A escrita de si em sua relação com a produção do conhecimento histórico
Andreia Tamanini[1]
Resumen
Quando Michel de Montaigne, no ensaio De l’exercitation, mete-se a contar-nos um fato “pouco importante e assaz vão”, fê-lo após adotar dois procedimentos dignos de nota em consideração à sua época: ter escolhido si mesmo como próprio objeto de estudo e decidido escrever sobre esse objeto e sobre sua própria vida. E o faz remetendo-se à “perigosa estrada” trilhada por não mais do que “dois ou três antigos”. De maneira menos modesta, quase duzentos anos mais tarde, Jean-Jacques Rousseau confessa-nos seu “empenho em uma empresa sem precedentes, e cuja execução não terá imitadores”, e completa: “Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem serei eu”. Uma almejada verdade retumbante e inconteste de uma pretensamente inaudita natureza do eu sendo exposta com alegado ineditismo e “sem fingimento algum”. As questões relativas ao eu autobiográfico flertam com toda uma tradição filosófica e historiográfica ocidental, longa, que se desdobra desde a fundação do problema do testemunho como atestação de veracidade –seja de si e ou do mundo que este vê e reporta– até a dissolução ou desconstrução da ideia de um eu a priori, convergente e identitário, sujeito ou objeto estável de sua história (Derrida). Um percurso que passa pelo dualismo sujeito-objeto de Kant, para quem é o sujeito o filtro centralizador da experiência do conhecimento dos fenômenos que se lhe apresentam aos sentidos, e pela hermenêutica ricoeuriana da subjetividade narrativa do si-mesmo e da “verdade histórica”. Nossas reflexões deslizarão por sobre essa trajetória, pretendendo levantar pontos em que opera o entrosamento entre ela e a construção de um conhecimento histórico que leve em conta alguns problemas postos pela escrita autobiográfica.
Texto
Ninguém conhecerá a si mesmo
Ninguém se separará de seu próprio eu;
Que procure entretanto a cada dia
Saber enfim, claramente, de fora,
O que é e o que era,
O que pode e de que gostaria
(Goethe, 2013, p. 9).
Inicio esta leitura chamando a atenção para a questão do “conhecimento de si”: de um lado, com cunho talvez metafísico, como o meio imprescindível para o acesso a uma pretensa verdade, dele derivada ou dependente, interior ou exterior ao si-mesmo. E, de outro, como um pôr-se a conhecer(-se) –ou apenas a contar-se e a mostrar-se– em um processo identitário de um si-mesmo transitório e incerto, transcurso entre a experiência, a consciência, a invenção e a morte. O que nos interessa pensar talvez sejam as (im)possibilidades da ambicionada e ambiciosa fiabilidade empírica do eu consciente, conhecedor e narrador, diante dos desafios apostos à História pelo auto-relato.
“Conhece-te a ti mesmo” (Pausânias, Descrição da Grécia, 10,24,1). Ou, ainda, “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os deuses” (Cf. o comentário à inscrição no templo de Luxor em De Lubicz; Lamy, 1978). Esta parece ser, desde muito cedo, a condição primária do homem defronte ao seu destino e ao seu passado, chave para abrir-lhe os segredos do mundo, e, daí, da prosperidade, da longevidade, da boa fortuna perante as forças ocultas do tempo. O si-mesmo era tão inquietante para os antigos, a ponto de fazê-los inscreverem, na pedra sagrada de seus templos, o indelével conselho. Era esse ‘si’ o único veículo de interpretação dos sinais que indicassem a vontade dos deuses na voz de seus oráculos e na espectação de seus prodígios, como um sismógrafo que precisasse estar, para isso, bem aferido – bem conhecido. O homem capaz do autoconhecimento, segundo a apropriação socrática da inscrição oracular (Platão, em Protágoras 343b, como aqui transcreve-se: “conhece-te a ti mesmo e nada em excesso” [“γνῶθι σαυτόν” καὶ “μηδὲν ἄγαν”]), estando submetido ao crivo primeiro e último de uma razão que lhe indica a melhor conduta ética, talvez seja o fundador de uma tradição ocidental que associa o acesso à verdade ao escrutínio prévio do si próprio, embora neste momento, como não nos deixa esquecer Georges Gusdorf no seu prestigioso La découverte de soi (Gusdorf, 1948), a consciência de si destacada do ato próprio que consolida o conhecimento, conforme fica-nos de inferir também das antigas inscrições, ainda não exista em termos da episteme.
O ato de conhecer e seu movimento em direção à alguma verdade, seja do mundo, seja dos deuses, seja da vida e seus fenómenos, inicia-se, pois, neste patamar imprescindível do eu.
Séculos depois, já na era moderna, Descartes se pôs à procura de um método que pudesse dar ao homem a habilidade de distinguir o verdadeiro do falso. Tal método se baseia em uma crítica total do procedimento de conhecer, a chamada ‘dúvida metódica’: tudo, toda afirmação humana (não a divina, que jamais erra) pode ser iminentemente falsa e, portanto, posta em dúvida –a exceção de uma: cogito ergo sum (Descartes, 2001; Trémolières, 2016). Ou seja, ainda que o “gênio maligno” viesse a enganar o homem em todas as alternativas, a este não restaria dúvida de que existe –enquanto esteja pensando. Dito de uma outra maneira, o fato de saber-se como existente, autoconsciente de seu pensar, é, para o sujeito da dúvida, a última (e talvez única) certeza de que pode dispor ao empenhar-se no caminho do conhecimento da verdade. Esse pensamento ou saber imediato (eu sou um ser pensante; o pensamento constitui a forma particular de minha existência) que o homem possui sobre ele mesmo é o que Descartes chama de consciência, a qual virá a ser, por certo, sempre consciente de si. De fato, o ego cogitans, embora tentasse duvidar de todos os seus próprios pensamentos, seria acometido da consciência de que o duvidar de pensar é ainda um pensar: o ‘ato’ de supor que eu possa enganar-me coincide com o ‘eu’ que viria enganado; há, portanto, uma perfeita identidade entre o ‘conhecedor’ e o ‘conhecido’.
Cabe objetar, creio, que Descartes parece ter partido da máxima agostiniana “fallor ergo sum” (Agostinho, De Civit. Dei, 11, 26, s/d), ou, mais precisamente: “Quid si falleris? Si enim fallor, sum. Nan qui non est, utique nec falli potest, ac per hoc sum, si fallor” (“Mas, e se te enganas? Ora, se me engano, existo. O que não existe não pode enganar-se, e, por isto, se me engano, existo”). O filósofo matemático francés reverte a proposição agostiniana, e o sujeito da verdade sobre a realidade passa para a própria consciência do homem. Ou seja, não é o erro ou o engano que marca a consciência do ego, mas o acesso à verdade da existência de si – e, destarte, de todas as outras coisas – por meio do pensamento, a partir do cogito como existência per se, independente da consciência divina. A “falha” está iminente nas coisas atravessadas pelo escrutínio do pensamento –a exceção, naturalmente da verdade objetiva suprema que é Deus–, não no ego fallens, como sugerira Agostinho.
Dando um salto no tempo, encontramos em Hegel, quando este discorre sobre como seria possível distinguir o verdadeiro do falso, a afirmação de que o “aí” imediato do espírito –cujo estágio mínimo manifesto é a consciência de si– “encerra os dois momentos: o de saber e o da objetividade negativa com respeito ao saber” (Hegel, 1985, pp. 25-26). E que o espírito –diferente da consciência adquirida da experiência– se converte em objeto “porque é esse movimento que consiste em devir ele mesmo um outro, ou seja, objeto de seu si mesmo a superar este ser outro”. O movimento de distanciamento que permite observar-se objetificado como outro –a que Goethe, aliás, insinua ser impossível embora imprescindível alcançar para o conhecer-se a si– é o que permitiria ao espírito o acesso a conhecer a verdade: não outra coisa senão ele mesmo. Hegel assegurar-nos ser a consciência de si a “terra natal da verdade” (“das einheimische Reich der Wahrheit“. Hegel, 1985, pp. 28-29). Isso nos traz de volta Agostinho de Hipona, no que dizia sobre o intus: “Noli foras ire, in te ipsum redi, in interiore homine habitat ueritas” (“não queiras ir para fora, volta-te para ti próprio, é no interior do homem que a verdade habita”. Agostinho, De vera rel., 39, 72, s/d).
Dentro dessa linha de um eu transcendental e apriorístico, lembremos do dualismo sujeito/objeto e fenômeno/coisa-em-si de Kant. Para este, o sujeito cria seu próprio mundo a partir de seus sentidos, de sua capacidade de percepção de uma realidade objetiva que lhe afeta; o sujeito e o mundo do sujeito (feito este de apreensões subjetivas, portanto parciais de fenômenos, jamais da coisa-em-si ou, se quisermos, do real, posto que inatingível) não estão regidos por uma razão universal que os unifique – porque esse universal se manifesta na perfeição do sublime: almejado, porém inalcançável em sua pureza.
“Algo pensa em mim”, ou “es denkt in mir” (Nietzsche, 2001), diz Nietzsche de um outro lugar, desde o qual a ação de pensar –e conhecer– ganha autonomia frente à consciência do sujeito pensante, quase como um movimento fisiológico, uma necessidade vital do corpo, que assume a função específica do pensamento. O ego cogitans cartesiano, o eu autoconsciente que se o seguiu, é destituído de seu papel e importancia no processo do conhecimento, o que vem a abrir passo para a dissolução da subjetividade propostas mais contemporâneas a nós.
Já no século XX, Foucault diz pretender, no estudo que culminou na Hermenêutica do Sujeito:
estudar a constituição do sujeito como objeto para ele mesmo: a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito foi levado a observar a si mesmo, a se analisar, a se decifrar, a se reconhecer como campo de saber possível. Trata-se em suma da história da ‘subjetividade’, entendendo-se, por esta palavra, a maneira como o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo da verdade com relação a si. (Foucault, 1983, p. 541).
Em um lugar mediano dessa linha, Paul Ricoeur (1983 e 1985) trabalhou no encontro do processo de subjetivação com a criação de uma identidade narrativa do sujeito. O problema dessa identidade narrativa, que aparece ao final de Temps et récit (Tempo e narrativa, na tradução brasileira), abre caminho a uma reflexão que se aprofundará ao longo da década de 1980, até a publicação, em 1990, de Soi même comme un autre (Ricoeur, 1996). A questão do sujeito aparece aqui decorrente do desdobramento de três formulações linguísticas que fundamentam a “fenomenologia hermenêutica do si” (“phénoménologie herméneutique du soi“), conforme a chama Ricoeur.
Na primeira, o si, como no francês soi, no inglês self, no alemão Selbst, no italiano se e no espanhol ‘si’, opõe-se a ‘eu’. Uma tal oposição seria indício da primazia da mediação reflexiva sobre a posição imediata do sujeito expresso em primeira pessoa. É bom que se note que Ricoeur põe em uso uma apreensão do ‘soi’ dentro de um contexto filosófico e não puramente de definição gramatical, já que, por esta, o ‘si’ reflete, na verdade, a terceira pessoa. A segunda formulação diz respeito ao aspecto semântico ou conceitual implícito na palavra “mesmo” do título, cujo desmembramento, por vias etimológicas, implica delinear duas noções de identidade narrativa distintas e principais, advindas dos termos latinos idem e ipse. Para Ricoeur, a ipseidade, contrariamente à mesmidade (ou, se quiséssemos, talvez pudéssemos propor: à “idemidade“), não comporta a afirmação de uma personalidade imóvel e imutável, senão uma modalidade de identidade que talvez possa ser experimentada como promessa, como uma contínua –e quase ontológica– disponibilidade ao narrar-se. A terceira formulação refere-se à dialética do si-mesmo e do outro de si. Ricoeur assinala aí que essa relação não se trata de uma simples comparação (um si-mesmo semelhante a um outro), mas, de maneira mais intrínseca, trata-se de uma implicação: um si-mesmo enquanto outro.
Se as filosofias do sujeito ou do Cogito, nas quais é paradigmático o fato de que o sujeito seja formulado em primeira pessoa, estão condenadas a oscilar entre a sobrevalorização e a subvalorização do ‘eu’, entre um cogito exaltado ao posto de uma verdade primeira (uma tradição que vai de Descartes à Husserl) e um cogito esfacelado, reduzido a uma ilusão (como em Nietzsche ou Derrida, por exemplo), a fenomenologia hermenêutica de Ricoeur se situa no intermédio de uma e de outra. Sua intenção é, antes, recolocar as questões do “quem?”: “quem fala?”, “quem age?”, “quem se narra?”, “quem é o sujeito –moral– da imputação?”. E a resposta será sempre “soi” (“si”). Mas, o que dá a Ricoeur a condição de assim o afirmar? Ampara-o duas premissas: ainda que fragmentada em uma pluralidade de perguntas e respostas, a hermenêutica ricoeuriana do si encontra uma unidade temática própria no fato de haver por objeto a ação humana; segundo, o tipo de certeza à qual aspira tal empresa convoca a uma ‘atestação’, a qual o autor define como “a garantia de ser si-mesmo agindo e sofrendo” (Ricoeur, 1996).
Para Ricoeur, portanto, qualquer identidade pessoal remete ao fato de que o ser humano esteja inscrito no tempo e que, malgrado isso, alguma coisa dele se mantém, imutável, para além do tempo que passa, como a palavra dita e retida. Dizer ‘si-mesmo’ permite um retiro reflexivo, lacuna na qual vem se alojar a consciência de si: dizer “eu” permite dar-se conta de si, de suas ações, dos pensamentos, conferindo sentido ao rescaldo de uma sequência de acontecimentos contingentes, consentindo assim de manter uma sensação de continuidade da existência. O “eu” representaria, então, o ponto de convergência entre a identidade-idem e a ipse, ao vão de uma identidade narrativa onde o sujeito se inventa e se constrói. Persar, portanto, a noção de ‘escrita de si’ (ou “recit de soi”) em uma perspectiva ricoeuriana implica pressupor essa gangorra ou esse influxo constante entre narrativa histórica e de ficção, composta pela palavra endereçada ao outro e, por isso mesmo, a si mesmo. Temporalidade, identidade e narrativa conjugados oferecem uma continuidade histórica, ou seja, uma continuidade de sentido, ao sujeito que “se conta a si mesmo” (Ricoeur, 1996 e 1985). Mas: como em uma construção de um personagem (real?) de si.
Talvez fosse conveniente a esta altura apresentar a advertência que nos faz Georges Gusdorf (1948) acerca da diferença que ele vê entre conhecimento e consciência de si. Observa ele que a consciência de si nem sempre coincide com o conhecimento de si – posto que este só seria possível em sua parcialidade, e aquela, por sua vez, seria a base para a compreensão da própria vida. Embora capazes de tomarmo-nos conscientes de nós mesmos, não o podemos fazer com o fim de conhecermo-nos com inteireza: “nós nos reconhecemos, mas não nos conhecemos” (p. vi). Isso porque, mesmo tomando consciência de si, o eu não pode ser apreendido em todas as suas facetas. Pois, ainda que fosse possível que toda a espécie de manifestação desse eu se oferecesse à consciência, haveria a possibilidade de haver sempre outras –novas– ainda por serem reveladas.E dar-se a conhecer ao outro está, ademais, em uma camada adicional de complexidade. A interseção da autoconsciência e do autoconhecimento com suas expressões -segundo pretende-se ocorrentes nas escrituras autobiográficas, sejam meditações, confissões, diários ou nas trocas epistolares – viceja uma gama quase inexaurível de questionamentos, os quais põem em xeque o estatuto de uma verdade imanente ao testemunho de si frente às implicações da consciência e da sinceridade, bem como, depois, da fidelidade ou autenticidade de sua externalização. Somado a isso: o desejo de fazer-se saber pelo outro, de construir para si uma imagem – ou um personagem – que se dará à interpretação alheia; ou, mesmo, o desejo do outro em saber-lhe à revelia.
Se pensamos agora diretamente sobre as escritas de si, Laurent Jenny (2003 e 2005) alerta-nos, em crítica à proposição do pacto autobiográfico de Philippe Lejeune (1975), que “a possibilidade de uma verdade ou de uma sinceridade da autobiografia é posta radicalmente em dúvida à luz da análise da narrativa e de um conjunto de reflexões críticas tocantes à autobiografia e à linguagem”. O testemunho de si, segundo evocam tantos, incluindo Freud, vem, pois fadado à condição de expor-se. Não à toa, Paul Eakin (1992) objeta que há, em todo fazimento autobiográfico, “uma tensão entre a aceitação dos constrangimentos da contingência e a capitulação aos clamores irresistíveis do desejo. Toda autobiografia é, claro, uma repetição do passado, mas uma repetição com uma diferença“, que se refere a “o intervalo entre a experiência da subjetividade e o dar conta disso em palavras” (pp. 56-7). A isso, acrescenta que “a repetição do passado é, necessariamente, um suplemento a ele, nunca meramente um seu espelho” e “o paradoxo fundamental de uma estética referencial reside precisamente nessa aceitação e recusa simultâneas dos constrangimentos do real”.
Mas, se pensamos, por exemplo, em quando Michel de Montaigne (1965[1]), no ensaio De l’exercitation, mete-se a contar-nos, não sem certa indulgência, e com riqueza de detalhes, um fato “pouco importante e assaz vão” –uma estrepitosa e quase fatal queda de cavalo? E fê-lo somente após adotar dois procedimentos dignos de nota em consideração à sua época: ter escolhido si mesmo como próprio objeto de estudo e decidido escrever sobre si e sobre sua própria vida. E o faz remetendo-se à “perigosa estrada” trilhada por não mais do que “dois ou três antigos”.
Ou quando, de maneira menos modesta, quase duzentos anos mais tarde, Jean-Jacques Rousseau confessa-nos seu “empenho em uma empresa sem precedentes, e cuja execução não terá imitadores”, “intus et in cute“, e completa com esta joia: “Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem serei eu” (Rousseau, 1782). A frase completa é verdadeiramente preciosa: “Je forme une entreprise qui n’eut pas jamais d’example e dont l’exécution n’aura point d’imitateur. Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la veritè de la nature; et cet homme ce sera moi”). A verdade retumbante e inconteste de uma pretensamente inaudita natureza do eu sendo exposta com alegado ineditismo e “sem fingimento algum”. Rousseau, aliás, para justificar a vanglória, diz que todos antes dele, incluindo Montaigne, maquiaram sua intimidade, apresentando apenas o que lhes parecesse conveniente para bem aparentá-los. Ivan Tassi (2007), em sua excelente tese doutoral publicada pela Laterza, com o título de Storie dell’io, por sua vez, acusa Rousseau dessa mesma desdita. Curioso é que, em uma edição lisboeta da Portugalia Editora, de 1962, João Gaspar Simões comenta assim na sua introdução às confissões rousseaunianas: “um homem que se desvenda aos seus semelhantes sem mesmo lhes ocultar aquilo que o humilhará diante deles é exemplo excepcional de sinceridade e de grandeza humanas”.
Ora, pois, se existe – e parece que existe – essa disposição para o narrar-se, para transcrever o intus em um lugar fora de si, tal disposição não deveria carregar sempre uma indagação de endereçamento? Se Ricoeur pergunta-se “Quem se narra?”, cabe acrescentar neste momento: para quem? Quem é aquele que lê o narrado? E, ainda: desde onde e com que fim o faz?
Além disso, se Agostinho se pergunta: “e se te enganas?”, talvez devêssemos perguntar também: “e se mentes?”. Montaigne (1965 [2]) está a soprar-nos ao ouvido: Etiam innocentes cogit mentiri dolor.[2] Conviria acrescentar que, tanto ou mais do que a dor, o desejo ou os impulsos do inconsciente assim também podem operar. E, daí, como em uma fita de Moebius, não estaríamos fadados a re-habitar o incômodo lugar de onde os antigos viam atuar as forças do insondável, atribuídas, então, à alma e aos deuses?
Verdade, não-verdade, falsidade, mentira, engano, invenção são componentes muitas vezes indistinguíveis em uma narrativa autobiográfica. Seria, então, o sujeito que escreve sobre si incapaz, como sugere Goethe, de desvencilhar-se dessas implicações e sobejar uma qualquer “verdade” de si ou do mundo? Ou estaria ele condenado a existir subiectus – agente ou paciente – no plano do uerbum originário, como insinuam algumas teorias mais recentes, como a psicanálise ou os estudos da linguagem? Ou, ainda, segundo percebe Derrida, destinado a, apenas ao enunciar ‘eu’, lançar-se a um além-horizonte, a um devir sem fim e sem definição (Pelgreffi, 2015)? Assim como a escritura do ‘eu’ de quem os lê? Onde está a “verdadeira” história contada e a se contar aí? No dentro mais íntimo de si, naquilo que este si senciente percebe do e expõe para o mundo, em um alhures que desliza sem destino ou em um Outro, que, ao lê-lo, insere-o, por sua vez, dentro de sua própria escritura, de seu próprio círculo subjetivo? E a História, nessa história, onde fica?
Referências
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- PPGHIS/UFRJ. Email: andreia.tamanini@gmail.com.↵
- Montaigne cita a sentença a Publius Syrys. Segundo nota, a citação fora retirada do livro XIX, Cap. VI, do Commentaires de la Citè de Dieu [de Santo Agostinho] de [Jean-Louis] Vivès (o livro de Vivès fora publicado em 1522). Em Montaigne, está justamente no capítulo Sur la conscience. Traduzimos assim a passagem, do latim: A dor constrange a mentir mesmo os inocentes.Na referida nota, a tradução francesa vem como se segue: La souffrance force à mentir même des innoceats (sic).↵