Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues
Em setembro de 2020, Laura Rodrigues Monteiro, de 26 anos, foi assassinada a facadas pelo marido em frente de sua casa, na cidade de Nova Alvorada do Sul, a 117 km da capital Campo Grande/MS.[1] No ano de 1889, 131 anos antes do feminicídio de Laura, Francisca Borges da Conceição sofreu 12 facadas desferidas pelo marido Adriano Ferreira da Silva em sua própria casa. No sumário de culpa lavrado na comarca de Miranda, na província de Mato Grosso, o juiz municipal atestou a denúncia e o corpo de delito contra Adriano, que:
[…] tentado contra a vida de sua mulher Francisca Borges da Conceição, por discórdia entre eles havido, foi Adriano, na noite de 21 de setembro último, ao rancho de sua mulher, que se achava dormindo, onde, dominado pela ideia do crime, entrando por uma porta que arrombara, lhe dera doze facadas, deixando-a mortalmente ferida, como tudo se depreendendo do auto de corpo de delito e depoimento das testemunhas.[2]
As consequências dos atos que evoluíram para a violência extrema revelam que após 130 anos as mulheres continuam sendo vítimas de crimes brutais como os acima narrados. Entre um crime e outro se passaram mais de 130 anos. O estranhamento com relação aos dois casos aparece nos detalhes que configuram as duas ações, ou seja, ambas as mulheres foram assassinadas por seus companheiros no ambiente doméstico, movidos pelo ciúme e em defesa de honra masculina por terem sido “abandonados” pelas parceiras. Ciúmes, separações por desavenças, alcoolismo, incompatibilidade de personalidade, adultério, eram, no século XIX, motivos para desencadear ofensas físicas e homicídios, tendo as mulheres como vítimas daqueles com os quais haviam compartilhado boa parte da vida.
Vale lembrar que o avanço da ocupação dos sertões no Brasil-Império contribuiu para aproximar as pessoas que tinham os mesmos interesses, oportunidades e necessidades. Quanto mais se ampliavam os contatos, mais conflitos, contradições e divergências surgiam nesse processo de formação da sociedade, no século XIX. Na província de Mato Grosso os conflitos eram constantes. A criminalidade se acentuava nas lutas pela posse de terras e pelo poder de mando, em uma época em que a Justiça, subsidiada pela burocracia imperial, procurava articular suas forças e alternativas jurídicas para manter as estruturas judiciais herdadas da época colonial.[3]
Ao analisar os processos criminais do século XIX, das comarcas ao sul de Mato Grosso, constata-se que o maior número de envolvidos com o aparato policial e jurídico eram os homens e mulheres pobres livres. Os homens aparecem como réus nos crimes de homicídios, defloramento, estupro, furtos e roubos, e agressão física, e as mulheres como vítimas nos crimes de agressão física, estupro e defloramento. A mudança provocada pela ocupação territorial incidiu diretamente no aumento da violência praticada contra as mulheres, em especial no ambiente doméstico. Atos de violência desencadeados por maridos, cônjuges, companheiros, amasiados e parceiros, mas também por homens que não aceitavam recusas de prostitutas no ato sexual.
A historiografia tem mostrado que por séculos as mulheres se mantiveram caladas diante de todo o tipo de violência a que foram submetidas. Entretanto, a partir do século XIX, passaram a denunciar as agressões contando com a punição dos réus, o que nem sempre aconteceu.
Em uma sociedade cujas estruturas de poder tinham como base a cultura patriarcal, formada desde a colonização, o mais comum foi valorizar a autoridade masculina na condução e manutenção da família nuclear, com agregados e escravos. Nessa condição, os homens mantinham o poder de controle dos comportamentos sociais, um poder que se estendia também aos moradores das vilas. Da mesma forma esse poder se instalou nas estruturas do judiciário. Assim, uma cultura patriarcal permeava não apenas as relações de gênero, mas também fortalecia as estruturas do aparato jurídico, dotando os homens de mais poder para julgar, aplicar e promover o acesso à Justiça, o que nem sempre ocorreu de forma equânime e imparcial.
O objetivo principal deste capítulo é analisar a produção do sentido de justiça nas relações de gênero nos processos criminais envolvendo mulheres livres e pobres com o aparato legal, como vítimas, ré ou testemunhas, na Província de Mato Grosso, mais especificamente no sul da província, no século XIX. Vale destacar que no século XIX, as relações de gênero eram marcadas por uma excessiva autoridade masculina assente nos discursos eurocêntricos e machistas de que os homens eram seres superiores e dotados de mais inteligência para resolver questões complexas, enquanto as mulheres eram vistas com seres inferiores, que nasciam para criar e educar os filhos. Estava posta a distinção biológica e social para homens e mulheres nas relações sociais da época.
Relações de gênero e violência em Mato Grosso no século XIX
Ao analisar as práticas e discursos produzidos na e pela justiça, na província de Mato Grosso, procuramos entender a questão do gênero “[…] no aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado” (Soihet, 1997, p. 101). É, portanto, a partir da relação homem/mulher que podemos conceber o gênero como um conceito operativo para a compreensão das divergências e contradições que regiam as relações entre homens e mulheres, no século XIX, na província de Mato Grosso.
O sul da província de Mato Grosso registrava baixo índice demográfico, característico do período da colonização, embora contasse com a presença das populações indígenas que habitavam o território mas não eram considerados pelos colonizadores como os primeiros habitantes da região. Algumas etnias mantinham relações de proximidade enquanto outras não pacificadas promoviam ataques ao colonizador branco em defesa do seu território e cultura. Empregando diferentes estratégias, o colonizador adentrou o território da província visando a exploração das minas de ouro. Assim,
Catequizar, civilizar e aldear foram mecanismos amplamente utilizados pela dominação branca para manter os comportamentos dos indígenas submetidos às normas e aos interesses daqueles que governavam a região e o Império. O sistema de apaziguamento do indígena propalado pelas autoridades locais denotava a quase inexistência de problemas para a aquisição e ocupação das terras. Com efeito, quanto mais se pacificava as nações indígenas mais valor era agregado à terra e ao gado e mais as relações de produção estreitavam os laços de dependência entre proprietários rurais, escravos, homens pobres livres e índios vivendo em terras mato-grossenses. Dessa forma, ampliavam-se também as múltiplas concessões políticas, jurídicas e econômicas entre homens, mulheres e as autoridades administrativas e judiciais, reforçando os vínculos de subordinação dos mais fracos ao mais dotados de capital político, jurídico e simbólico que podia se traduzir pela posse de terras e escravos. (Rodrigues, 2016, p. 31).
Localizado no centro-oeste brasileiro, Mato Grosso logo se destacou com as descobertas das minas de ouro, que atraiu a vinda de migrantes oriundos de outras regiões da colônia, mas também de imigrantes da América espanhola. Vieram homens com diferentes propósitos e condições. Pode-se dizer que a mineração intensificou a povoação, contribuindo para o surgimento das vilas produtoras de alimentos para atender mineradores, aventureiros, viajantes e representantes administrativos da coroa portuguesa. A população que se instalou na província acompanhando os colonizadores se concentrou, ao norte na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em São Luís de Cáceres e Vila Bela da Santíssima Trindade e ao Sul nas vilas de Corumbá e Miranda. Desmembrada da província de São Paulo em 1748, Mato Grosso conquistou sua estrutura administrativa, jurídica e política ao se tornar uma província, ainda que bastante precária dadas as condições de isolamento. As distâncias entre as vilas e a sede do governo colonial dificultava não apenas a cobrança dos impostos, mas também o trabalho dos operadores da Justiça e a vigilância do território, que não raro era frequentado pelos espanhóis em busca do ouro.
Nesse contexto, a justiça baseada nas leis vigentes na Metrópole e transposta para a colônia, as Ordenações, não eram suficientes para resolver os problemas locais, ainda que, posteriormente tenha-se promulgado várias “Leis Extravagantes” para atender as especificidades da colônia. Wolkmer observou que “nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil colonizado sob a inspiração doutrinária do mercantilismo e integrante do Império Português, refletiu os interesses econômicos da Metrópole e, em função deles articulou-se” (1999, p. 37).
Dessa forma, as leis aplicadas referendavam a manutenção da estrutura do aparato colonial, marcado pela “[…] polarização entre os imensos latifúndios e a massa de mão-de-obra escrava” (Wolkmer, 1999, p. 39), que se refletia na justiça criminal, baseada nas Ordenações Filipinas (1603), em especial nos preceitos e dispositivos presentes no livro V. Dessa forma, o decurso da história do direito português vigente na colônia, revelava que a legislação era marcada pelo caos jurisprudencial, mas também pelos princípios do mercantilismo, constituição de monopólios e contradições resultantes da formação social.
Vejamos. Em 1446, tomando como referência o direito romano e o canônico, os legisladores portugueses fixaram as Ordenações Afonsinas (1446) baseada na
[…] hierarquia de fontes do direito de forma a reafirmar a precedência das ‘leis do Reino, estilos da Corte e costumes’ sobre as demais; e se no âmbito da legislação pátria as questões ainda não encontrassem solução, recorria-se ao direito romano para as de ordem temporal desde que disso não resultasse nenhum ‘pecado’, e ao direito canônico tanto para as de ordem” espiritual quanto para aquelas de ordem temporal que as ‘leis imperiais’ não resolviam sem ‘pecado persistindo dúvidas; podiam os tribunais e os legistas se socorrer primeiro das Glosas de Acurcio, e depois dos Comentários de Bártolo, os doutores autorizados para interpretação do direito romano; falhando este recurso cabia ao Rei em última instância dar a ‘interpretação autêntica da lei’. (Coelho, 1999, p. 152).
As Ordenações Afonsinas puniam os crimes morais como o adultério. A desigualdade de gênero fundamentava a pena para o crime de adultério das mulheres, sendo mais pesada para elas do que para os homens adúlteros. Nas Ordenações Manuelinas (1521) mantiveram-se as condições de tratamento para com as mulheres que poderiam ser mortas, juntamente com o amante, pelos maridos ofendidos em sua honra.
As Ordenações Manuelinas, de 1521, apresentaram modificações que teriam implicações na estrutura de poder respaldado nas Ordenações, assim
[…] nas Ordenações Manuelinas guardou-se a hierarquia das fontes, mas com alterações importantes: o direito canônico passou a ser aplicado apenas nos tribunais eclesiásticos, dando-se primazia ao direito romano por fundado na ‘boa razão’ – a razão justa ou razão natural, aquela que conduzia à equidade e às ‘soluções mais humanas’; e os comentários de Acursio e de Bártolo seriam acatados apenas se a ‘opinião comum’ dos doutores, entendidos como a da ‘maioria qualificada’, a eles não fosse contrária. […]. (Coelho, 1999, p.153).
A mudança valorizou a figura dos juízes nas causas sob judicie, “[…] adotando-se mais tarde na prática forense o critério de tomar a praxe ou jurisprudência dos tribunais superiores como expressão da ‘opinião comum’, daí o prestígio das obras que recolhiam e comentavam tal jurisprudência, [..]” (Coelho, 1999, p. 153). Essa mudança mostrava que o Direito português vivenciava um processo dinâmico marcado pelas contradições e conflitos da sociedade do Antigo Regime. No entanto, no tocante ao Brasil-Colônia
O modelo jurídico hegemônico durante os dois primeiros séculos de colonização foi, por consequência, marcado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito alienígena – segregador e discricionário com relação a própria população nativa –, revelando, mais do que nunca as intenções e comprometimento da estrutura elitista de poder. (Wolkmer, 1999, p. 49).
As mudanças com o surgimento da imprensa e a importância dada à prática do julgar valendo-se da “boa razão” foram determinantes para a atualização das Ordenações Filipinas em 1603, que refletia a junção das Ordenações Manuelinas com outras Leis Extravagantes. Entretanto, as Ordenações Filipinas não resolveram a questão da “boa razão” como critério que conduziria à equidade e às soluções mais humanas nos conflitos sociais.
Também era controversa a interpretação da boa razão como critério de recurso ao direito romano como fonte subsidiária, e alguns juristas sugeriam que, se o entendimento era de que todo o Corpus Iuris Civilis fundava-se nesta “boa razão”, ela mesma poderia ser fonte subsidiária de direito. A resposta a tais questões seria fixada não nas Ordenações Filipinas, mas na Lei de 18 de agosto de 1769 durante o consulado do poderoso marquês de Pombal. […] A “boa razão” não se mostrou suficiente para compensar a falta de lei positiva. (Coelho, 1999, p. 153).
As não conformidades na legislação portuguesa, transposta para a Colônia, emperravam a organização do aparato jurídico, tornando-o um instrumento a serviço das elites hegemônicas agrárias. Vale destacar que
O governo português ultramar evidenciava pouca atenção na aplicação da legislação no interior do vasto espaço territorial, pois seu interesse maior era criar regras para assegurar o pagamento de impostos e tributos aduaneiros, bem como estabelecer um ordenamento penal rigoroso para precaver-se de ameaças diretas à sua dominação. (Wolkmer, 1999, p. 49).
No caso da província de Mato Grosso a aplicação da justiça oficial ficou a critério do arbítrio dos proprietários de escravos, terras e poder político-administrativo, que promoviam os castigos e a aplicação das penas. Era um sistema penal moroso e vacilante, marcado pelo desempenho dos “operadores hegemônicos da justiça oficial” (Wolkmer, 1999, p. 57).
Desse período à época da promulgação do Código Criminal (1830), o aparato jurídico promoveu a criação dos Tribunais de Relação, as Juntas de Justiça e a valorização da magistratura, com a figura do juiz ganhando relevância na aplicação das leis vigentes. Como observou Wolkmer “a legislação colonial brasileira negou e excluiu o pluralismo nativo, reafirmando ao longo das décadas da colonização um arcabouço normativo que serviu para legitimar o poder de mando das elites agrárias e dos operadores jurisdicionais a serviço da metrópole” (1999, p. 71).
No século XIX, impulsionados pelo liberalismo-conservador brasileiro, as elites hegemônicas trataram de adequar os princípios constitucionais aos interesses dos proprietários de terras e escravos, e da burocracia a serviço da monarquia imperial. Com a Independência do país, em 1822, nascia a emancipação da cultura jurídica, sobretudo a partir da homologação da Carta Constitucional em1824. De acordo com Edmundo Coelho,
Seja como for, quando da instituição do regime constitucional, o direito romano como fonte subsidiária já havia sido quase que inteiramente substituído em Portugal pelas leis das “nações que hoje habitam a Europa” – o código civil francês, o prussiano, o da Áustria e o da Sardenha. Isso posto, é improvável que ignorassem a origem do caos na jurisprudência portuguesas os constituintes brasileiros que mandaram a comissão na presença de D. Pedro I, solicitando-lhe que assinasse, aprovando-a, a Carta de Lei de 20 de outubro de 1823. Boa parte deles era de bacharéis ou doutores formados nos cursos jurídicos de Coimbra. Não podiam igualmente ignorar os indesejáveis reflexos da desordem jurisprudencial na administração da justiça, até porque já havia sobejamente se manifestado na administração colonial. (Coelho, 1999, p. 155).
Aos pouco o Brasil-Império avançava na consolidação da estrutura jurídica, ainda que, sob um modelo liberal-administrativo-elitista. Com o Código Criminal, estabeleceu-se um arcabouço baseado na “doutrina clássica penal, que também se afinava com o espírito liberal da época” (Wolkmer, 1999, p. 85). A consolidação dessa ordenação veio com o Código Criminal de Processo, em 1832, e retificado em 1841. Este instrumento jurídico veio “atestar nossa autonomia no âmbito do controle, ao mesmo tempo que reforçava as instituições liberais existentes, como o juiz de paz” (Wolkmer, 1999, p. 87).
Vale lembrar que o Código Criminal (1830) manteve por algum tempo a pena de morte, mais tarde modificada para prisão perpétua. Ambos os Códigos, de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832, apresentavam características que revelam a postura etnocêntrica, autoritária e excludente. Se o Código Criminal pecou ao não fazer referências aos negros e aos indígenas, ou porque os consideravam fora da sociedade ou porque estariam inviabilizados dentro da categoria de pobres livres (Wolkmer, 1999, p. 86), o Código de Processo Criminal vai manter o caráter conservador, em especial após a reforma de 1841.
As legislações aprovadas estimulavam a população a denunciar os crimes dos quais eram vítimas. Até mesmo uma escrava podia se sentir estimulada a denunciar seu senhor pela agressão física sofrida, como fez Joana por ter sido “espancada barbaramente” por João Batista Melo Coimbra, em 1886, na comarca de Paranaíba. Joana Preta (como foi registrada no inquérito policial) foi castigada por não realizar, segundo seu senhor, os serviços como ele ordenou. No exame de corpo de delito, solicitado pelo Promotor Público, constatou-se não haver “nenhuma cicatriz ou sinal de castigos corporais recentes”,[4] assim o juiz julgou improcedente a denúncia em virtude da declaração dos peritos. Ainda que houvesse sinais dos castigos, dificilmente uma mulher negra, escrava, conseguiria na Justiça a punição para o suposto réu branco e senhor de escravos.
Mulher honesta e honra: distinção e punição
Assim como as Ordenações, a legislação que foi sendo homologada no Brasil-Império também apresentava a distinção entre mulheres honestas e prostitutas. Este foi, durante séculos, um mecanismo amplamente utilizado para inocentar homens pelos crimes praticados contra mulheres honestas e não honestas. No Código Criminal (1830) a distinção se destaca nos seguintes artigos:
Art. 198 Si a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar sua desonra.
Art. 199 Ocasionar aborto por qualquer meio empregado interior ou exterior, com consentimento da mulher pejada;
Art. 219 Deflorar mulher virgem menor de dezessete anos;
Art. 222 Ter cópula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três a doze anos, e de dotar a ofendida.
Se a violentada for prostituta. Penas – de prisão por um mês a dois anos.
Essa distinção traduz a mentalidade da época, revelando que o mais importante era a condição social da mulher e não o crime em si. Dessa forma, a legislação vigente contribuía para hierarquizar a categoria mulheres baseando-se na condição socioeconômica e biológica e estimulava a desigualdade de gênero. Entretanto, cabe destacar que as mulheres eram tratadas como seres inferiores e submissas aos homens. Sendo uma “mulher honesta” ela ficava sob a tutela do homem e subjugada à dominação e autoridade masculina.
No caso de ser a vítima uma prostituta a pena de doze anos de prisão e dotar a ofendida era reduzida para dois anos de prisão. A distinção entre as mulheres no Código Criminal se dava em função da condição social da vítima e não do crime de estupro que violava o corpo feminino. Nos artigos 224, “Seduzir mulher honesta menor de dezessete anos e ter com ela cópula carnal” e art. 225, “Não haverão as penas dos três artigos antecedentes os réus que casarem com as ofendidas”; a mulher ficava sob a tutela e autoridade daquele que havia cometido o crime de estupro contra ela, mas podia escolher não se casar com o réu e ser banida socialmente do convívio social.
E, nada mais cruel para a vítima do que ter de se submeter ao seu algoz ou ser vista pela sociedade como uma mulher desonesta, impura, não virgem, sendo obrigada, em muitos casos, a se afastar da família e do convívio social. A legislação podia ser perversa com as mulheres, mas toda legislação reflete as estruturas de pensamento e comportamentos daqueles que a concebem. Assim, vale lembrar o que previam os artigos do Código Criminal (1830):
Art. 227 Tirar para fim libidinoso, por meio de afagos e promessas, alguma mulher virgem, ou reputada tal, que seja menor de dezessete anos, da casa do pai, tutor, curador, ou outra qualquer pessoa em cujo poder ou guarda estiver;
Art. 228 Seguindo-se o casamento em qualquer destes casos, não terão as penas.
Entre a prisão por três anos e dotar a ofendida, o casamento poderia ser a alternativa mais viável. No artigo 250 que tratava da questão da mulher que cometesse adultério, e o artigo 251 que especificava sobre o homem casado que tivesse concubina teúda e manteúda, existia uma diferença entre adultério e manter uma relação de concubinagem (Rodrigues, 2016). Neste caso o homem poderia ter relações sexuais com diferentes mulheres que não seria considerado adultério. Enquanto a mulher que tivesse relações com um homem fora do casamento seria considerada adúltera.
A legislação apresentava uma noção de honra ambígua e evasiva, pois a responsabilidade por sua preservação poderia caber tanto ao homem quanto à mulher. O Código Criminal previa punição para quem deflorasse mulher virgem menor de 17 anos (art. 219); se o que cometesse o estupro tivesse sob seu poder ou guarda a deflorada (art. 220); se o estupro fosse cometido por parente da deflorada em grau que não admita dispensa de casamento (art. 221); quem tivesse cópula carnal, por meio de violência ou ameaças, com qualquer mulher honesta (art. 222), mas as penas eram reduzidas caso a vítima fosse prostituta; até o artigo 228 o Código prescrevia punições para os réus, exceto se houvesse o casamento após a violência contra a mulher, em especial a mulher virgem e honesta. Mas ainda que o exame de corpo de delito e as testemunhas comprovassem a existência do estupro e/ou defloramento, que implicava na violência sexual contra o corpo feminino, os réus raramente eram punidos quando alegavam a honra ultrajada.
O processo criminal do estupro da menor Maria Rosa,[5] em 1883, é elucidativo sobre a questão. Denunciado por ter estuprado a menor, Moisés Candido recebeu ordem de prisão, foi pronunciado no grau máximo do art. 205 do Código Criminal, e não nos artigos que se reportam ao estupro. No exame de corpo de delito, os peritos comprovaram que a menina de 12 anos tinha sofrido violência para “fins ignorados”, que os mesmos encontraram “os dois (?) lascados para dentro com todos os tecidos e músculos que o reveste muito inchados e, portanto, respondiam sim, houve violência.” Dentre os cinco homens que testemunharam a favor do réu, apenas uma mulher fez um depoimento favorável à vítima. Na sentença, o juiz justificou sua decisão alegando:
[…] que o réu foi preso pelo crime que é acusado e que evadira-se quando destes autos não consta tal prisão e nem tão pouco a fuga dele e que considerando que o réu não tinha desavenças com a vítima e suas declarações (vítima) eram tardias e contraditórias, e que ele, juiz não estava convencido do delito e de quem era o delinquente, por isso julgava improcedente a denúncia do Promotor Público.
Embora o exame de corpo de delito provasse o contrário, o réu não foi culpabilizado pelo ato. O princípio da culpabilidade do réu que levava à punição nem sempre atingia aqueles que tivessem deflorado ou estuprado uma menor de 17 anos conforme previa o Código Criminal (1830). Caulfield (2005, 78) constatou que “definir os meios criminosos de defloramento – sedução, engano ou fraude – era pelo menos tão complexo quanto definir honestidade e defloramento”.
A questão da honra feminina foi tema polêmico entre os juristas, advogados, médicos e sociedade oitocentista. Viveiros de Castro lembrava que além da violência física causada pelo defloramento e pelo estupro, há que se considerar também a violência moral que é empregue pelo criminoso.
O delinquente não recorre neste caso à força física e sim às ameaças, não tolhe os movimentos da vítima, emprega meios que atuam sobre a moral, paralisando-lhe a resistência. Penetra alta noite no quarto de uma mulher audaz conquistador, desperta-a do sono e apontando-lhe o revolver intima a que se renda. O medo, o terror, produzidos pela brusca aparição e o brilho sinistro da arma, tolhem os movimentos da mulher, prendem-lhe a voz na garganta, não pode levantar-se, não pode gritar, pedir socorro. (Castro, 1942, p. 104).
O jurista concentrou-se em descrever as situações que poderiam acontecer com as mulheres da elite, ao contrário da realidade das mulheres pobres sem eira nem beira. As vítimas de estupro e defloramento das classes privilegiadas raramente denunciavam os criminosos. Preferiam manter silêncio para não ter de enfrentar o olhar de reprovação e censura da família e da sociedade. Até porque muitas ainda eram acusadas de ter seduzido o criminoso. No caso das meninas e mulheres pobres a situação era diferente porque elas estavam expostas o tempo todo às investidas dos supostos criminosos, e muito pouco podiam fazer para se protegerem.
Dessa forma, os processos-crimes mostram que os estupros e defloramentos de meninas pobres e órfãs menores de 17 anos tinham como características o emprego de promessas, violência física, ameaças de morte e o excessivo jogo de intimidações que punha em risco a honra e a vida da vítima. Além disso, os possíveis violadores eram os padrastos, tutores e parentes que praticavam o defloramento e os estupros das meninas e mulheres virgens pobres, vivendo em moradias simples, sem qualquer segurança que ficavam à mercê do criminoso. O crime podia acontecer durante o dia nos lugares ermos, nos lavadouros, nas residências onde as meninas e mulheres sem família buscavam trabalho ou abrigo, mas também era comum ser atraída para determinado local com falsas promessas e ser estuprada.
Em 1873, a menina Angélica Pedroso de Almeida[6] foi vítima de defloramento praticado pelo capitão Cecílio da Silva Lima quando estava na casa da professora aprendendo as letras. Chegando na casa, o capitão aproveitou-se da ausência da professora na sala para deflorar Angélica, menor de dez anos. A escrava que tudo viu relatou o ocorrido quando instaurado o processo-crime contra o capitão, mas uma escrava era apenas uma informante, não tinha peso de testemunha. O pai de Angélica lutou para provar que sua filha fora vítima de estupro. Ainda que o exame de corpo de delito tenha comprovado o defloramento e que o meio empregado fora “um dos dedos”, ainda assim a justiça alegou não ter havido o defloramento porque doenças sexuais femininas, como as tais “flores brancas” podiam apresentar as mesmas características do defloramento.
A honra de homens e mulheres se tornou uma grande preocupação dos juristas, médicos e políticos nas últimas décadas do século XIX. Esta questão estava relacionada com o “futuro cultural e político da nação” (Caufield, 2005, p. 61). Afinal, governantes e elites hegemônicas detentoras de poder vislumbravam uma nação cujo progresso marcaria o fim do escravismo e o embranquecimento da sociedade. Nesse contexto, as noções de honra feminina e honestidade passaram a compor os debates pelas definições e legitimidade das leis na aplicação das penas nos crimes sexuais, consequentemente, na fixação das identidades sociais e psicológicas das vítimas, de criminosos e não criminosos. Longe de chegarem a um consenso sobre as noções de honra feminina e masculina, honestidade e moralidade, os juristas e políticos que elaboraram o Código Criminal de 1830, mantiveram-nas dentro das antigas concepções das Ordenações Filipinas (Rodrigues, 2012, p. 191).
Pode-se encontrar na série de títulos destas Ordenações onde aparecem as representações sobre o papel atribuído para o sexo masculino e feminino. Além disso, o livro V também prescrevia as condutas adequadas para homens e mulheres, criminalizando os atos considerados inadequados aos padrões da sociedade da época. De acordo com Rachel Soihet
[…] a criação inteiramente social das ideias sobre os papeis próprios aos homens e às mulheres. O “gênero” sublinha também o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado” (Soihet, 1997, p. 279).
Termos como mulher honesta, honra e virgens aparecem nas Ordenações Filipinas relacionadas à ideia de manutenção da honra e moral femininas, critérios atribuídos ao comportamento sexual das mulheres. Assim, constata-se que legislação, desde o período colonial, contribuía para manter as desigualdades sociais e de gênero à medida que valorizava as práticas conservadoras e patriarcais, excludente, burocrática-patrimonialista e pouco democráticas. Nem sempre o sentido de justiça que começava a ganhar importância no Brasil Império foi consoante com as expectativas da maioria da população que esperava por Justiça. Muitas das categorias sociais não se sentiam contempladas na aplicação das leis. Este era o caso dos indígenas, negros, libertos ou não, mulheres e os considerados anormais, que estavam excluídos da e na Justiça.
Cabe destacar que no século XIX, a preservação da honra ainda era uma responsabilidade feminina. Cabia às mulheres manterem-se recatadas no ambiente doméstico e nos espaços públicos. A condição feminina de subalternidade como ser inferior na escala social foi o fundamento basilar para impor às mulheres limites de ação e de escolhas desde o século XVIII. Até o século XIX, ainda havia quem defendesse a ideia de que a mulher era um ser inferior na escala social. A partir do sexo, ou seja, das características biológicas, os seres humanos eram classificado como seres inferiores e superiores, e as mulheres nesta classificação eram inferiores aos homens, por isso os homens detinham o direito de exercer uma vida pública. Para eles, como constatou Michelle Perrot (2005, p. 468) em seus estudos na França, o espaço da política; para elas o espaço doméstico, o lar, o ambiente dos afazeres domésticos.
A observância das regras instituída e simbólica que regiam a vida em família autorizava os homens a assumirem a divisão dos direitos e obrigações dentro do núcleo familiar, por conseguinte distribuir as responsabilidades pela manutenção do status quo do grupo como um todo diante da sociedade mais ampla. Às mulheres cabiam a preservação da honra e as orientações educacionais dos mais jovens, em especial, dos filhos. Contudo, pelos inúmeros casos de violência doméstica contra as mulheres podemos auferir que os fenômenos da criminalidade e do crime funcionavam como um desequilibrador das forças existentes no grupo familiar. Ao privilegiar a honra dos homens e punir severamente a infidelidade feminina, por exemplo, a própria justiça reafirmava o uso recorrente da violência como parte essencial na resolução dos conflitos entre os membros familiares. (Rodrigues, 2012, p. 215).
Importante destacar que no século XIX os homens recorriam à defesa da honra em crimes praticados contra mulheres, em especial quando estes ocorriam em ambiente doméstico, entre os cônjuges e/ou amasiados.
Os autos do inquérito policial envolvendo Jovita Pedrosa, vítima de duas facadas desferidas por Lucio D’Azis, revelam que o crime praticado não poderia ter outro resultado que não fosse a parcialidade na punição ao réu.[7] Afinal todos os testemunhos confirmaram que o réu perseguiu e esfaqueou Jovita, mas ninguém soube “dizer” o motivo que o levou a cometer o crime contra uma mulher de conduta “duvidosa”. O julgamento foi realizado pelo Tribunal do Júri e prevaleceu na decisão final a parcialidade dos jurados, com pena favorecendo o réu. Ao pronunciar a sentença, o juiz alegou que a resposta negativa ao 4.º quesito justificava uma pena reduzida. O 4.º quesito perguntava “se o réu teria cometido o fato criminoso?” Dos 12 jurados, 6 responderam que sim e 6 responderam que não. Assim o juiz pronunciou que:
Em conformidade com a decisão do Júri e disposto no artigo 332 do Código de Processo Criminal atendendo ao empate sobre o 4.º quesito, empate que importa decisão negativa e visto que não ser reconhecida nenhuma circunstância atenuante condeno o réu Lucio D’Azis a seis meses e quinze dias de prisão simples e multa correspondente a metade do tempo, pena esta de grau médio do art. 201 do Código Criminal e que o réu cumprira na cadeia desta vila, […].
Há que se considerar que como parte das estruturas do Estado que se organizava, a Justiça, dotada de poder para mediar e resolver os conflitos, seguia os trâmites estabelecidos pela legislação, mas podia nesse exercício favorecer os réus homens em detrimentos das vítimas mulheres. Mantendo a premissa de moralizar as pessoas como bem maior para a sociedade, os homens procuravam manter as mulheres afastadas dos espaços públicos, procurando com isso resguardar a honra feminina e masculina também. O Júri Popular era composto apenas por homens. As mulheres eram impedidas pela legislação e costumes de participar do Tribunal do Júri. Assim, as sentenças estavam em conformidade com a manutenção da desigualdade de gênero, prevalecia nos julgamentos a assistência paternalista ao sexo masculino, sem o sentido pleno de justiça. Isto estimulou atitudes discricionárias e a exclusão social fundamentadas por princípios sexistas, raciais e classistas (Caufield, 2005, p. 237).
A máxima proferida por José Francisco Cardoso, presidente da província em 1871, revela quais eram as intenções dos dirigentes da província:
[…] moralizar mas não corromper o delinquente, eis um grande problema social, por que senhores, a sociedade não se vinga, pune – e a punição não ultrapassa os limites traçados pela própria dignidade humana, pelas leis de todos os Estados – e pelos generosos estímulos do coração.[8]
Era necessário ter uma aplicação cautelosa e parcial das penas, afinal a maioria das punições eram aplicadas aos homens que investiam seus esforços e riquezas na província. Precisavam agir com prudência na distribuição da justiça, nas sentenças e castigos para não criar um conflito de interesse. O criminoso enquanto ser individual devia ser responsabilizado pelos seus atos, o que pressupunha que para cada crime uma pena e a cada criminoso uma sentença. Se o crime é visto como um dano social, a questão da periculosidade deve ser encarada como uma das virtualidades de cada criminoso.
Nesse sentido, a sociedade não se vinga, ela pune dentro dos limites consagrados pelas leis do Estado e pelos padrões de ordem estabelecidos e sancionados por aquele cuja autoridade é reconhecida pelos demais que compõe o todo maior. A questão da ordem, que não é nada simples, perpassa por toda a estrutura da sociedade e se revela nos documentos produzidos na época. Assim, seus significados vinculam-se aos laços paternalistas assentados na moral cujo ideal de ordem referendava os discursos e as relações sociopolíticos, pois objetivo primordial da elite local, nesse período, era estabelecer a ordem legal segundo os padrões morais da classe dominante.
Assim, os discursos oficiais produzidos pelas autoridades jurídicas e administrativas, trazem implícitos o jogo de interesses entre políticos, autoridades, indivíduos, grupos, representantes dos governos, mas sobretudo daqueles que comandavam a política local e detinham o poder de mando. Daí a importância de analisar os discursos conforme o contexto histórico de sua produção. Neste caso o discurso evidenciava que no cotidiano os homens que ocuparam cargos políticos e administrativos, na província de Mato Grosso, buscaram estabelecer nexos entre moralidade e corrupção, entre justiça, punição e leis, uma “moralização sem corrupção”. Vale lembrar que a moral nesse período associava-se aos preceitos religiosos, à honestidade, aos comportamentos ilibados, à decência e aos bons costumes, em outras palavras, ao aprimoramento das virtudes humanas e das boas relações sociais. (Rodrigues, 2012, p. 92-93).
Nesse sentido, os homens e seus representantes legais buscavam legitimar os atos de violência doméstica praticados contra mulheres, esposas, amasiadas, concubinas, por meio da defesa da honra; a alegação era da honra masculina ultrajada pela mulher que se recusara a manter relações sexuais, por exemplo. Sobre a questão da violência contra as mulheres Michele Perrot (2005, p. 468) argumentou que na “dimensão maior da história das relações entre os sexos, a dominação dos homens sobre as mulheres, relação de forças desiguais, expressa-se frequentemente pela violência”.
Conclusão
O fato de ter a mobilidade reduzida pelos costumes e códigos de postura para atuar nos espaços públicos, não as manteve segura de crimes como o estupro, pois não era incomum o algoz ser aquele com quem a vítima convivia por anos no mesmo ambiente.
A definição nos Códigos Criminal (1830) e de Processo Penal (1832) das palavras estupro e defloramento revelava a importância e gravidade dessas tipologias criminais para a sociedade que se formava. Além disso, a inserção dos termos traduzia uma linguagem, uma disciplina, um conceito e uma metodologia de análise que visava articular a definição com outras ideias que perpassavam o conjunto social. É inequívoco que o estupro é uma forma de violência física que produzia e produz graves problemas psicológicos, sociais e até mesmo neurológicos para as vítimas, geralmente meninas e mulheres, mas também meninos. Visto pela sociedade como um ato ultrajante da violação da liberdade sexual, que vai além da violência contra o corpo, o estupro “realmente despersonaliza, e, como em nossa cultura atual nossa identidade sexual é considerada uma parte tão importante de nossa identidade pessoal, a ofensa do ato é multiplicada.” (Tomaselli & Porter, 1992, p. 26).
O estupro era uma “mancha” perene para a honra das mulheres, dos homens e das famílias das vítimas. Assim, somadas as questões da honra masculina, mais do que a honra feminina, afinal eram as mulheres que deveriam cuidar para não “manchar” a honra do homens, os discursos presentes nos processos criminais contribuíam para fortalecer as desigualdades de gênero na sociedade sul mato-grossense no século XIX. As mulheres, vítimas dos espancamentos, facadas, tiros, torturas e ofensas psicológicas ficavam à mercê de um aparato policial e jurídico que nem sempre atendiam às denúncias conforme a legislação vigente. Estas evidências são facilmente identificáveis, pois os discursos masculinos eram enfáticos quanto à defesa da honra.
Cabe ainda lembrar que durante a maior parte do século XIX, perdurou o mito da mulher subserviente, dócil e frágil, uma cultura centrada no patriarcalismo (Freire, 2002, p. 96), o qual fundamentou a divisão sexual dos papéis sociais em consonância com as necessidades materiais, mas, principalmente visando a manutenção do controle do comportamento feminino na sociedade capitalista em processo de expansão.
Podemos dizer que embora tenha havido significativas mudanças sociais influenciadas por diferentes fatores, o estereótipo da mulher passiva permaneceu e continuou sendo utilizado para estabelecer de forma conveniente os usos dos espaços públicos e privados para homens e mulheres, servindo inclusive para determinar as funções que caberia a cada um dos dois sexos nos espaços de interação social. Vale lembrar que para obter resultados positivos nessa dominação dos papéis sociais, os grupos dominantes implementaram diferentes mecanismos de controle e vigilância (Foucault, 2003) dos comportamentos femininos e dos considerados subversivos da ordem pública.
Assim, fica evidente que a manutenção das desigualdades sociais e de gênero se acentuavam à medida que se valorizava as práticas conservadoras e patriarcais, excludente, burocrático-patrimonialistas e pouco democráticas. Nem sempre o sentido de justiça que começava a ganhar importância no Brasil-Império atendeu às expectativas da maioria da população que buscava na Justiça, a justiça. Para determinadas categorias sociais a Justiça existia apenas como instrumento de punição para os mais pobres e destituídos de poder, este era o caso dos indígenas, negros, libertos ou não, mulheres e os considerados anormais.
Por fim, vale destacar que, embora a legislação brasileira tendesse a confirmar a representação do papel feminino como um ser submisso e dependente de um homem, pai ou marido, os processos judiciais revelam que muitas mulheres enfrentaram o desconhecido universo jurídico para demandar suas denúncias de agressão, insultos e maus-tratos praticados pelos parceiros ou membros da comunidade numa época em que as mulheres não possuíam direitos civis, políticos ou sociais.
Referências
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Coelho, E. C. (1999). As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Record.
Filgueiras Junior, A. (1876). Código Criminal do Império do Brasil de 1830. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert.
Foucault, M. (2003). Ética, estratégia, poder-saber. Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitário.
Freire, G. (2002). Casa-grande & senzala. 46.ª ed. Rio de Janeiro: Record.
Mattos, I. R de. (2004). Tempo Saquarema. 5.ª ed. São Paulo: Hucitec.
Perrot, M. (2005). As mulheres ou os silêncios da história. Tradução Viviane Ribeiro. Bauru, São Paulo: EDUSC.
Rodrigues, M. A. Z. (2012). Criminalidade e relações de poder em Mato Grosso 1870-1910. Jundiaí, São Paulo: Paco Editorial.
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Scott, J. (1991). História das mulheres. in Burke, P. (Ed.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, p. 63-96.
Soihet, R. (1997). História, mulheres, gênero: contribuições para um debate. In Aguiar, N. (Ed.). Gênero e ciências humanas: desafios da ciência desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
Tomaselli, S.; Porter, R. (Eds). (1992). Estupro. Rio de Janeiro: Rio Fundo.
Wolkmer, A. C. (1999). História do Direito no Brasil. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Forense.
- Chianezi, Mariane. Mulher de 26 anos é assassinada a facadas pelo ex-marido na frente da filha (7/9/2020). https://bit.ly/3BK1WWh↵
- Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Processo Criminal (1889). Caixa16. Processo nº 04, ofensa física, comarca de Paranaíba.↵
- Rodrigues (2012) analisou os processos criminais do século XIX nas comarcas localizadas ao sul da Província de Mato Grosso considerando as tipologias de ofensas físicas, homicídios, defloramento e estupro, furtos e roubos, no período de 1870 a 1910. ↵
- Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Processo criminal (1882). Caixa 116. Processo n.ᵒ 20, ofensa física, comarca de Paranaíba.↵
- Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Processo Criminal (1883). Caixa 18. Processo n.ᵒ 18, defloramento, comarca de Corumbá. ↵
- Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Processo criminal (1873). Caixa 146. Processo n.ᵒ 06, defloramento, Comarca de Corumbá. ↵
- Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Processo criminal (1873). Caixa 146. Processo n.ᵒ 02, comarca de Corumbá.↵
- Relatório apresentado pelo Presidente da Província de Mato Grosso o Sr. Tenente Coronel Francisco José Cardoso Junior, à Assembleia Provincial em 20 de agosto de 1871 (1871) . Cuiabá: Typ. Souza Neves & Comp. a [n.d], 422, p. 13. Center for Reserch Libraries Brazilian Government Document Digitization Project. Provincial Presidential Reports (1830-1930) – Mato Grosso. Fundação Andrew W. Mellon. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/422/000013.html. Acesso em: 08 de março de 2022. ↵