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9 As polícias militares nas páginas
de Militia

1947-1964

André Rosemberg

No último bimestre de 1947, em sua edição de estreia, a revista Militia apresentava, logo no frontispício, as balizas do seu compromisso: “[a revista] destina-se precipuamente a tratar de assuntos da Força Pública de e de seu Clube de Oficiais, difundindo notícias e conhecimentos técnicos policiais-militares, assuntos culturais de Ciência, Filosofia e Artes, e bem assim debates sobre problemas de interesse geral”. Advertia aos interessados a interdição a “trabalhos político-partidários ou religiosos-sectários”.

O reflexo desse programa amplo vinha estampado no sumário do número inaugural, e se estendeu com pequenas variações de estilo, periodicidade e tamanho até julho/agosto de 1964, 103 edições depois, sempre encerrada no formato de 22cm X 15cm, fornida com mais de 80 páginas.

No primeiro número, aos leitores foram oferecidos 33 textos divididos em temáticas que podem ser agrupadas na seguinte tipologia: assuntos corporativos (questões relacionadas ao trabalho dos policiais: salário, aposentadoria, legislação, benefícios); profissionais (questões relacionadas à função e ao papel social da polícia e dos policiais na sociedade: unificação das polícias, subordinação ao Exército, relação com as outras corporações policiais); técnicos (formação psicológica, treinamento); políticos (questões relacionadas à política brasileira: petróleo, carestia de vida, greves, eleições, direito a voto); históricos (reminiscências, causos, memórias, história oficial); notícias (promoções, falecimentos, cursos, questões institucionais, festas/comemorações, visitas de autoridades, exames, concursos); vulgata científica (sociologia, psicologia, ciência); cultura (literatura, cinema, poesia, teatro, viagens); entretenimento (página feminina, quadrinhos, passatempo, pensatas, poemas); esportiva (torneios, jogos, resultados dos quadros e policiais da Força Pública).

Em meio à miríade de assuntos publicados, interessa-nos neste artigo dar atenção àqueles de teor corporativo, político e profissional. Com isso, visa-se observar a maneira pela qual os policiais-escritores se serviram de Militia como tribuna privilegiada para expor a um público-alvo diversificado a relação que entretinham com a instituição a que pertenciam.

Da lavra de policiais –oficiais, em sua grande maioria (não foram localizados mais que dois artigos escritos por praças ou inferiores)– os textos de Militia versavam sobre temas espinhosos que diziam respeito ao lócus institucional ocupado pela Força Pública de São Paulo (e pelas polícias militares, em geral) na sua relação com outras corporações policiais (Polícia Civil, polícias municipais) e com o Exército; sobre as (duras) condições de trabalho dos milicianos; e sobre aspectos da política brasileira. Serviu de tribuna para reivindicações profissionais, publicadas com variado grau de ênfase. Suas páginas prestaram-se também de palanque para posicionamentos políticos, modelados pela gravidade dos eventos que se sucederam entre 1947 e 1964.[1] Por fim, Militia deu eco à voz de policiais militares em busca da construção de uma identidade própria, um lugar autônomo e reconhecível –pelos milicianos e pela população– em meio a um cenário de disputa onde se arrostavam as diversas instituições policiais e o Exército num período de reconstrução da ordem institucional após a debacle do Estado Novo.

O arco cronológico durante o qual Militia foi publicada abarca os anos da chamada “experiência democrática” (governos Dutra, Vargas, Kubistcheck, Jânio e Jango), tempos de graves agitações nos bastidores do poder e também no campo social.[2] Compreende também o final dos anos de 1950 e começo dos anos 1960, quando a Força Pública experimentou um período de grande contestação das condições político-profissionais da parte dos inferiores e do baixo oficialato, incluindo graves episódios de insubordinação, que culminou com a greve da Força Pública em janeiro de 1961.[3]

Uma nova polícia

No clima apologético do primeiro número de Militia, um texto introdutório assinado pelo então capitão Arrison de Souza Ferraz, dos mais assíduos colaboradores da revista e comandante da Força Pública no final dos anos de 1950, traçava os novos rumos da instituição: “A nossa Revista precisa ser dinâmica. A Força Pública tem realizado com a rapidez do raio, em múltiplos setores. Em aprimoramento profissional, cooperativismo e assistência social, sua obra foi e está sendo inigualável”.[4]

Na mesma edição, em artigo apócrifo, assinado por Centurião, exprimiam-se as auto-expectativas que recobriam esse novo papel a ser desempenhado pela Força Pública, num contexto de pós-guerra e da queda do Estado Novo.[5] Sob o título “O Nosso Partido”, o texto reconhecia que a Força Pública perdera o verniz que a abrilhantava durante a Primeira República, quando foi considerada por Rui Barbosa um “padrão para o país”. Os motivos do declínio foram prontamente revelados por Centurião: debitava-se na conta do envolvimento com questões políticas, que a desviaram de seu papel fundamental, a saber, a defesa do “interesse público”. Para o autor, a Força Pública devia obedecer cegamente a Constituição Federal, o “Evangelho Mestre”, mantendo conduta adstrita à lei e à ordem. Antes de 1930, prossegue, a milícia, por se curvar a pressões políticas, tornou-se conhecida por um “precário espírito democrático”, sintetizado pela “sentença de sabedoria discutível” de Washington Luiz, “a questão social é um caso de polícia”.

O pós-guerra abria a oportunidade de regenerar a corporação, que foi reencaminhada às lides policias. Entretanto, a turbulência política dos anos anteriores, obrigaram a Força Pública a retomar funções de segurança interna, o que reacendeu as críticas da imprensa e da sociedade – “parece que nem sempre a tarefa de vender a nossa mercadoria tem sido executada com o necessário cuidado”. Ainda que houvesse preferências políticas de matrizes variadas no seio da tropa, “como homens públicos, o que nos interessa acima de tudo é a Lei”. Em reforço do argumento, Centurião perora: “Pondo-se fora da Lei o instituto se desprestigia. Dentro de uma organização de serviço público, não há políticos”.[6]

O povo –“que nos paga”– saberá reconhecer o policiamento isento. E o respeito se traduzirá pelo apoio “às nossas reivindicações […] de ampliação das atribuições, de aumento de efetivos, de melhoria de vencimentos, etc”. Demonstrava-se com essas observações o receio da concorrência de outros corpos policiais, notadamente a Guarda Civil, surgida no bojo das reformas pós-revolução de 1924. Centurião conclui: “Temos, não há dúvida um partido. Esse partido se chama Partido da Força Pública de S. Paulo […]”.[7]

Para o autor, o retorno às atividades de policiamento, ainda que guardado o espírito nobre do militarismo, o respeito às premissas democráticas e constitucionais, a neutralidade política, conquanto resguardadas as inclinações individuais, incluído um tímido mea-culpa das exações do passado prenunciavam uma nova aurora para a Força Pública, imbuída do espírito democrático do novo tempo. É essa a toada que guiará o mote dos artigos publicados nos anos subsequentes.

Unificação e Federalização

Inserida no império da Lei, que ditava os rumos do país pós-Estado Novo, uma reivindicação marcou, sempiterna, as edições de Militia: a luta pela reforma da Lei Base das polícias, cuja vigência datava de janeiro de 1936. A Lei 182/1936 regulava as funções das polícias sob a égide da Constituição Federal de 1934. A grande reclamação dos milicianos era a obsolescência daquelas prescrições, à luz do novo tempo que se descortinava, no plano interno e internacional, com o fim da ditatura varguista e o término da Segunda Guerra.

As três maiores reivindicações das polícias militares estaduais –não apenas da Força Pública paulista– eram a federalização, a unificação e a elaboração de uma lei regulatória que substituísse a norma vetusta. Durante os quase vinte anos de existência da revista, esse foi um tema multifrequente, aventado em editoriais e textos autorais.

No artigo “Unificação das Corporações Policiais em Cada Estado”, o capitão Orlando Xavier Pombo, da Polícia Militar do Paraná, alinhava os principais argumentos da tese: “Há necessidade urgente da unificação do serviço policial. Não se pode compreender a existência num mesmo Estado, numa mesma Cidade, um mesmo Território, de diversos organismos obedecendo normas diferentes, a caminhar convergindo para um mesmo ponto, na ânsia de cumprir idêntica missão policial […]”.[8]

A análise do policial paranaense se consubstancia em dois pilares: a necessidade de as polícias militares se decalcarem do Exército e, consequentemente, da instrução eminentemente marcial; e a padronização das corporações em todas as unidades federativas. Essa medida só seria alcançada, no depoimento do capitão (e de vários outros), a partir da elaboração de uma lei regulatória específica.

O segundo tenente Francisco de Assis Veloso, da Polícia Militar da Paraíba, relacionava a situação do país em 1948 com a necessidade de mudança do sistema policial. “A pátria encontra-se esquelética por falta de indústria, estradas de ferro, habitação e trabalho […]. Faltam-lhe civismo e fecundidade”, escreve. Tais circunstâncias tinham reflexo negativo nas polícias estaduais, que “possuem atualmente organização semelhante à do Exército, a qual não é adaptável à árdua missão policial que exige, para tão grave empenho, conhecimentos insofismáveis de sua especialização”. Os novos tempos exigiam a adstrição à função primordial das corporações, a “missão policial”.[9]

“Nessa nuvem de desorientação”, prossegue o segundo tenente, “vivem as Polícias Militares do Brasil uma vida de incertezas e desprestigiadas, não sabendo o que são nem o que têm a fazer”. Qual a solução possível nesse período em que “nosso povo ainda não se adaptou à forma de governo democrático”? A resposta é óbvia: “Trabalhemos, pois, pela nossa unificação para maior progresso do Brasil […]. Com tais medidas, bem sei, que chegaremos à Federalização”. Para o tenente, a federalização conduziria à alteração “na mentalidade policial que, em atrasados rincões do Brasil, ainda segue ao sistema empírico de nossas primitivas polícias”.[10]

Construção de uma identidade

O diagnóstico do problema a ser enfrentado era unânime e repercutia em várias corporações estaduais. Em uníssono, apontavam-se como solução a unificação das diversas polícias sob a batuta da Polícia Militar de cada estado e a federalização, a partir da padronização de instrução, técnicas, uniformes, hierarquia, sob a supervisão de uma entidade federal. E atingir tal objetivo dependia da elaboração de uma lei específica que regulamentasse a atividade dentro do novo quadro constitucional e delimitasse as funções das polícias. Fazer aprovar no congresso uma Lei Básica tornou-se o Rubicão a ser vencido pelos engajados policiais que escreviam em Militia. De 1947 a 1964, abraçaram a causa e entabularam uma luta política que mobilizou várias frentes.

Uma Lei Básica embasada nos interesses corporativos das milícias ajudaria a delinear, institucionalmente, os parâmetros de uma identidade policial militar a ser forjada num novo contexto de país e de mundo. A Constituição Federal de 1946 reordenava a ordem democrática que havia sido suprimida durante o Estado Novo. Administrativamente, devolvia às unidades federativas parte da autonomia que havia sido suspensa no regime anterior. A combinação dessas duas circunstâncias – o contexto democrático e a descentralização – moldou o artigo constitucional que delineava os novos parâmetros legais e normativos que enquadrariam as polícias militares. Em seu artigo 183, a Constituição de 1946 determinava: “As polícias militares, instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas como força auxiliares, reservas do Exército”.

A premissa um tanto quanto genérica abria uma gama complacente de interpretações a respeito da missão a ser cumprida pelas polícias militares, que envolviam, grosso modo, “segurança interna e manutenção da ordem” e a situação de hierarquia em relação ao Exército, como sua “força auxiliar e reserva”. Pois, da vaguidão legal, à Força Pública era necessário encontrar um Norte, um lugar na nova composição sócio-política que a permitisse se apropriar de uma liderança moral a fim de reconduzir o país nos trilhos do saneamento do rescaldo autoritário. Um dilema que se sintetizava no processo genealógico-histórico das polícias militares no Brasil: somos polícia ou somos um braço do Exército? Por trás dessa dúvida, se abriam outras questões essenciais: os métodos de instrução, a relação com a comunidade política, o contato com a população, as divisões hierárquicas internas e com os outros corpos policiais, a disciplina.

Enveredando-se por argumentações filosóficas, os textos buscavam preencher esse vácuo identitário. Se queixas havia da qualidade do policiamento na cidade de São Paulo, era “porque [a Força Pública] está entregue a serviços bélicos, quando sua missão primeira é de policiar”, conforme escreveu o primeiro tenente Monte Serrat Filho.[11] O policiamento –a manutenção da ordem pública interna– deveria ser a função primeira das polícias militares. O capitão Jaime dos Santos, no texto “As Polícias Militares e o Exército”, resume bem o paradoxo: “A falta de uma definição exata e lógica dos limites de suas obrigações militares, foi lançada a Força Pública paulista em programas de instrução que lhe deformam, distorcem as características funcionais que deverá apresentar”.[12]

No editorial do número 42, de dezembro de 1953, Militia clamava que se encontrasse “um rumo certo e definitivo” para a Força Pública.[13] A revista oferece um breviário de três pontos para sanar a situação: a) manutenção das características militares, “como meio à inteira consecução da hierarquia, da disciplina, da ordem e do respeito às leis”; b) organização flexível, necessária a cumprir “as múltiplas missões policiais a que se destinam […]”; c) seleção e formação, “com esmero”, dos quadros e da tropa, “dando realce à especialização de seus homens”.

Havia um amplo movimento a fim de promover o lado policial das polícias militares, evitando que elas não se recolhessem aos “quarteis para ser empregada[s] apenas em encargos bélicos ou eventuais missões policiais à mão armada […] o que seria colocar esta[s] corporação[ões] numa situação quase parasitaria […]”.[14]

A função policial da Força Pública permanecia na nostalgia geral. Em editorial, Militia rememorava a rotina de um policial da Guarda Cívica, atuando em 1913, cuja figura ilustrava a capa daquela mesma edição. “Era a polícia preventiva em ação. Mas, paulatinamente, foi desaparecendo das ruas esse tipo de policiamento, cuja necessidade, dia a dia, se torna mais imperiosa”.[15] O capitão João Vieira Matos relembra a figura do Quimba, o guarda civil, que os anos de 1920, “velava por nossa segurança”.[16] Segundo o capitão, “tínhamos um policiamento efetivo, permanente, diuturnamente feito por homens fardados. Policiamento que víamos e sentíamos”. Passou-se a se assistir a uma depreciação moral dos costumes do paulistano. São “delinquentes em potencial e incentivados pelo meio”, escreve o capitão Matos. Cabia, então, aos policiais a vigilância constante: “Impõe-se a volta da Força Pública ao serviço de policiamento, pela forma como era executado pelos admiráveis policiais daqueles tempos idos […]. Vamos delimitar funções de maneira harmônica e em benefício da coletividade […]”.[17]

A função policial a ser desempenhada pela Força Pública extravasaria o mero serviço de manutenção da ordem. Por trás do trabalho mais pedestre, pairava um nítido senso de missão, um impulso civilizador. A polícia, em visagem dramática, é “Escrava do Dever”, conforme rezava o título de artigo escrito pelo coronel Peres Barbosa: “Amamos a nossa missão policial porque sabemos que ‘policiar é civilizar’, é defender a saúde do organismo social, é um sacerdócio como o da medicina, porque o polícia é o médico moral da sociedade […]”.[18]

“Somos os guardiões da lei […]”, escreve o capitão Olívio Franco Marcondes, em texto puxado ao lirismo. “O sono do recém-nascido, o labor do adulto, o sossego da velhice, não podem prescindir da nossa vigilância permanente, ativa e indormida”.[19]

O tenente coronel Otávio Gomes de Oliveira relembra que até 1924, São Paulo “era uma cidade policiada e a sua Força Pública, a desbravadora dos sertões inóspitos, no campo do saneamento moral e social”.[20] Os acontecimentos políticos da Revolução de 24 desviaram a Força Pública da sua trilha de origem, forçando-a a abandonar “sua função de policiamento da Capital e do Interior paulista para derramar o seu precioso e nobre sangue em holocausto à Pátria […]. Era a missão da Segurança Nacional sobrepondo-se à policial”. A instrução passou a privilegiar as liças militares, “cuja missão é matar para preservar, em contraposição à policial, que é preservar sempre, salvo em legitima defesa sua ou de outrem”.

O “confisco” das polícias militares pelo governo central durante o governo Vargas forçou uma aproximação indesejada com as Forças Armadas. A reabertura democrática implicava o resgate de valores expirados com a manobra centralizadora. No meio do caminho, entretanto, a polícia perdeu seu Norte. As falhas na administração institucional e o descaso político transformaram “o mantenedor da ordem, nesse JUDEU ERRANTE [sic], cuja sina é percorrer o hinterland […], sem rumo certo, sem missão definida e sem garantia de estabilidade, moderno Ahasverus perdido no intrincado sistema policial do Estado […]”, escreveu Orlando Xavier Pombo.[21] Tornava-se imperioso reaprumar o rumo descarrilado. A Constituição Federal de 1946 erigiu as vigas mestras que sustentariam a potência das polícias. Entretanto, a prática se mostrava decepcionante. A despeito da firme orientação constitucional, que elevava o protagonismo das polícias militares em relação às outras corporações de polícia – “é ela a responsável pela manutenção da ordem, cabendo, implicitamente, às outras polícias porventura existentes, com ela cooperar” – o que se via sobre o terreno era “uma total inversão de papeis”.[22] 

Afinal, sobre o policial pairava uma aura de respeito, sobretudo nos “sertões do nosso país, [n]as regiões afastadas”. O cenário descrito pelo deputado Arruda Camara nos debates parlamentares em torno da votação da Lei Básica das polícias militares em 1960, reproduzidos por Militia, era quase idílico – o policial portador de uma autoridade natural.[23]

“[…] apareça no meio de uma feira um soldado, armado e bem fardado com sua roupa caqui […]. Em sinal de respeito ao policial que eles dizem: ‘Encarna a lei’. Quando este soldado ou oficial é um homem de fibra, um homem educado, justo, ele tem verdadeira consagração, verdadeira veneração no interior […]. Ao lado do juiz e do vigário, ele pacifica dissídios conjugais, ele harmoniza pessoas que se tornaram inimigas e resolve até questões de terras […].[24]

No mélange entre a autoridade da farda cáqui e da encarnação, quase sobrenatural da Lei, o policial militar não é um simples soldado, e, devido a tal condição, não pode ser simplesmente absorvido pelo Exército, colocado a serviço subalterno das Forças Armadas. Havia renhida resistência em aceitar a pressão do Exército para incorporar as polícias militares a seus quadros. O novo pressuposto constitucional suscitava dúvidas no que concerne a relação entre Polícia Militar e Exército. Este torna-se um tema frequente nos artigos de Militia, e uma colaboração entre as corporações era louvada mesmo entre os oficiais do segundo. O temor dos milicianos era que a subordinação levasse ao questionamento da própria razão de ser das polícias militares.

Os novos desafios abertos pelas contingências socioeconômicas do pós-guerra ampliavam o escopo das incumbências das polícias, imiscuídas, agora, em assuntos estratégicos que movimentavam a vida do país nas décadas de 1940, 50 e 60. Os desforços na “defesa dos interesses nacionais” –a Companhia Siderúrgica Nacional e a campanha d’O petróleo é nosso– que tanto mobilizaram as Forças Armadas passavam a ser incorporadas na esfera de interesses das polícias militares. O segundo tenente Manoel de Souza Chagas explicita que “a complexidade da preparação e emprego da Força como elemento combatente assegura aos seus componentes um valor social como o que não é possível recusar ao defensor da Pátria, ao invés do de simples repressor de contraventores de leis internas, em âmbito restrito e com caráter local”.[25] Já o tenente Antenor Olivio Proteger, da Polícia Militar do Espírito Santo, coloca em pé de igualdade milicianos e soldados do Exército, não apenas nos casos de revolta interna, quando automaticamente as polícias militares deviam assumir as funções das Forças Armadas, mas também nas macro-questões estratégicas.[26] Entretanto, não admitia o controle de uma instituição sobre a outra. Alguma autonomia era necessária.

Até por isso, uma outra distinção se fazia necessária: a que opunha as polícias militares à Polícia Civil. Ato contínuo, colocam-se em pauta os termos de sua subordinação ao poder político. A relação entre policiais civis e militares nunca devia ser hierárquica, mas sim de colaboração e solidariedade, com estrita divisão de funções. A competência e a habilidade das polícias militares possibilitavam-nas desempenhar tarefas de responsabilidade que ultrapassavam as incumbências tradicionais, de garantia da ordem e da segurança pública, escudada na Constituição e nas leis ordinárias. “Não se compreende, não só a interferência desta [Polícia Civil] em funções próprias do policial militar, como a subordinação deste, de forma indiscriminada, mesmo vexatória, à autoridade daquela […]”, movida a um “choque de competências e problema de ego”.[27] O capitão Jaime dos Santos observa a necessidade de aproveitamento “racional e metódico” dos oficiais da Força Pública em postos de autoridade e mando.[28] A questão, para o autor, era definir o escopo de autoridade policial, tal qual aparece no texto constitucional: “Se o subdelegado, um leigo, é considerado autoridade policial, por que o técnico, oficial ou sargento da Polícia Paulista – não ocupa, de direito, o lugar para o qual é preparado?”.

O capitão Walter Serante era ainda mais radical. Propunha a separação da Força Pública de São Paulo da Secretaria de Segurança Pública. Considerava “ininteligível, aberrante e abstruso ver-se o delegado de polícia ou investigadores armados de cassetetes, revólveres e até empunhando metralhadores (contrariando normas dos Ministérios Militares)”.[29] O pior era “pretenderem os senhores delegados de polícia comandar a tropa […]”. A posição constitucional das polícias militares, ao menos na ótica do capitão, habilitavam-nas a dispensar a autoridade civil e exercer, de per si, o poder de polícia, inclusive no que tange a certos poderes de investigação, prerrogativa legal da polícia civil.

A relação hostil entre as corporações policiais é histórica.[30] Os conflitos datam do Império. Mais recentemente, um dos motivos da crise que culminou na greve da Força Pública de 1961 foi a proximidade do então Comandante da corporação, coronel Arrison de Souza ferraz, com o secretário de Segurança Pública. Parte do oficialato demandava uma interlocução direta com o governador, sem o intermédio de outra autoridade civil, cuja reputação era de ser figura muito próxima da Polícia Civil.[31]

Instrução, profissionalismo e modernização

A função, ou melhor, as funções a serem desempenhadas pelas polícias militares se tornam mais e mais complexas, exigindo habilidades e capacidades específicas. As páginas de Militia refletem a necessidade premente da melhor preparação do policial – seu modelamento numa estrutura profissional, que encampava uma plêiade de conhecimentos técnicos e científicos para além da mera intuição e do tirocínio adquirido com a experiência. Uma Polícia Militar obrigada a se desincumbir de tarefas multifacetadas – de manutenção da ordem e segurança interna (o pós-guerra habitava a imaginação das Forças Armadas) – necessitava passar por uma reformulação nas práticas de instrução e treinamento. Modernização era a palavra de ordem. E Militia, ciente do seu papel pedagógico, albergava textos de vários matizes do conhecimento, gregários à formação do novo policial, que dissertavam para além dos assuntos meramente técnicos.

Artigos como “Alimentação e serviço dietético”, da nutricionista Amelinha Garcia[32], e “Modernização da polícia – incremento no processo de orientação e seleção do pessoal, baseado nos princípios da psicotécnica moderna”[33] faziam parte do repertório da revista. 

Outros textos reforçavam a necessidade de se melhorar o processo seletivo de praças e oficiais e incrementar a instrução (policial, militar e cultural). As exigências das circunstâncias eram mais estritas do que anteriormente, conforme escreve o capitão Rodolpho Assumpção.

“Não é possível contestar-se que hoje se tenha de exigir dos integrantes de uma força policial mais altos padrões de inteligência e educação, pois a tendência é atribuir-lhe missões cada vez mais complexas e delicadas, que demandam se situe em graus bem diferentes todas as qualidades individuais, além da física […]”.[34]

Com especialização na Royal Canadian Mounted Polices do Canadá, o capitão entabulava as linhas gerais para um curso preparatório de praças e oficiais. O objetivo visava “incutir no espirito do instruendo as noções de disciplina, aprimorar-lhe o físico, arregimentá-lo no senso da camaradagem e do trabalho de equipe, desenvolvendo-lhe paralelamente o espirito de classe em alto grau e com um propósito único: o de bem servir”. Imbuído desse novo espírito –mistura fina entre a disciplina militar e burocracia weberiana–, o aluno aprenderia “como tratar o público no estabelecimento de uma eficiente polícia preventiva […]”. Era imprescindível também “o estudo do Código Penal (a sua Bíblia), leis, datilografia, medicina legal, de socorros de urgência, fotografia”.[35]

A instrução moderna do agente de polícia passava por uma necessária releitura da abordagem pedagógica a ser utilizada nos futuros policiais. A crua autoridade militar, da imposição hierárquica incontinenti e inconteste, devia ser amainada em prol de seu uso mais racional. Afinal, assevera o capitão, 

“um superior experiente não criticará, por certo, com severidade, o esforço daquele que sozinho se põe a dar os primeiros passos, nem punirá quando se tratar de uma tentativa honesta de uso da iniciativa; trabalhará, no entanto, no sentido de evidenciar com lógica os erros, com o objetivo único de preparar melhor ação futuro”.[36]

“Rudeza e desconsideração”, continua o oficial, criaram um “‘sim, senhor’ inútil para o resto da vida […] Firmeza, condução e justa correção jamais poderão ser confundidas com brutalidade, autoritarismo e descompostura […]”. A cartilha do treinamento consistia em, na primeira parte, “desenvolver-lhes o amor à Corporação e os sentimentos de camaradagem para com os colegas de farda”; na segunda, priorizar “o senso da lealdade a essa mesma corporação e o senso do cumprimento do dever deverão florescer no espirito do homem […]”.[37]

No arrebol da década de 1940, o capitão Rodolpho Assumpção reconhecia o choque de “duas escolas policiais”: a primeira, a antiga, “constituída pelos que só acreditam em polícia repressiva; e a segunda, a jovem, que preconiza as vantagens de uma polícia educativa, protetora, preventiva e correcional […]”. Desse encontro geracional, o ideal seria aproveitarem-se “as convicções e das energias de todos os elementos de ambas as correntes”. O projeto de modernização pautava-se na preparação do jovem para que ele se apropriasse de “hábitos pacíficos e corretos”. O sucesso da nova pedagogia dependia da seleção “meticulosa” dos recrutas no universo de potenciais voluntários. Em paralelo, o indicado seria “melhorar o preparo intelectual e aprimorar o moral de todos os elementos da corporação […]”.[38]

A complicar o cenário, pairavam os tempos turbulentos, o “progresso das sociedades […], os novos tipos de desajustamento social”. Enfrentá-los demandava a atualização constante da polícia. O coronel Niso de Viana Montezuma, comandante geral da Polícia Militar do Distrito Federal, reforçava a “necessidade de periódicos reajustamentos”, a fim de atalhar “a baixa atividade intelectual e física tão comum nas classes sociais que abastecem de voluntários”.[39] Havia também, segundo o coronel, a pressão da “opinião pública”, que exigia “compostura, circunspecto, atilamento e competência policial, e novos serviços de ordem e prevenção são criados”. 

Condições de trabalho

No segundo número de Militia, uma tirada sardônica dá o tom carnavalesco ao tema da edição, publicada em janeiro/fevereiro de 1948.[40] É uma das raras vezes que a revista deixa transparecer uma crítica tão ácida e direta às condições de trabalho dos policiais. Em legenda de uma foto-montagem do baile de Carnaval organizado pela Força Pública, lê-se: “Apesar de estar faltando um zero no ordenado destes foliões, eles divertiram-se a valer”. A malfadada falta do zero a embargar a alegria dos policiais soma-se a outros problemas da vida de todo dia a prejudicar os paulistas: transporte, educação, inflação, especulação imobiliária obrigam os policiais a “residir cada vez mais longe da caserna”, conforme queixa de um autor anônimo no mesmo número de Militia.[41] As reivindicações do miliciano anônimo atroam em uníssono com as queixas populares do seu tempo. Ao policial, ao menos o alento de que a própria instituição zele pelo seus membros. Sugere a construção de uma vila militar, de uma escola para os filhos dos policiais e o apoio da Caixa Beneficente.

As queixas das condições de trabalho dos policiais na Força Pública não são diferentes daquelas de que padecem profissionais de outras organizações. Afinal, nunca é demais lembrar que policiais, antes de tomarem parte de um conjunto institucional abstrato, são titulares de interesses comuns à gama geral dos trabalhadores.[42] Salário, moradia, previdência, transporte eram preocupações que assolavam os milicianos; estes, por sua vez, faziam de Militia um porta-voz dos descontentamentos, ainda que, com frequência, de forma velada.

O drama principal girava em torno dos salários, insuficientes para acompanhar o ritmo inflacionário e a carestia. Não foram poucas vezes que Militia publicou textos alertando sobre a grave situação econômica do país.

No editorial da edição 30, publicada em setembro/outubro de 1952, sob o título “Vida Difícil”, Militia alertava para o alto custo de vida no pós-guerra, desancando, principalmente, “a poderosa classe dos especuladores […] sangrando-se o povo […]”. A revista clamava a “ação imediata e desassombrada as reservas morais do país, antes que a espiral da inflação, qual irremediável câncer, paralise os órgãos vitais da economia brasileira, pois o ensandecido lema da atualidade parece ser este”.[43] 

Aliás, a Força Pública foi convocada para auxiliar a defesa da economia popular, ameaçada pela especulação de preços. No final da década de 1940 foram criadas Comissões de Preços (COAP), em âmbito federal, estadual e municipal, que emitiam tabelas de regulação (a Comissão do estado de São Paulo é de 1948). Muitos comerciantes extrapolavam os valores prescritos nas listas oficiais ou escondiam as mercadorias para forçar o ágio. Militia acusava comerciantes de “espoliar” os consumidores, que se viam achacados e desprotegidos pelos órgãos de fiscalização.

Mas as denúncias de venalidade dos fiscais da COAP reverberavam. Em resposta à atitude deletéria dos fiscais, o vereador major Cantídio Nogueira Sampaio lançou a ideia de convocar oficiais da Força Pública, “constituída de elementos reconhecidamente honestos”, para substituir o antigo corpo de funcionários. O serviço público seria prestado pelos milicianos sem nenhuma remuneração extra. Foram então nomeados 81 oficiais e depois mais 93, cujo desempenho foi louvado pela população e pela imprensa, mesmo aquela contrária ao governo. Militia publicou extensa matéria sobre a atuação dos policiais, com muitas fotos ilustrando os oficiais, em trajes civis, autuando em flagrante a desonestidade dos comerciantes.[44]

Essa espécie de solidariedade com a população pobre, que sentia na pele os efeitos da crise econômica, explicava-se pela própria condição de vida dos policiais, principalmente dos praças e inferiores. A questão salarial esteve sempre presente em seu raio de preocupação, tendo sido, inclusive, o estopim para a greve de janeiro de 1961, quando a Assembleia Legislativa de São Paulo não aprovou a equiparação dos vencimentos dos policiais militares com os policiais civis.[45]

Uma tabela publicada em Militia mostrava que em dez anos –de 1938 a 1948– o salário dos policiais paulistas teve aumento proporcionalmente menor do que o vencimento de outros funcionários públicos portadores de cargos hierarquicamente correlatos.[46] “O que se passa no lar do servidor público”, escreveu o capitão Francisco Vieira Fonseca, “é a arte dolorosa, pois é lá que se processa a ‘ginástica do orçamento’, a fim de se aguentar com a exigida aparência o público que o mantém […] É o que alguém qualificou de miséria dourada”.[47] O artigo do capitão Fonseca vinha acompanhado de quadrinhos que ilustravam a situação precária dos policiais. Com o título de Aperturas do Miliquinho, ressaltavam com acidez o cotidiano dos milicianos. Corroborando o quadro, o major Luiz de Siqueira, da Polícia Militar do Distrito Federal, afirmava que “no que tange à melhor remuneração, fator que, evidentemente, é questão pacífica há mais de meio século […] não pode haver boa polícia sem vencimentos que a coloquem a cavaleiro da necessidade e aperturas econômicas, porta larga para tentações e propinas”.[48] 

A Força Pública e a Política

Desde o início, nos primeiros editoriais, Militia se aferrava na neutralidade da Força Pública na relação com as rivalidades político-partidárias. A instituição devia manter-se neutra no renhido jogo eleitoral. A instabilidade inerente à “experiência democrática” de 1946-1964 podia levar à distorção de seus princípios básicos, e ao exagero do escopo ideal do regime.[49] A abertura democrática pós-Estado Novo foi cadinho para o embate de diversas correntes ideológicas, cujo confrontamento respingava na polícia. As reivindicações corporativo-profissionais se enquadravam em demandas mais amplas da esfera política, em que uma agenda progressista se fazia presente. A greve de 1961 e as manifestações que se seguiram são indício da atividade política dos policiais.[50]

Uma das demandas mais recorrentes dos policiais era para a extensão do direito político a soldados, cabos e sargentos. Essa reivindicação não era exclusiva das polícias militares, mas também dizia respeito a inferiores pertencentes a outras armas das Forças Armadas. A participação política de militares – policiais e soldados – foi motivo sempiterno de pressão dos interessados sobre o corpo político. Uma grave revolta de sargentos do Exército em 1963 é exemplo paradigmático deste movimento.[51]

Durante o II Congresso das Polícias Militares, realizado em São Vicente, em agosto de 1959, foi aprovada uma moção, conclamando a extensão do direito de voto a cabos e soldados:

“Não mais se discute o direito que cabe aos milicianos […] não mais se pode aceitar a alegação de que poderiam ser coagidos a votar neste ou naquele candidato. Não se admitem razões de ordem cultural […] Cultura política, é inegável que os cabos e soldados a têm em dose suficiente, mesmo porque mais que os oficiais e inúmeros civis, sentem na própria carne os problemas de nosso subdesenvolvimento econômico e da desvalorização crescente da moeda”.[52]

Foi da lavra do Centro Social de Cabos e Soldades a origem dessa manifestação. O Centro, cuja participação foi celebrada no II Congresso das Polícias Militares, fora fundado em 12 de março de 1957 e contava, dois anos depois, com sete mil associados. Nos anos de 1950 e 1960, o DOPS identificava a presença de filo-esquerdistas imiscuídos entre seus membros, o que o levava a receber atenta supervisão por parte da polícia política, mesmo nos anos de democracia.[53]

No que dizia respeito a questões da vida política do país, Militia se mostrava mais reticente em se posicionar com mais veemência. Em apenas duas ocasiões a revista fez referência direta a eventos graves no panorama político nacional.

Na primeira vez, tratou do crime da rua Tonelero, em 5 de agosto de 1954; na segunda, da tentativa de impedimento de João Goulart assumir a presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Na ocasião do atentado contra Carlos Lacerda, Militia tomou uma posição acusatória, ainda que com alguma dissimulação, em relação ao governo Vargas. O atentado foi usado como pretexto para uma crítica ao estado da segurança pública – “o que se viu, imediatamente após o crime na rua Tonelero foi o descrédito completo de autoridades policiais civis”. Ressaltava o fato de que a desconfiança na imparcialidade dos investigadores fora de tal monta que a Aeronáutica “avocou a realização do inquérito”. O texto aproveitava para, mais uma vez, incitar a necessidade de uma reforma das polícias, “de modo a lhe darem unidade, estrutura moderna e ação dinâmica”.[54]

Já no episódio de 1961, a posição de Militia foi muito mais firme. Durante três edições, exaltou a manutenção da legalidade, exortando a posse de Jango contra os pruridos golpistas que desejavam abortar a sucessão constitucional. Ao lado da manutenção da ordem legal, o editorial da edição de setembro/outubro de 1961 clamava pela “necessidade da reformulação básica da vida nacional”. Fazia uma crítica velada às parcelas da população –“não raro dominantes”– que “desejam a continuidade do sistema vigente, do qual são os maiores beneficiários”. Segundo a revista, impunha-se “estabelecer vigilância para que a mistificação, o engodo, a corrupção e o embuste não frustrem ou deturpem o objetivo”. Entre algumas medidas concretas a serem tomadas, abordava o projeto de regulamentação de remessa de lucro para o exterior, que alguns “setores e indivíduos, das chamadas classes conservadores” vêm tentando obstar com campanhas publicitárias.[55]

A defesa da legalidade ganhou destaque insueto em Militia. Na mesma edição do editorial citado, publicou uma extensa reportagem, ilustrada com várias fotos, escrita pelo capitão João Aldo Danesi, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, com o pomposo título “Dez dias que abalaram o Brasil – retrospecto de uma epopeia exortando a ação da brigada gaúcha na manutenção da legalidade, durante a crise da renúncia”.[56] 

Louvando a posição pioneira do Rio Grande na defesa da legalidade, capitão Danesi lembrava que o estado “preparou-se para defender a Constituição, ainda que fosse com o derramamento do próprio sangue. E a legalidade foi mantida”. Com orgulho, declarava: “Os primeiros a cerrar fileiras em torno da bandeira da lei foram os brigadianos”.[57]

A luta pela legalidade recheava as páginas de Militia com manifestações em registros que fugiam da ortodoxia do tema. Conquanto a gravidade do momento, a manutenção da ordem constitucional inspirava a criatividade dos milicianos, como neste poema anônimo que acompanhava a reportagem do capitão Danesi.

POEMA

Aos bravos companheiros do sul

defensores indômitos da lei

o abraço comovido

dos milicianos paulistas

[…]

Ao governador Leonel Brizola

ao general Machado Lopes

ao coronel Diomário Moojen

nosso preito de admiração 

Ao brigadianos desconhecido

ao pelo do Pampa

aos heróis obscuros

da resistência democrática

a  nossa gratidão

e uma promessa de luta

por um Brasil melhor

velho sonho revolucionário

de Piratini e Piratininga![58]

Conclusão

Se a quebra de legalidade em 1961 foi objeto de firme contestação nas páginas de Militia, passados quatro anos o golpe passou absolutamente despercebido. Não mereceu sequer uma nota de elogio ou pesar. Nessa toada de desinteresse, a marca do ocaso instalou-se na publicação. A revista para de circular em julho/agosto de 1964, depois de 103 números ininterruptos e de periodicidade estável. Suspirou novamente um ano depois, em 1965, com formato e proposta diferentes. Dura até o número 114, em março de 1968. Volta em 1970 com uma diagramação moderna e apostando em uma temática mais leve. Expira em definitivo em 1975. O auge da publicação, entretanto, ficara para trás, simultâneo –coincidência ou não– ao interregno democrático.

Nas quase duas décadas de existência, Militia espelhou demandas e interesses de uma parte expressiva do corpo de policiais da Força Pública de São Paulo e, por extensão, de policiais militares do resto do país. Em meio a textos e sessões de temáticas variadas, artigos davam conta de reivindicações corporativas, profissionais e políticas dos policiais, enredados no novo contexto democrático daquele período. Preocupava os autores a situação da Força Pública em relação às Forças Armadas e diante de outros corpos policiais. Visava-se principalmente estabelecer as linhas mestras que delineariam o lugar a ser ocupado pelas polícias militares na nova conformação constitucional. Militia, como porta-voz institucional, abrigava em suas páginas todo um exercício de formulação da própria razão de ser da Força Pública.

No fim das contas, a impressão que se tem pela leitura sistemática dos artigos é de um permanente tom lamurioso. De um lado, pela dificuldade das polícias militares em formar um autoconsenso sobre uma questão de essência. A corporação nunca conseguiu responder a contento algumas questões fundamentais para a formação de sua identidade: quem eu sou? qual o meu lugar na esfera da segurança pública? De outro, padecia-se com a falta de reconhecimento externo da importância da Força Pública no conjunto das instituições policiais e militares. Ressentia-se de um certo desprezo e desdém que se lhe instilavam os políticos e as outras organizações, fato que lhe tolhia a execução da missão sobranceira da manutenção da ordem e da segurança interna nem franqueava a plena participação das polícias militares na arena política.

Na edição 103, em celebração do Dia do Soldado de 1964, um texto apócrifo propõe (inadvertidamente, talvez) uma espécie de epitáfio de Militia. Em “Soldado de PM: soldado esquecido. Celebração do Dia do Soldado” descrevia-se a resistência do Congresso Nacional em votar a Lei Básica da Polícia, que vinha tramitando nos escaninhos da Casa indefinidamente.[59] Lastimava o opúsculo: “O policial-militar é um soldado obscuro. Sempre o primeiro ser chamado nos momentos e sempre o primeiro a ser esquecido […] O miliciano brasileiro ajudou a escrever com o próprio sangue a história do Brasil, Brasil de quem ele espera um lugar ao sol. Depois de quase século e meio de sacrifícios, ele não conta com um diploma legal que defina sua posição de acordo com as necessidades atuais […] [O miliciano] só quer continuar trabalhando para garantir a tranquilidade pública […]”.


  1. Antonio Luigi Negro e Fernando Teixeira da Silva, “Trabalhadores, sindicatos e política (1945-1964), In: Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (org), O Brasil Republicano – o tempo da experiência democrática, da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964 – vol. 3, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2013, p. 47-96.
  2. Ver Jorge Ferreira, “A democratização de 1945 e o movimento queremista”, In: Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (org), O Brasil Republicano – o tempo da experiência democrática, da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964 – vol. 3, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2013, p. 13-46.
  3. Sobre a greve da polícia, ver Thaís Battibugli, Polícia, democracia e política em São Paulo (1946-1964), São Paulo, Humanitas, 2010, p. 138-155, e André Rosemberg, “La grève de la force publique de São Paulo (13 et 14 janvier 1961)”, Vingtième siècle – revue d’histoire, n. 128, outubro-dezembro de 2015, p. 29-44.
  4. Capitão Arrison de Souza Ferraz, “Sursum Corda!”, Militia, n. 1, novembro/dezembro de 1947, p. 3-4.
  5. Centurião, “O nosso partido”, Militia, n. 1, novembro/dezembro de 1947, p. 13-14.
  6. Idem, p. 14.
  7. Idem, p. 14.
  8. Capitão Orlando Xavier Pombo, “Unificação das Corporações Policiais em Cada Estado”, Militia, n. 54, dezembro de 1954, p. 102-106.
  9. Segundo tenente Francisco de Assis Veloso, “Procuremos nosso caminho”, Militia, n. 10, maio/junho de 1948, p. 35-38.
  10. Idem, p. 36.
  11. Primeiro tenente Monte Serrat Filho, “O problema n. 1 de São Paulo”, Militia, n. 29, julho/agosto de 1952, p. 36-40.
  12. Capitão Jaime dos Santos, “As Polícias Militares e o Exército”, Militia, n. 35, abril de 1953, p. 6-11.
  13. “Editorial”, Militia n. 42, dezembro de 1953.
  14. Capitão Edson Queiroz, da Polícia Militar da Bahia, Militia, n. 40, setembro de 53, p. 39-40.
  15. “Editorial”, Militia, n. 28, maio/junho de 1952, p. 5.
  16. Capitão João Vieira Matos, “São Paulo e suas organizações policiais”, Militia, n. 42, novembro de 1953, p. 52-53.
  17. Idem, p. 53.
  18. Coronel Peres Barbosa, “A Escrava do Dever”, Militia, n. 29, julho/agosto 1952, p. 41-43.
  19. Capitão Olívio Franco Marcondes, “Guardiões da Lei”, Militia, n. 12, setembro/outubro de 1949, p. 6-8.
  20. Otávio Gomes de Oliveira, “Necessidade de se reestruturar a Força Pública”, Militia, n. 34, março de 1953, p. 6-8.
  21. Orlando Xavier Pombo, “Problemas policiais militares”, Militia, n. 80, março/abril de 1959, p. 22-25.
  22. Idem, p. 24.
  23. “Em torno da Lei Básica das polícias militares”, Militia, n. 90, julho/agosto de 1961, p. 56-69.
  24. Idem, p. 65.
  25. Idem, p. 28.
  26. Tenente Antenor Olivio Proteger, “As Forças Armadas à luz da Constituição”, Militia, n. 15, p. 13-21.
  27. Idem, p. 8.
  28. Jaime dos Santos, “A Força Públia e a Polícia Civil”, Militia, n. 50, julho de 1954, p. 6-11.
  29. Walter Serante, “Separação da FP da Secretaria de Seguranca”, Militia, n. 82, maio/junho de 1959, p. 26-27.
  30. Sobre o assunto, ver André Rosemberg, De chumbo e festim – uma história da polícia paulista no final do Império, São Paulo, Edusp, 2010.
  31. Na documentação do DOPS guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo referente à Força Pública encontram-se ofícios do Serviço Secreto que tratam da relação do oficialato com o coronel Arrison de Souza Ferraz, alçado ao comando da corporação em 1959. Existe um Manifesto dos Coronéis, de fevereiro de 1959, que refuta a indicação do governo. Há relatos de várias reuniões secretas realizadas por oficiais da FP contra o coronel Arrison, acusado de entreguista, que sempre trabalhou para a Polícia Civil. Ofício do Serviço Secreto do DOPS, em 27 de agosto de 1959. AESP, 50-D-18, pastas 8-9.
  32. Amelinha Garcia – Nutricionista-chefe do Serviço de subsistência, “Alimentação e serviço dietético”, Militia, n. 8, janeiro/fevereiro de 1949, p. 62-63.
  33. “Modernização da polícia – incremento no processo de orientação e seleção do pessoal, baseado nos princípios da psicotécnica moderna”. Reprodução da conferência proferida pelo Cap. Ricardo Colaço Franca, Militia, n. 40, setembro de 1953, p. 6-10.
  34. Capitão Rodolpho Assumpção, “Seleção e o treinamento do policial”, Militia, n. 25, nov/dez 1951, p. 32-38.
  35. Idem, p. 36.
  36. Idem, p. 39.
  37. Idem, p. 39.
  38. Idem, p. 38.
  39. Coronel Niso de Viana Montezuma, “A Missão da polícia Militar na Paz e na guerra”, Militia, n. 27, março/abril 1952, p. 23-27.
  40. “Carnaval de 1948”, Militia, n. 2, janeiro/fevereiro de 1948, p. 84-85.
  41. L. T. R. S., “Por que não cuidamos disto?”, Militia, n. 2, janeiro/fevereiro de 1948, p. 86 e 87.
  42. Sobre o assunto, ver Dominique Monjardet, O que faz a polícia, São Paulo, EDUSP, 1997.
  43. “Editorial”, Militia, n. 30, setembro/outubro de 1952, p. 5.
  44. Tenente Monte Serrat Filho, “A FP a serviço da economia popular”, Militia, n. 23, julho/agosto 1951, p. 60-68.
  45. Sobre a greve da Força Pública, ver Thaís Battibugli, Polícia, democracia e política em São Paulo (1946-1964), São Paulo, Humanitas, 2010, p. 138-155, e André Rosemberg, “La grève de la force publique de São Paulo (13 et 14 janvier 1961), op. cit.
  46. “Quadro comparativo dos vencimentos do pessoal da Força Pública com os de diversos cargos do funcionalismo público do Estado”, Militia, n. 5, julho/agosto de 1948, p. 114.
  47. Capitão Francisco Vieira Fonseca, “Vencimentos dos servidores públicos”, Militia, n. 5, julho/agosto de 1948, p. 118-119.
  48. Major Luiz de Siqueira, “Polícias Fardadas”, Militia, n. 23, julho/agosto de 1951, p. 8-11.
  49. Ver Maria Celina D’Araujo, O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
  50. André Rosemberg, “La grève de la force publique de São Paulo (13 et 14 janvier 1961)”, op. cit.
  51. Em setembro de 1963, parte dos sargentos do Exército Nacional se revoltou, em Brasília, contra a decisão do Supremo Tribunal Federal, que os excluía da franquia eleitoral, dando início a uma insurreição armada, mas de curta duração. Sobre o assunto, ver Paulo Eduardo Castello Parucker, Praças em pé de guerra – o movimento político dos subalternos militares no Brasil (1961-1964) e a Revolta dos Sargentos de Brasília. São Paulo, Expressão Popular, 2009
  52. “Sem título”, Militia, n. 85, novembro/dezembro de 1959, p. 16-20.
  53. Ver Thais Battibugli, op. cit.
  54. “Editorial”, Militia, n. 51, agosto de 1954, p. 5.
  55. “Editorial”, Militia, n. 91, novembro/dezembro de 1961, p. 4-5.
  56. João Aldo Danesi, “Dez dias que abalaram o Brasil – retrospecto de uma epopeia exortando a ação da brigada gaúcha na manutenção da legalidade, durante a crise da renúncia”, Militia, n. 91, novembro/dezembro de 1961, p. 9-17.
  57. Idem, p. 12.
  58. “Sem título”, Militia, n. 91, novembro/dezembro de 1961, p. 19-21.
  59. Anônimo, “Soldado de PM: soldado esquecido. Celebração do Dia do Soldado”, Militia, n. 103, julho/agosto de 1964, p. 5.


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