero em Mato Grosso no século XIX” analisa os discursos sobre o lugar social dessas mulheres nos autos criminais das comarcas ao sul desta província. O trabalho da autora é sustentado por uma minuciosa pesquisa documental em processos-crimes de violência doméstica, e dialoga com códigos sociais que demarcaram profundamente a sociedade do século XIX: honra, comportamento, submissão feminina e família. Esse panorama social traduz uma linguagem disciplinadora percetível nas tipologias criminais como defloramento e estupro presentes na legislação penal da época. A autora elabora ainda uma discussão sobre a condição feminina que remonta às primeiras décadas do império português, com o objetivo de resgatar costumes e práticas que serviriam de matriz para a formação da sociedade contemporânea brasileira.

Ana Luiza Lopes no capítulo “Cultura da honra no século XIX: os médicos e as leis em um processo-crime de defloramento em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro”, apresenta uma discussão sobre legislação penal, história da mulher e discurso médico com o objetivo de chamar a atenção para o patriarcalismo estrutural que sustenta o aparato político, jurídico e policial de fins do século XIX no Brasil. Com base num processo-crime de defloramento do ano de 1892, a autora debate os conceitos de honra e moral como estruturante da sociedade e articulavam as dinâmicas de imposição da ordem na recém-proclamada república. Além da exposição da vítima, uma jovem filha de trabalhadora rural e sem pai, o estudo realizado sobre os autos revela um detalhado exame de corpo de delito com um minucioso parecer médico que proporcionou à autora algumas reflexões sobre eugenia e medicina da mulher. A análise do documento também revela recentes discussões que emergiam na Europa sobre a cientificização do corpo feminino e a sua fundamentação no campo do direito penal brasileiro.

Encerrando o livro, a Parte VI aborda o tema da criminalidade nos sertões e fronteiras, com um estudo sobre a mulher indígena do sertão amazônico. André Luís Bezerra Ferreira no capítulo “Crime, coerção e mobilidades: as mulheres nas rotas transamazônicas de indígenas no século XVIII” oferece uma análise das dinâmicas estabelecidas pelo Tribunal das Juntas das Missões. Seguindo uma tradição de estudos sobre o cativeiro de mulheres indígenas na Amazônia, o autor lança nova luz sobre os crimes praticados contra essas mulheres, a violência cotidiana no serviço doméstico que envolviam a participação de missionários e potentados no cativeiro indígena, analisando as “petições de liberdade” endereçadas aos Tribunais das Juntas da Missões. Partindo desse contexto, o autor analisa os sentidos da liberdade para essas mulheres. Ainda há de se chamar a atenção para uma importante análise estabelecida pelo autor: a relação desse contexto regional com a dinâmica global de mercado que, a essa altura, tende a se complexizar e ampliar suas demandas.

Em conclusão, um conjunto de autores que apresentam diversas perspetivas sobre a relação entre a criminalidade, a justiça e o direito através do método comparativo histórico e que deixam ao leitor um conjunto de possibilidades de interpretação que contemplam, também, as suas visões do mundo.

As consequências historiográficas destes textos são, por conseguinte, contribuir, sem dúvida, e com alargada pluralidade, para a construção, no futuro, de uma sociedade mais livre, mais responsável e mais crítica dos seus modelos de inclusão e integridade social e política.


  1. Com a colaboração de Patrícia Dias.
  2. O texto referido a seguir é seminal para avaliar o alcance da relação entre a vontade de obrigar e a prática da desobediência nas sociedades “estadualistas”, ver António M. Hespanha, “Lei e Justiça: História e Prospetiva de um Paradigma”, em Justiça e Litigiosidade: História e Prospetiva, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 7-58.


Deixe um comentário